Artigo*
La Gestalt-Thérapie Va
Télle Oser Développer son Paradigme Post-Moderne? *
A Gestalt-Terapia Terá
a Ousadia de Desenvolver seu Paradigma Pós-Moderno?
Does Gestalt-Therapy Will be Bold Enough to Develop its Post-Modern Paradigm?
Jean-Marie
Robine
Resumo
O que me proponho a explorar
neste artigo, com este título algo misterioso, são algumas das linhas de força
e paradigmas que perpassam, implícita ou explicitamente, a teoria da Gestalt-Terapia,
com o objetivo de delinear algumas implicações para sua prática clínica. Acredito
que se pudermos compreender essas linhas de força, seremos capazes de aplicá-las
melhor e, ao mesmo tempo, compreender mais facilmente os pontos-chave que
dividem aqueles que promovem a Gestalt-Terapia. Eu também gostaria de ressaltar, logo de início,
que não estou inteiramente satisfeito em apoiar-me no termo “pós-modernismo”,
o qual está muito carregado com uma variedade de conotações; apesar disso,
por carecer de um outro melhor, eu o farei, tentando especificar seus contornos
e limites.
Palavras-chave
Gestalt-Terapia;
pós-modernidade; campo; self; relação terapêutica.
Ao ouvir
termos como “epistemologia”, algumas pessoas, imediatamente, temem o pior,
- o que Perls denominou em sua linguagem floreada “mind fucking” –
o que significa dizer “massagear a massa cinzenta” ou “masturbação mental”.
Eu espero evitar este problema, uma vez que o material que quero tratar com
vocês está, para mim, muito carregado emocionalmente. Estes questionamentos
surgiram do meu próprio desenvolvimento pessoal e se baseiam tanto na minha
prática clínica quanto na minha reflexão teórica.
Em um
estudo anterior, iniciei com uma citação de Prinzhorn (1984), retirada de
seu trabalho sobre gestaltung: “Nós procuramos o significado de cada
forma produzida no próprio ato de sua formação”, ou seja, o significado da
forma à qual eu chego hoje, o significado das minhas conclusões e sobretudo
o dos meus questionamentos podem ser encontrados no meu próprio processo,
na minha própria caminhada e aos quais devo referir-me sem constrangimento.
A) Fragmentos de um Itinerário
No início
dos anos 80, após minha formação e um tempo de prática em Gestalt-Terapia
– em um primeiro momento de modo “perlsiano” (do período de Esalen)
e depois modificada pela contribuição do Instituto de Gestalt-Terapia de Cleveland
(em particular dos Polsters) - eu tive a oportunidade de trabalhar
por vários anos com Isadore From, um membro do grupo fundador da Gestalt-Terapia.
Este repensar doloroso e radical levou-me a dar as costas firmemente para
certas práticas, certas noções teóricas e certos preceitos éticos, em prol
de outro enfoque, que eu já então percebia como sendo mais exigente (e eu
ainda estava longe de medir todas as conseqüências). Tratava-se do enfoque
de Goodman e Isadore From. Aliás, era difícil para mim distinguir a contribuição
de From daquela de Goodman, pois ao longo de minhas duas formações anteriores
em Gestalt, nunca havia ouvido falar em nenhum dos dois.
Nos meus
primeiros meses de prática tive a impressão, com ou sem razão, de haver rapidamente
assimilado os modelos perlsiano e de Cleveland, a ponto de encontrar seus
limites e reconhecer seus impasses. Do mesmo modo, tenho a impressão agora,
depois de 15-17 anos, de ainda não ter feito o tour completo do modelo
proposto por Goodman. Agora, mantendo um pouco de distância, diria que levei
de seis a oito anos para passar da <introjeção>, apenas parcialmente
mastigada, para a <assimilação>. Depois, vários anos mais para ser capaz de desafiar
alguns pontos e para ir além do que aqueles mestres me deram e perseguir algumas
trilhas que eles abriram. Ao mesmo tempo, eu estou longe de considerar que
o modelo transmitido por Goodman seja perfeito! Eu quero apenas dizer que
novos caminhos foram abertos e que nos cabe identificá-los e explorá-los.
Assim,
precisei de muitos anos para me desengajar de uma abordagem que considero
hoje como sendo restritiva da obra de Goodman operada por Isadore From, sabendo
que a minha própria leitura representa, ela mesma, uma outra forma de restrição.
A restrição que noto é de ordem estrutural: a abordagem de self que
From construiu se apoiava fortemente em um dos aspectos da noção de self
de Perls e Goodmann - a saber, as estruturas parciais, as três funções, suas
perturbações e perdas, etc. Esta é, pelo menos, a minha percepção, mais dos
seus ensinamentos que de sua prática, que era mais “processual”. Ainda que
ele tenha sempre recusado o termo “processo” por não considerá-lo um termo
fenomenológico.
De minha
leitura de Goodman nasceu, então, minha preocupação com o campo. Do campo,
ao contrário, sempre tinha ouvido falar. Esse foi sempre um conceito que flutuava
através do discurso dos gestaltistas, sem nunca ter sido exatamente definido
ou realmente ter sido levado em conta além do nível dos slogans ou
das vozes devotas.
Uma vez
que eu realmente comecei a refletir, trabalhar e explorar esta área, fiquei
alarmado. Uma verdadeira vertigem surgiu, ante o questionamento que me fazia
e o que pressentia. A perda das certezas duramente adquiridas, ainda mais
diante do fato de que nunca tinha sido fácil ser identificado com o título
“Gestalt-Terapeuta” no mundo do establishment da psicologia do qual
eu fiz parte por um longo período. Pelo menos as referências estruturais às
quais eu podia me ligar naquele momento de fato me localizavam em um modo
de pensar relativamente banalizado, institucionalizado e, pelo menos aparentemente,
compartilhado pela imensa maioria de colegas. Eu pressentia que a referência
ao campo poderia me isolar ainda mais, me condenando a ficar sozinho para
caminhar, o que me parecia, e ainda me parece, impossível e impensável.
Em um
texto de 1989, “La nevrose de champ”, escrito a partir de uma palestra
dada em um encontro dedicado ao tema da transferência em Gestalt-Terapia,
eu disse:
Uma
coisa é certa para mim enquanto escrevo estas linhas: eu estou com medo! Eu
pressinto que minhas reflexões desordenadas dos últimos tempos, que têm me
levado a escrever, se levadas às últimas conseqüências, podem me levar a tal
ruptura epistemológica que eu posso ficar ainda mais sozinho, permanentemente
isolado daqueles que construíram um status quo confortável, em uma
margem do que continua a fazer parte daquilo que se lê e aceita. Terei essa
coragem?
Uma segunda
trilha pessoal, aparentemente sem correlação, mas de fato profundamente conectada
ao primeiro tema, foi trazida à baila pelo meu trabalho com a vergonha.
Em 1991,
quando eu publiquei o primeiro (e muito teórico) estudo sobre a vergonha,
que eu conhecesse, nada ou quase nada havia sido publicado em francês a respeito
desse assunto, e não só no âmbito da Gestalt-Terapia. Desde então, muitos
estudos floresceram, incluindo o mundo da Gestalt, pelo menos em língua inglesa.
Por que a vergonha? Quanto mais eu aprofundava meu trabalho com as personalidades
limite ou com as personalidades que apresentavam perturbações do narcisismo,
mais a questão da vergonha se apresentava, indiretamente. Nunca, nas minhas
terapias pessoais ou na minha supervisão, eu havia tratado desse tema; e,
é claro, eu estava misturado com ele, sem sabê-lo. Minha própria vergonha,
não consciente e não trabalhada, tomava a forma que uma dada coisa pode tomar
quando não é assumida, ou seja, eu a projetei. Eu manejava a vergonha sem
me dar conta dela; eu tentava escapar dela, gerando-a em outras pessoas, o
que me permitiu cuidar, ou melhor, recobrir de ilusões as minhas velhas feridas
narcísicas... e não se tratava de uma relevância terapêutica a toda prova
nas relações terapêuticas com meus pacientes. A vergonha da qual estou falando,
mais que aquela forma imediatamente sentida em certas situações embaraçosas,
mais que aquela que funciona como formação reativa, refere-se a um direito
à existência, ao reconhecimento que recebo ou não recebo por ser o que sou,
sentir o que sinto, desejar como desejo. Assim, pude descobrir que cada vez
que estou em uma situação que me faz sentir que deveria ser de algum modo
diferente do que sou, estou em uma situação de vergonha. Pode-se imaginar,
então, o grau de facilidade para um terapeuta, um supervisor, um formador,
colocar alguém com quem ele está trabalhando em uma posição de vergonha, dando
a ele a mensagem implícita de que ele deveria ser outro, diferente do que
ele é e, ainda mais, em vista do fato de que este cliente, aluno ou supervisionando
está vindo aqui precisamente porque ele considera que ele de fato deveria
ser outro diferente do que está sendo.
A partir
dessa preocupação e do trabalho que precisei desenvolver sobre este tema –
estará algum dia acabado? - ficou clara para mim a importância da questão
do suporte, do apoio, dando por certo que, como para qualquer gestaltista,
os irmãos inimigos “suporte” e “frustração” faziam parte do instrumental metodológico
oferecido por Perls. Mas é verdade que quando eu li ou assisti os protocolos
de sessões que ele deixou para a posteridade, encontrei mais lá para nutrir
minha competência em gerar frustração do que para gerar suporte. Até mesmo
Laura Perls, que oferecia um contrapeso ao seu marido na aplicação desses
“irmãos inimigos”, dando suporte para o suporte, compartilhou apenas alguns
pensamentos acerca desse assunto. No entanto, eu já tinha há muito tempo me
dado conta de minha irritação diante da proposta de Perls de permitir, graças
à terapia, a transição do suporte ambiental para o auto-suporte – uma proposição
que eu sempre tive e ainda tenho dificuldade de não considerar como um convite
ao egotismo.
Não obstante
– e trabalhar com a vergonha nos confronta diretamente com esse ponto – o
suporte começa com a acolhida e o reconhecimento daquilo que está presente
na experiência do contato na fronteira, o que significa dizer, com aquilo
que está, do modo como está e não do modo como eu gostaria que estivesse ou
fosse.
Também
é verdade – e isso está diretamente conectado à minha história pessoal – que
minha relutância anterior em me abrir para dar ou receber suporte estava relacionada
a angústias de intrusão, de ser a vítima ou o agente da intrusão – assim como
ansiedades de dependência, novamente tanto de depender dos outros ou de tê-los
dependentes de mim. O contexto desses medos inclui toda a mitologia da autonomia
e responsabilidade desenvolvida em nosso campo das Ciências Humanas, Clínicas
e Sociais, particularmente ao longo do século XX, como será discutido mais
adiante.
Hoje,
esses medos não são mais tão fortes como eles podem ter sido alguns anos atrás:
o contexto mudou, e, por conseguinte, eu aprendi a procurar e aceitar diversas
formas de suporte. Indubitavelmente, o acidente automobilístico sério que
sofri há pouco mais de um ano, que me confrontou com a probabilidade iminente
de minha morte, contribuiu, também, para modificar meu olhar e meu contato
com meu mundo de uma maneira tal, que correr esses riscos não é mais experimentado
por mim da mesma forma. Algumas retroflexões desapareceram – ou foram se instalar
em outros lugares!
Estas
são algumas linhas de força fundamentais da minha evolução pessoal e profissional
dos últimos anos. Eu me esforcei para delineá-las bem aqui porque as figuras
que quero desenvolver agora têm um fundo, tanto pessoal quanto teórico, e
também porque a construção teórica em si não é outra coisa além de tentar
construir significado para a sua experiência, e talvez a integração dessa
experiência em uma ordem maior de generalização. Os desenvolvimentos que desejo
traçar com vocês aqui nascem, sobretudo, de mim mesmo e devem ser detidamente
examinados nestes termos por vocês antes de fazer qualquer generalização.
Se alguma dessas coisas tiver ressonância com a sua própria experiência e
servir para ajudá-los a ordená-la de modo significativo, não terei desperdiçado
meu tempo.
B) Uma Releitura do <Gestalt-Terapia> de Perls
e Goodman, com uma Distância de Quase Meio Século
Uma vez
que alguém obteve certa familiaridade com nossa obra inaugural, com o passar
do tempo, zonas de desconforto podem começar a aparecer. Algumas contradições
podem também aparecer, e desaparecer, para aparecer mais adiante, em particular
no que se refere à concepção de self. Os avanços do pensamento nas
Ciências Sociais, Filosofia, Sociologia e até na História da Arte, na contemporaneidade,
podem nos ajudar a identificar melhor aparentes contradições, para explicá-las
e tentar superá-las. Essas possíveis referências me parecem poder ser encontradas
na passagem da Modernidade para o que é agora, por convenção, denominado “pós-modernidade”.
A modernidade
corresponde àquela modalidade de pensamento que, desde o Iluminismo, buscou
abrir novas visões do progresso científico e tecnológico, assim como novas
áreas de conhecimento que representam uma ruptura com as tradições mais ou
menos obscurantistas dos séculos passados.
No nível
social, por mais que os diversos pensadores, sociólogos e críticos sociais
possam divergir em suas análises, todos estão de acordo quanto a conectar
a modernidade com o nascimento da primazia da noção de indivíduo e de seu
“efeito perverso”: o individualismo.
De fato,
a modernidade é associada com o nascimento da razão e da ciência, dos direitos
humanos, junto com os seus princípios de igualdade e liberdade, com a destruição
do tecido social da comunidade tribal em favor do conceito de sociedade e,
assim, da primazia da individualidade e o conceito de sujeito que é tão central
para as ciências humanas contemporâneas.
Desse
modo, é a modernidade que deu luz ao Romantismo e com ele a noção de emoção
como preeminente. A atitude estética, por esse meio, substitui a atitude religiosa.
Tudo está,
então, nesse ponto, no lugar certo para nutrir o interesse pelo ajustamento,
pelo contato, pela criatividade, pela autonomia e pela responsabilidade, todas
fortemente relacionadas à definição de sujeito.
Os anos
50-70 me parecem hoje representar o auge do que é comumente chamado modernidade;
e o livro Gestalt Terapia, publicado em 1951, contém inúmeras referências
a este modo de pensamento: a idéia de abordar o self por suas estruturas
parciais, a ênfase na responsabilidade, a autonomia do sujeito, as referências
à psicopatologia, os suportes - ainda que críticos - nas idéias Freudianas
e Reichianas, uma distinção por vezes confusa entre o <self>,
o <ego> ou <eu> ou <organismo>, e assim por diante. Todas
essas referências à modernidade foram então ampliadas nos posteriores trabalhos
de Perls, mas não nos de Goodman – o que mostra claramente qual dos dois autores
desenvolveu o projeto ¹ em direção às idéias modernistas.
Mas ao
mesmo tempo, Perls e Goodman introduziram uma mudança de rumo fundamental,
que os coloca no coração daquilo que mais tarde será chamado pós-modernidade:
eles deslocaram o self, o descentralizaram e o temporalizaram. Na abordagem
moderna, solipsista, o si individual era reconhecido como a única realidade.
Em contraste, Goodman, cuja influência levou a teoria nessa direção, colocou
adiante a idéia de que self é contato. O que chamamos de self
só existe quando e onde há contato. Não mais o self existiria anteriormente
e se revelaria, se manifestaria, se expressaria no contato, mas sim é
contato. Mais freqüentemente, o self gestaltista foi reduzido à noção
de organismo, ou um de seus equivalentes: o <ego>, o sujeito, a pessoa
... Por que não é aceitável pensar em si sem pensar primeiro na continuidade?
No entanto, Goodman e Perls especificam sem ambigüidade: “O self é
apenas um pequeno fator na interação total organismo/ambiente, mas ele tem
o papel fundamental que consiste em desenvolver e criar os significados por
meio dos quais somos capazes de nos desenvolver” (Perls;
Hefferline; Goodman, 1951).
Goodman
faz referência a uma realidade primeira: aquilo que existe é o campo. O campo
é então definido como “um organismo e seu ambiente” e o self indica
os movimentos internos do campo, movimentos de integração e de diferenciação,
de unificação e de individuação, de ação e de transformação etc.
Mas essa
abertura expressa por Perls e Goodman não é sempre salvaguardada nem por eles
mesmos nem, como era de se esperar, por seus seguidores. Pode alguém respeitá-la?
Não estaríamos nós facilmente tentados a reverter o paradigma individualista
ou solipsista, que escolhemos chamar “organismo”, “psique”, “pessoa”, paciente
ou cliente? Não estamos tentados, por comodismo, a contribuir para o desenvolvimento
da psicopatologia de uma dada entidade isolada, mesmo se aquela psicopatologia
se abre a problemáticas, tais como o “ser-no-mundo”? Não estaremos nós tentados
a fazer referência a um tipo de psicogênese – mesmo quando, como é mais e
mais comum nos últimos anos, essa psicogênese leva em conta as primeiras relações
com o ambiente, ou “relações objetais”, com o risco de reduzir o campo ambiental
em geral e o Outro em particular, a uma função instrumental e etiológica,
“causa” do desenvolvimento e suas perturbações?
Voltemos
a um exemplo anterior: Perls, em sua última fase, enfatizou a noção de “auto-suporte”
em oposição à de “suporte ambiental”. Pode-se ver claramente aqui a oposição
entre self e ambiente, no mesmo ponto onde poderíamos ter achado “organismo”
e “ambiente”, em seu trabalho conjunto com Goodman. Assim, se sobrepusermos
“self” com “pessoa” ou “organismo”, vamos promover ou encorajar o desenvolvimento
de todo tipo de suporte às capacidades, recursos próprios do indivíduo a partir
de uma posição egotista.
Se, por
outro lado, consideramos o self COMO contato, promoveremos ou encorajaremos
a descoberta do suporte no contato com o campo (lembrando que o campo inclui,
ao mesmo tempo, organismo e ambiente).
A conclusão
inevitável é que nós somos confrontados com duas psicoterapias muito diferentes.
Poderemos então chamar as duas pelo mesmo nome, <Gestalt-Terapia>?
Esses
aspectos diferentes e contraditórios podem ser considerados como sintomas
da oscilação modernidade/pós-modernidade característica desta época e não
nos autorizam, no meu entender, a nos queixar de nossos autores. Inteiramente
o contrário, eles me parecem ter sido capazes de dar lugar no seu pensamento
para um passo significativo além do discurso predominante em seu tempo e contexto.
Cabe a nós, com nossas ferramentas contemporâneas de análise, encontrar o
caminho para superar certas posições pouco claras ou coerentes em seu trabalho.
C) Uma Pausa em Nossa Leitura da Gestalt-Terapia para
Olhar o que Propõe a “Pós-Modernidade”
A Pós-modernidade,
ainda que possa ser relativamente coerente nas mãos de um ou outro teórico,
me parece estar longe de poder ser considerada hoje um movimento homogêneo.
Se aprofundarmos nossa reflexão, se manifestam, com facilidade, as contradições
entre os diferentes domínios que se referem a este termo. A noção de pós-modernidade
na música utiliza parâmetros que são muito diferentes, até mesmo contraditórios
em relação àqueles parâmetros da arquitetura, que, por sua vez, são diferentes
dos das artes plásticas. Se forem incluídas as linhas de força sugeridas pela
Filosofia, Sociologia, Epistemologia e outras disciplinas, poderíamos facilmente
perder todo o referencial. Com a pós-modernidade surge, para retomar a feliz
imagem de Max Weber, o “desejo de re-encantamento do mundo”. As formas podem
algumas vezes parecer caóticas, mas a própria noção de caos, com todas as
dúvidas e tensões associadas a ela, é uma parte integral do paradigma pós-moderno.
Muitos desses domínios são objetos de um <de> colocado como prefixo:
desconstrução, decomposição, descentralização, desregulação, dessacralização,
desinformação... A pós-modernidade assinala a perda de ilusões (do progresso,
da ciência, da verdade, da hegemonia e da cultura dominantes).
Em Psicologia,
é comum referir-se à pós-modernidade, ou mais precisamente a um de seus ramos,
o construtivismo, junto com a Teoria Gestáltica, a obra de Piaget e os trabalhos
da escola de Palo Alto. Tanto na Psicologia quanto na Psicoterapia é, de fato,
sem dúvida, sob um duplo impulso que a pós-modernidade ingressou na história.
Por um lado, o do movimento construtivista, inclusive no próprio seio do movimento
analítico (bem representado, por exemplo, por S. Viderman) e de oposição entre
descoberta e construção, que se aprofundou. Por outro, o do movimento dialógico
iniciado por Buber e depois por Levinás, Ricoueur
e outros, nos movimentos interacionistas, intersubjetivos, conversacionais
e outras variações do primado da alteridade e da relação, e eu ousaria dizer,
do campo, na definição do humano.
Eu poderia
evocar particularmente o impacto do pensamento construtivista como uma das
correntes ativas desse tipo de pós-modernidade. Com o construtivismo, vem
a constatação de que não existe outra realidade além daquela que construímos,
derrubando assim o mito da objetividade em ciência e em todas as outras abordagens,
incluindo as Ciências Humanas, que flertam com o método científico.
A modernidade
apóia-se na premissa que poderia ser expressa no adágio: “só acredito naquilo
que vejo”. O construtivismo poderia dizer, então: “eu só vejo aquilo em que
acredito”.
Com o
construcionismo social, uma linha de pensamento desenhada a partir do construtivismo
por Berger e Luckmann (1996) e desenvolvida por Gergen (1991, 1994), a ênfase
é então elaborada da seguinte maneira (me interessa, sobretudo, que se reúnam
os dois ingredientes da pós-modernidade que acabo de evocar): não há realidade
além daquela que construímos na relação.
Esta hipótese
tem conseqüências para o psicoterapeuta, no campo de sua relação com seus
pacientes. Nós nos encontramos seriamente implicados em uma co-construção
de significados baseada no que vivemos na experiência da relação, das palavras
que dão forma para aquela experiência, ao mesmo tempo em que a experiência
as encarna.
Sob a
influência de filósofos como Wittgenstein, Ricoeur, Lyotard, Gadamer (apenas
para citar uns dos mais influentes), o acento aqui é na linguagem. “Os limites
de nossa língua demarcam os limites de nosso mundo”, escreveu Wittgenstein
em 1953 – para dizer que os limites da estrutura de nossa fala, os termos
que adotamos para nós e para os outros, nossa capacidade de nos expressar
a nós mesmos em palavras, vão definir nossas possibilidades de entender e
explicar e vão traçar os contornos daquilo que chamamos “realidade”. Em outras
palavras, as palavras que usamos e os diálogos que construímos para compreender
nossa experiência constituem o que pode ser incluído ou excluído daquela experiência.
A partir
daí, tudo que dissermos sobre as noções de identidade e self será afetado
pela onda pós-moderna. Na concepção tradicional, romântica ou moderna, o self
remete à continuidade, à profundidade de si. O “normal” e o “patológico” são
mais ou menos ligados à capacidade da pessoa de estar em contato com sua identidade
no nível mais profundo; e a terapia – particularmente aquelas terapias ditas
“modernas” – têm a meta de capacitar o sujeito para aceder a essa condição.
Na perspectiva
pós-moderna, o foco é na evolução dos contextos e uma preocupação em pôr em
perspectiva vai substituir a fascinação com a história pessoal, o como as
mudanças podem ocorrer vai predominar sobre o porquê das significações descobertas.
Nesta perspectiva, nós somos o produto do contexto de nossas conversações
e dos significados que fazemos derivar socialmente disto. E, como nossas conversações
estão constantemente mudando, nossos selves estão em perpétuo movimento
e terminam tão múltiplos quanto nossas situações.
Como assinala
Epstein (1995), essa mudança de vocabulário, de uma perspectiva que descrevia
um objeto chamado “o self” para outra que descreve o self como
produto de uma interação social infinita e cambiante, exige uma mudança radical
da psicologia, e conseqüentemente, da psicoterapia. O problema já não é, efetivamente,
estar ou não estar em verdadeiro “contato” com quem se é verdadeiramente,
com nossa identidade “profunda”, mas sim recuperar a flexibilidade em nossas
ficções, nossos discursos, histórias, narrações e mitos, que utilizamos cotidianamente
para nos dizer, falar sobre nós mesmos.
Com esta
perspectiva, perdemos a segurança de “ter” riquezas interiores, mais ou menos
exploradas ou latentes, no mais profundo de nós mesmos e, por isso, perdemos
o apoio fundamental na noção de inconsciente. Perdemos as ficções da identidade
e, nesta lógica, a possibilidade de um conhecimento objetivo e mensurável
do outro. Perdemos a normatividade e com ela a necessidade de conhecer uma
"verdade" que não é apreensível senão como ficção. Perdemos a preocupação
com a medida, o diagnóstico e outras práticas articuladas mais ou menos diretamente
com quaisquer normas. Perdemos o interesse por uma explicação histórica e
descontextualizada. Na relação clínica e terapêutica, perdemos a posição de
poder e de domínio de quem sabe ou se supõe sabedor, e por isso nossos pacientes
perdem assim a vergonha de não saber, de serem manipulados pelas costas por
forças escondidas ou verdades ignoradas.
Cada um
de nós pode decidir se estas perdas devem ser lamentadas ou celebradas!
O que
nos oferece, em contrapartida, a perspectiva pós-moderna?
Adquirimos
a convicção de que qualquer teoria é uma ficção entre outras ficções, mas
que é graças a ela e através dela que construímos o significado de nossa experiência.
Já que o acento está posto agora na co-construção de significados na relação,
voltamos a dar uma importância central às situações de conversação e, por
isso, à relação, ao vínculo, à solidariedade, à comunidade, em oposição ao
que oferece o paradigma individualista, em termos de autonomia e de responsabilidade
pessoal. Se perdemos em independência, ganhamos em interdependência. Estamos
centrados no como das experiências, muito mais do que em seu porque, na invenção
criativa do ajustamento da solução que virá, muito mais que na explicação
causal. “Aqui-e-agora e a seguir”, em oposição a “aqui-e-agora assim porque
ontem...”. A própria terapia se converte, assim, em co-criação de um contexto
e não faz mais referência a um marco imposto. (Ademais é interessante destacar
do que ali onde falamos de “marco”, a clínica anglo-saxã fala de “setting”,
literalmente “colocação”, “posicionamento”. Aqui também, as palavras estão
carregadas de nossas ficções). Procura-se muito mais a flexibilidade do self,
a maior parte das vezes abordado como processo, que a conquista de um “verdadeiro
self” que fosse conveniente alcançar, e então fixar. A psicoterapia
se converte numa atividade que não é somente linguagem, mas uma experiência
nova. Tal experiência é baseada em duas experiências particulares colocadas
em palavras também distintas, onde o conflito de duas ficções e de duas representações,
bem como a fusão de seus horizontes, permite a construção de novos significados.
O terapeuta é convidado, portanto, a, com sua presença, não se colocar só
como um expert, mas como curioso, ingênuo e também exposto dialogicamente
à subjetividade do outro.
Aqui também
cabe a cada um determinar se considera esta concepção como a possibilidade
de um avanço ou como uma perda.
D) Uma Alternativa para a Gestalt-Terapia
A partir
de nosso livro fundador, “Gestalt-Terapia”, estamos confrontados então com
dois paradigmas que podem parecer absolutamente contraditórios: de um lado,
o modelo individualista, em que o self está proposto como fundamentalmente
separado, modelo que pertence à linha de pensamento do “intrapsíquico”; por
outro lado, o paradigma do campo como “primeiro motor” (para utilizar a expressão
de Aristóteles), modelo que privilegia o contato e a relação. De um lado,
o modelo da agressividade oral preconizada por Perls; pelo outro, o do ajustamento criativo desenvolvido por
Goodman. Por um lado, o sujeito é o primeiro; pelo outro, o campo.
Entre
os gestaltistas, Gordon Wheeler (1996) é, sem dúvida, um dos que levou seu
próprio pensamento mais longe neste terreno, mas vamos encontrar também, ainda
que em termos diferentes, uma perspectiva parecida em Lee Mc Leod (1995),
em escritos recentes de Gary Yontef (1993), e inclusive em Joel Latner, a
partir de seu artigo, sem dúvida insatisfatório em vários aspectos, mas que
deve ser visto como o esforço de um pioneiro: “Teoria do campo e teoria de
sistemas”
Num de
seus artigos recentes, Wheeler propõe uma comparação esquemática dos dois
grandes paradigmas que estão no centro de nosso debate de hoje. Vejamos em
primeiro lugar sua apresentação do paradigma individualista (quadro 1):
Quadro 1: A Perspectiva do Paradigma Individualista
SI |
Pré-existente à relação, fundamentalmente separado, não ligado
por natureza ao meio nem aos outros si. |
OUTRO |
Separado do si: objeto da auto-energia do si, está feito para
ser utilizado ou explorado, fundamentalmente competitivo com o si. |
NATUREZA HUMANA |
Descarga das pulsões: processos do si isolado do campo. |
RELAÇÃO |
Não primária: secundária à existência do si: sujeito-objeto
ou objeto-objeto por natureza. |
POSIÇÃO DO OBSERVADOR |
Fora da pessoa ou do sistema observado, fundamentalmente separado,
sem influência mútua: modelo do especialista. |
PROCESSO |
Tomar alimento, descarregar a tensão. |
DESENVOLVIMENTO |
O si não se desenvolve: só o mapa objetal se desenvolve. |
COMUNIDADE |
Fonte de limitações à expressão do eu. |
TERAPIA |
Serve para corrigir as deficiências ou as distorções no mapa
objetal; serve para promover o ajuste e o compromisso entre as pulsões
naturais e as restrições sociais. |
CONCEPÇÃO DA REALIDADE |
Positivista: a realidade está dada antes do si ou da percepção. |
CRITÉRIOS DE CONHECIMENTO |
Confirmação científica ou objetiva; baseada na autoridade,
ênfase no verdadeiro ou falso. |
NATUREZA DA AUTORIDADE |
Hierárquica, autoritária; “verdadeiro-falso”; enfoque do especialista. |
NATUREZA DO PODER |
Autoritário e dominante, segundo os termos mesmos da natureza
|
CRITÉRIO DE SAÚDE |
Máximo de expressão do si compatível com a autopreservação. |
DIREÇÃO DE DESENVOLVIMENTO |
Da dependência infantil à autonomia adulta madura. |
COMPREENSÃO DA VERGONHA |
Vulnerabilidade social: resulta de uma dependência excessiva
|
PSICOTERAPIA |
Centrada no processo interno; procura reforçar a autonomia. |
Para aprofundar
a diferenciação, Gordon Wheeler põe em perspectiva os dois paradigmas, o paradigma
do campo, e o paradigma individualista, através do seguinte quadro:
|
PARADIGMA
INDIVIDUALISTA |
PARADIGMA DO CAMPO |
SI |
Preexistente, separado, precede
a relação. |
A integração da experiência
interna e externa, inclui a relação. |
OUTRO |
Separado do eu, objeto das pulsões
do si |
Fundamentalmente associado enquanto
pólo co-igualitário da experiência do eu. |
NATUREZA HUMANA |
Descarga das pulsões, isolada
do campo. |
Auto-organização significativa
da experiência, a construção de significados |
RELAÇÃO |
Secundária, sujeito-objeto ou
objeto-objeto. |
Primária, sujeito-sujeito. |
FRONTEIRA |
Separa o si do campo. |
Une o “si” ao “outro”, lugar
do processo do si: limites fora do processo do si. |
POSIÇÃO DO OBSERVADOR |
Perspectiva
objetivista, experiência vista de fora da pessoa observada. |
O observador busca compreender
o mundo do sujeito a partir de um ponto de vista do sujeito. |
PROCESSO |
Dados observáveis. |
Dados organizados em termos
de intenções e metas do sujeito: fenomenológico. |
DESENVOLVIMENTO |
Conformidade com as normas pré-estabelecidas:
o objeto se desenvolve. |
A elaboração da intersubjetividade
no campo. |
COMUNIDADE |
Oposta ao indivíduo. |
Contida no indivíduo, como um
pólo da experiência do si. |
TERAPIA |
Intervenção especializada com
um objetivo de correção. |
Apoio para a articulação do
si. |
VISÃO DA REALIDADE |
Positivista, Objetivista. |
Fenomenológica, todos os significados
da experiência organizados pelo sujeito. |
CRITÉRIO DE CONHECIMENTO |
Objetivo |
Dialogal |
NATUREZA DA AUTORIDADE |
Hierárquica |
Dialogal e mútua. |
PODER |
Coercitivo, autoritário. |
Modelo que confere poderes.
|
SAÚDE |
Máximo de autonomia. |
Desenvolvimento e articulação
da experiência do si, compreendendo a relação |
DIREÇÃO DO DESENVOLVIMENTO |
Incrementar a autonomia. |
Incrementar a conexão significativa. |
VERGONHA |
Chave de relações superior/inferior,
fazer valer o social. |
Índice de acuidade no campo. |
Se eu
corroboro uma boa parte do que Wheeler desenvolveu, não estou de acordo num
ponto: ele assimilou o paradigma do campo ao enfoque construtivista. É verdade
que é a lógica proposta pelo construtivismo que nos permite pisar firme no
terreno deste novo paradigma, com muito mais clareza do que tinham podido
oferecer-nos até então a Fenomenologia ou a Psicologia da Gestalt, os precursores.
Apesar disto, a meu ver, pelo menos o construtivismo permanece encravado no
paradigma individualista: sua proposta “não existe outra realidade que a que
cada sujeito constrói” segue sendo uma afirmação solipsista. É a passagem
ao construcionismo social que modifica este enunciado para: “não existe outra
realidade senão aquela que cada sujeito constrói na relação”, o que vai significar
verdadeiramente, em minha opinião, a mudança de paradigma.
Vamos,
então, tratar de abrir alguns caminhos para um desenvolvimento da teoria e
da prática da Gestalt-Terapia nesta direção.
a) Da Importância da Construção da Narrativa
Todos
os trabalhos que se inscrevem nesta tendência nos convidam a interessarmos-nos
pela construção da narrativa. Nos Estados Unidos, onde o impacto da pós-modernidade
está muito mais marcado do que entre nós, este interesse pela narrativa já
deu lugar a novas escolas de terapia como a “Narrative Therapy”. O
próprio Erving Polster, há sete ou oito anos publicou “Every person´s life
is worth a novel”, que significa aproximadamente que cada vida merece
ser (mais) que uma novela. Mas a capacidade de construir um relato com base
na experiência de uma pessoa já tinha sido abordada, enquanto tal, por Goodman
no livro “Gestalt-Terapia”: ele o evocava com o termo “atitudes retóricas”.
Ainda que só as esboçasse de maneira relativamente restrita, demonstrou como
estas intervêm na formação da personalidade e se constroem nas relações interpessoais,
no conteúdo, e ademais, se isto fora pouco, no não- verbal do verbal (voz,
sintaxe, maneira de se expressar etc).
Mas o
fato de que Goodman abra este caminho quando aborda a formação da personalidade
(a função personalidade) deve chamar nossa atenção: a personalidade não é
mais do que um aspecto, uma modalidade do self. O self não vai
ser reduzido ou rebaixado ao que chamamos personalidade, e isso é, a meus
olhos, o que freqüentemente fez Polster, infelizmente, ao longo de seus diferentes
escritos. Que Winnicot, Jung ou outros nos proponham uma concepção de self
próxima ao que designamos função-personalidade, não suscita objeções por minha
parte. É outro referencial! Mas a riqueza (a genialidade?) de Perls e de Goodman
é ter-nos proposto uma construção, o self, que, quando é abordado em
termos de estruturas parciais, integra: a função-isso (id), o que quer dizer
que a situação dada é entendida como a mobilização da direção de um desejo
e de um sentido; e a função-eu (ego), que quer dizer a capacidade de orientar
o contato com o mundo e construir ali a experiência.
Ter isto
presente na mente pode nos ajudar a desenvolver o trabalho da função personalidade
com base nos estudos sobre a narração, mas não deve nos fazer tomar a parte
pelo todo, confundindo o trabalho com a função personalidade com a restauração
do self.
b) Revisitar a Teoria
do Campo
Com freqüência mais citada como slogan que
como realidade metodológica, a teoria do campo da Gestalt Terapia, num retorno
a Lewin e aos seus princípios básicos, permite-nos entrar com pé firme na
“construção social da realidade” preconizada pela pós-modernidade.
O campo, ou espaço vital, é definido por Lewin
como o meio psicológico total no qual uma pessoa tem a experiência subjetiva.
Desenvolve-o em cinco princípios essenciais:
1 . O princípio da organização: o comportamento
deriva de uma totalidade de fatos coexistentes. O sentido de um “fato isolado”
depende de sua posição no campo.
2 . O princípio da contemporaneidade. É o presente
o que explica, e concretamente, não se procura nada no passado como causa
ou no futuro como objetivo.
3
. Princípio da singularidade. Cada situação é única, as circunstâncias diferentes
e as generalizações devem, portanto, ser suspensas.
4 . Princípio do processo cambiante. A experiência
é provisória, não permanente.
5 . Princípio da pertinência possível. Nada do
campo pode ser excluído a priori como não pertinente, ainda que pareça
tangencial.
A partir destes princípios, a teoria de campo nos
permite examinar o status e as modalidades operativas entre o todo
e as partes, quer dizer, considerar como as partes afetam o todo e como o
todo afeta as partes. Encontramos nesta orientação um convite para não nos
encerrarmos no risco sincrético oferecido pelo paradigma holográfico ou, para retomar
uma teorização elaborada em companhia de meu amigo Jaques Blaize, um convite
para abordar a experiência como metonímia, parte que pode ser designada como
o todo mas que não é o todo, e a qual não se pode considerar sistematicamente
como metáfora, tal como os enfoques organizados sobre e para a transferência
têm tendência a generalizar.
É também necessário retomar muitas de nossas definições,
com freqüências excessivamente implícitas, para reescrever nossos conceitos
mais claramente na perspectiva do campo. Penso particularmente nas funções
do self (id, eu e personalidade), muito freqüentemente tratadas como
estruturas intrapsíquicas, em quanto ganhariam em pertinência, em minha opinião,
se as abordassem como funções do campo. O id definido como pulsão, muito próximo
do biológico, ou como dado da situação. A personalidade como inscrição dos
acontecimentos do campo e como mobilização aqui e agora em função dos parâmetros
da situação. O eu, que identifica e aliena, saberia fazê-lo fora de contexto,
fora do meio?
Penso também nos fenômenos de fronteira como a
introjeção, retroflexão, etc. Pode-se introjetar se não existe outro para segurar a colherzinha? Vai-se
retrofletir se não há um terceiro para incitar a isso com mais ou menos complacência?
E assim por diante.
Trata-se, portanto e em primeiro lugar, de pensar
a psicoterapia como o acontecimento da interseção: o campo entre.
c) A Temporalidade
Diferentemente das formas habituais de pensamento
que “localizam” (mesmo que metaforicamente) a psique – e empregam conceito de “tópico”
como um ícone -, o sistema teórico da Gestalt-Terapia dá prioridade ao processo,
à temporalidade e adiciona a dimensão “crônica” (para rearticular topos
e cronos). Recordemos que a “tópica” refere-se a lugares. Este termo
serve para designar o ponto de vista que, numa concepção metapsicológica,
aborda os “processos psíquicos” com referência aos “lugares” do aparelho psíquico.
Esta localização é, sem dúvida, ficção, e se distingue de uma abordagem topológica
que é conhecimento dos lugares. Distingue-se também da “Psicologia topológica”
de Kurt Lewin, que buscava seu modelo descritivo na teoria dos campos físicos,
na física e na matemática topológica. Encontramos a mesma analogia entre “tópica”
e “topologia” e entre “crônica” e “cronologia”. A cronologia trata de estabelecer
a ordem e as datas dos acontecimentos da história, enquanto a crônica é, antes
de mais nada, relato, real ou imaginário, que se esforça em refletir a “realidade”
histórica ou social, seguindo a ordem do tempo. Faz já uns quinze anos, sublinhei
a importância do "Kairós" que marca o instante preciso, delimitado
e pode nos ajudar a compreender o nosso famoso “aqui e agora”. É o articulando
com Chronos que se permite apreender melhor a duração do tempo e, a
partir disto, o processo, as seqüências e outros ciclos.
A referência maior (maior e não exclusiva) da terapia
gestáltica é, portanto, uma “crônica” mais que uma “tópica”. Crônica da formação
das formas, crônica da experiência, crônica da organização do sentido, crônica
do campo de consciência, crônica dos contatos, crônica da construção dos contatos
em relações e em associações temporárias... Já que o self não pode,
na experiência, ser “localizado” do mesmo modo: em plena ação ou em pleno
contato, ele não é vivido do mesmo modo em fase de integração, de assimilação,
de retirada, de repouso, de meditação ou de preparação.
Não vou desenvolver mais esta dimensão hoje, já
tive ocasião de me estender sobre isto em minha conferência de Boston; unicamente
quero insistir na necessidade de completar a modalidade ocidental e localizadora
de pensamento em termos tópicos (profundo/superficial, central, em cima, embaixo,
primeiro plano/segundo plano, vida interior, etc.), com uma referência ao
tempo. Em minha opinião, só uma referência à temporalidade nos pode permitir
superar o paradoxo contido nas diversas definições do self propostas
por Perls e Goodman. O final do capítulo 8 de sua obra o pede com ênfase.
Esta referência à temporalidade, a construir como “crônica”, associada ao
paradigma do campo, deveria permitir-nos resistir ao canto das sereias que
espreita qualquer navegante de nossa classe: o desenvolvimentismo, a biografia
causal, a psicopatologia fundada nas fixações/regressões aos estágios de desenvolvimento
da libido ou da relação de objeto. Vamos reler, a respeito deste tema, as
páginas tão instrutivas que Lewin dedicou à regressão. Se não tiramos do centro
de nossas preocupações a temporalidade como historicidade e etiologia, penso que não poderemos estar abertos para considerá-la
no nível dos processos, da dinâmica e dos processos interpessoais e sociais que mantêm o sofrimento e os sintomas.
d) Do Contato à Relação
Tenho estado sempre em desacordo com o amálgama
feito por numerosos gestaltistas entre “contato” e “relação”. O essencial
do livro Gestalt-Terapia fala de contato, e não fala mais do que um pouco
de relação; o contato é, certamente, um componente da relação, uma parte de
um todo mais complexo. As elaborações construídas por Perls e Goodman a propósito
do contato não podem ser transferidas à relação, e o conjunto “relação” permanece,
e permanecerá durante muito tempo, aberto. No fim dos anos 80, arrisquei-me
a tratar deste conceito de contato e defini-lo independentemente do conceito
de relação. O campo da época me dava pouco suporte e eu senti a necessidade
de submeter meu estudo, com muita ansiedade, a Isadore Fromm, que tinha por
costume não fazer quase nenhum comentário de volta. Desta vez, aceitou. Falamos
durante muito tempo deste artigo, o qual ele aprovou, não deixando de advertir-me do risco que iria correr.
Hoje em dia permanecem presentes em minha cabeça
os limites desse texto e do trabalho que fica por fazer para poder elaborar
a articulação contato/relação. Entre outras, está a pergunta: “O que é terapêutico
na relação terapêutica?”, quem nos impede de avançar nesta linha, agora que
nos recusamos a responder àquela questão de forma monolítica, apelando para
o manejo da transferência? Dotar-se de algumas ferramentas para avançar em
“Como pensar a relação terapêutica?” em coerência com a teoria do self
é a tarefa que me atribuo para os meses futuros, na perspectiva da “Universidade
de Verão Inter-institutos 1998” que colocará estes temas no centro de
nossa reflexão.
No âmbito deste tema da relação, gostaria de abrir
um parêntese “político”. No momento em que a comunidade se mobiliza para dar
ao psicoterapeuta uma definição, um status, definir o self como contato,
e devido a isto enfatizar a relação intersubjetiva, abre terreno para “outra”
definição do psicoterapeuta, dependente de outra maneira do saber psi preconizado
pela maioria da Psicologia ou da Psiquiatria. Propor o self como instância
mais ou menos interna, mais ou menos superposta à noção de sujeito, como o
citamos mais acima no marco do paradigma individualista, leva o psicoterapeuta
a desenvolver um “saber” objetivável, ou pelo menos a crer em tê-lo, como
fazem outras psicoterapias. Sua intervenção será a de um especialista, baseado
no conhecimento do objeto “humano”. Na perspectiva do paradigma pós-moderno,
a ênfase será colocada, como disse durante toda minha apresentação, na co-construção
dialogal da experiência. Isto já não supõe mais o especialista, mas o psicoterapeuta
constituído como arquiteto da mudança, que está no centro do debate e, portanto,
da definição, e isto nos permitirá constituir a profissão de psicoterapeuta,
segundo os termos da declaração de Strasburgo, sobre bases diferentes e autônomas,
tendo em conta a especificidade de nossa postura e de nosso enfoque. Aqui,
Lewin pode contribuir para elaborar nosso pensamento com seu conceito de “pesquisa-ação”:
não existe objeto de estudo independente da ação que se empreende com este
último. Fecho este parêntese.
e) Vigilância Necessária
em Relação à Questão do Sentido
Recorri bastante, durante esta exposição, ao tema
do sentido. Há muito tempo se consideram opostas as noções de “descoberta”
e de “construção”. O tema do sentido nos leva inevitavelmente à hermenêutica,
ou o estudo da interpretação, que tem o significado como objeto principal.
O congresso europeu de Gestalt-Terapia, em 1998, teve como tema “Hermenêutica
e Clínica”. A referência à hermenêutica gera em mim um mal-estar que, neste
momento, ainda não está claro e que precisa ser melhor investigado. Paul Ricoeur (1990) pôs em evidência como “o campo hermenêutico está
cindido em si mesmo”, explorado pelas contradições e pelas diferentes estratégias
e, portanto, o recurso à hermenêutica pode fazer-se, certamente, segundo eixos
diferentes. Mas, de novo, creio que colocar o tema do sentido no centro do
problema terapêutico pode ser uma sutil fragmentação do processo. Com efeito,
se a hermenêutica é parte de uma “ciência” da interpretação dos textos escritos,
que se amplia rapidamente em diversas direções e no vasto tema do “sentido
do sentido”, o que fica é uma conotação orientada para a interpretação dos
textos escritos. Agrada-me muito a definição do humano proposta pelo filósofo
belga Henri Van Lier: “o animal assinalado”, e a idéia de ler o humano como
um animal recoberto de sinais está longe de ser desinteressante. Mas o que
interessa saber é se a psicoterapia deve ser abordada, em primeiro lugar,
como decodificação ou como construção. Creio – é uma questão de fé - que a
Gestalt-Terapia se constrói mais sobre o conceito de experiência, e, baseando-nos
nisto, o sentido não é mais do que um dos constituintes da experiência.
Seguramente, qualquer que seja o apelo, à hermenêutica,
à pós-modernidade, às teorias das relações de objeto, à referência psicanalítica
ao inconsciente, à transferência ou a outros conceitos, à fenomenologia ou
à Psicologia da Gestalt (e poderia seguir), não podemos escapar à coerência
epistemológica, que é facilmente esquecida pelos pesquisadores. Não se pode
passar impunemente de uma disciplina a outra, de um sistema de pensamento
e de referências a outro, sem correr o risco da cegueira que se segue à fascinação.
f) A Experiência
A experiência vivida (do alemão, erlebnis),
que designa o aspecto subjetivo de um acontecimento, tal como o sujeito o
toma atualmente numa significação pessoal, individual e concreta, parece-me
o único conceito organizador da subjetividade e da diferenciação no campo.
Permitam-me ler algumas linhas de Erwin Strauss,
esse célebre psiquiatra de orientação fenomenológica que, a partir do fenômeno
do suspirar, publicou em 1952 uma magnífica “Introdução a uma teoria da expressão”:
Infelizmente,a
experiência imediata é inefável; não se conhece por si mesma, não porque seja
inconsciente, senão porque não é refletida. Como uma Bela Adormecida que deve
esperar o Príncipe que romperá o sortilégio, a experiência imediata deve esperar
a quem esteja suficientemente dotado do poder das palavras para poder levá-la
à luz. Mas no momento em que isto se realiza, a experiência está ameaçada
por outro perigo (STRAUSS, 1952).
E o autor desenvolve então o impacto da tradição,
da formação, da interpretação, dos estereótipos e dos preconceitos, no momento
em que se coloca em palavras a experiência verdadeira e, portanto, da necessidade
de não confundir a experiência com a consciência que se tem dela ou com o
sentido que se lhe dá.
Strauss (1952) continua: “Experiência é sinônimo
de ‘experiência-do-mundo’ e de ‘experiência-de-um-mesmo-no-mundo’. Está orientada
em direção ao outro; mas não se tem a experiência do outro sem relação a um
si-mesmo, e vice-versa. Esta relação não é um composto de duas partes, Eu
e o Mundo; só existe como um todo”.
Lewin tinha dito que os fatos humanos “dependem
não da presença ou ausência de um fator ou de um verdadeiro número de fatores
abordados isoladamente, senão da constelação (estruturas e forças) do campo
específico abordado como totalidade”.
Nesta dialética do contato do campo e no campo,
da expressão do campo e no campo, da palavra do campo e no campo, pela dinâmica
complexa das afirmações e das inclusões, das ressonâncias e da empatia, eu
me vejo guiado pelo campo para fazer-me definir a psicoterapia como a experiência
de tornar-se aparente a partir do encontro com o outro.
Conclusão
Tratei neste trabalho de citar como o pertencimento
à referência modernista podia ser diferente do pertencimento à referência
pós-moderna e algumas de suas conseqüências no terreno da Gestalt-Terapia.
O filósofo J. F. Lyotard (1979), que foi o primeiro a escrever numerosos ensaios
sobre estes temas, examinou cuidadosamente o conceito de pós-modernidade.
Destaca que esta pós-modernidade implica uma referência à modernidade. “Pós”
não significa verdadeiramente ruptura com relação ao que lhe precedia, mas
ao contrário, implica, de certo modo, uma continuidade e significa que tudo
isso se encontra impregnado dentro da modernidade. Para um gestalt-terapeuta
familiarizado com o conceito de “pós-contato”, esta idéia é fácil de compreender,
já que o pós-contato não é uma experiência independente do contato; faz parte
do contato, é uma modalidade concreta, uma etapa temporária da construção
de uma gestalt específica, a saber, a da desconstrução por assimilação. A
pós-modernidade que citei aqui, com todas as reticências ligadas ao termo,
deve ser considerada, portanto, como prolongamento e recomposição, e não como
ruptura. Esta é, ademais, a direção na qual pesquisava Mc Leod (1995) no artigo
já citado, ainda que eu não compartilhe todas as suas conclusões.
Também, e às vezes de maneira difusa, é precisamente
o que parece se produzir no livro de Perls e Goodman: trataram de combinar
e de tornar dialético em seu capítulo “teoria do self” algumas das
modalidades de teorização que surgem da Modernidade, com outras que pertencem
à filosofia pós-moderna. Isto foi possível graças a uma dialética da temporalidade
que podemos captar nesta concepção, mas para fazê-lo precisamos de tempo e
de muitas conversas! As poucas reflexões esboçadas aqui são um convite à reflexão
compartilhada e não a um dogmatismo, seja qual for. No fundo, o convite da
pós-modernidade é sobretudo um convite ao desconstruir. O ceticismo que se
liga à realidade e à verdade se amplia em direção ao conhecimento, ao poder,
ao self, à linguagem..., que não são interpelados na maioria das vezes
e que servem para legitimar e perenizar nossa cultura ocidental. Os indivíduos
constroem suas realidades e as realidades são mantidas pela interação social
que, por sua vez, confirma as crenças, que têm, aliás, origem social. A pós-modernidade
pode tranqüilizar-nos em relação a nossa necessidade de certezas, e nos permite
rebater a novidade no já conhecido. É possível sair e ir ao encontro do desconhecido?
Angústia! Recordemos o título do relato psiquiátrico romanceado de Hannah
Green, que gostava de citar Perls: “Nunca te prometi um jardim de rosas”.
Nota do Tradutor
*Este
artigo foi traduzido por Mônica Botelho Alvim, Doutoranda
em Psicologia Clínica na UnB - Universidade de Brasília; Mestre em Psicologia
Social e do Trabalho – UnB. Membro da Diretoria do Instituto de Gestalt-Terapia
de Brasília. Professora no Curso de Psicologia da Universidade Católica de
Brasília. E-mail: alvim@contatopsi.com.br
**Diretor
do "Institut Français de Gestalt-thérapie" Co-fundador e coordenador
da GTin, Gestalt-Therapy International Network.Psicoterapeuta e didata pelo
"Syndicat National des Praticiens de la Psychothérapie"Membro do
"Collège européen de Gestalt-thérapie et directeur des "Cahiers
de Gestalt-thérapie".Ex-presidente da EAGT - European Association for
Gestal-Therapy Membro do comitê de redação do International Gestalt Journal.
1 Aqui o autor se refere ao livro Gestalt-Terapia,
que, segundo ele, traria idéias modernistas e pós-modernistas.
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Abstract
What I propose to explore here, under this somewhat mysterious
title, are some of the lines of force and paradigms which run implicitly or
explicitly through the theory of Gestalt-therapy, with the idea of drawing
a certain number of consequences for clinical practice. I believe that if
we can better understand these lines of force, we will be able to apply them
better, and at the same time more easily understand the lines of fracture
which divide those who promote Gestalt-Therapy. I also want to stress at the
outset that I am not entirely happy to be relying on this term “post-modernism”,
which is far too charged with a variety of connotations; but I will make use
of it all the same for want of a better one, while trying to specify what
I see as the shape and limits of the concept.
Keywords
Gestalt-Therapy; post-modernism; field; self;
therapeutic relationship.
Recebido em: 13/06/05
Aceito para publicação em: 29/06/05
Endereço:
jm.robine@wanadoo.fr; gestalt-ifgt@gestalt-ifgt.com