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Trabalho
Infantil e Ideologia nas Falas de Mães de Crianças Trabalhadoras
Infantile Work and Ideology in Speak of Mothers of Children Workers
Izabel
Christina do N. Feitosa*
Magda
Dimenstein*
Resumo
O trabalho
infantil é proibido por lei, mas estudos mostram o crescente número de crianças
trabalhando no mundo. Acreditamos que os discursos acerca do trabalho infantil
vêm sendo historicamente reproduzidos pelas instituições socializadoras da
criança como a família. Esse estudo objetiva discutir o que mães pensam sobre o
trabalho de seus filhos. Realizamos grupos focais com mães de crianças que
estudam e trabalham no cultivo das hortas em Gramorezinho (Natal-RN).
Percebemos o quanto a ideologia do trabalho está imersa nas práticas
discursivas dos sujeitos. As mães possuem uma história de uma infância de
trabalho e reproduzem uma vivência de trabalho para seus filhos. O trabalho
aparece como uma alternativa importante para a não permanência das crianças nas
ruas. Percebemos, portanto, que quando se trata da criança pobre, o trabalho
infantil apresenta-se como uma prática que vem sendo reforçada historicamente
pela família.
Palavras-chave:
Trabalho infantil; infância; família; ideologia.
Introdução
Atualmente, o trabalho infantil tem sido palco
de grandes discussões nos mais diversos setores da sociedade. Pretendemos neste
artigo tratar dessa temática, tendo como base algumas reflexões surgidas a
partir das falas das mães de crianças trabalhadoras. Essas reflexões são frutos
da dissertação de Mestrado elaborada por Feitosa (2003) sobre o Trabalho
infantil na agricultura: sentidos produzidos pelas mães e pelos professores.
Um primeiro aspecto
importante a ser considerado é a definição de trabalho infantil que orienta
nossa abordagem. Utilizamos a definição elaborada por Fukui et al (1985)
e pela Organização Internacional do Trabalho - OIT. Trabalho infantil refere-se
ao conjunto de atividades que pessoas menores de 15 anos realizam, estejam ou
não recebendo remuneração pelo mesmo, segundo a convenção 138/OIT, e que
possibilitam a sua sobrevivência e a de outros. Entretanto, não são todas as
formas de trabalhos realizados que se quer abolir. Há situações em que a
realização de certas atividades é legítima, pois além de estarem adequadas à
maturidade física e emocional, à idade, possibilita a socialização e a tomada
de responsabilidade por crianças e adolescentes. Segundo a convenção 182/OIT,
referida por Silva, Neves Júnior e Antunes (2002), busca-se combater
(...) o trabalho
realizado por pessoas abaixo da idade mínima especificada pela legislação
nacional (de acordo com as normas internacionais) para o tipo de tarefas a
serem desenvolvidas e que, portanto, provavelmente prejudique a educação ou o
desenvolvimento pleno da criança ou adolescente; o trabalho perigoso, que ponha
em risco bem estar físico, mental ou moral da criança; e as formas
inquestionavelmente piores de trabalho infantil, ou seja, escravidão,
prostituição, conflitos armados, pornografia e outras atividades ilícitas (p. 21).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e o
Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) proíbem qualquer trabalho aos
menores de 16 anos e, atualmente, existem políticas e programas de combate e
erradicação do trabalho infantil, especialmente dessas formas mais exploradas
que implicam em sérios prejuízos, sejam de saúde e/ou educacionais. O PETI
(Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) é uma dessas iniciativas,
juntamente com os programas de renda mínima, geração de emprego e renda,
complementação da renda familiar, dentre outros.
Todavia, Campos e Alverga constatam que
toda a
proibição e evidência das conseqüências nefastas do trabalho precoce não têm
sido suficientes para fazer estancar o crescimento dos índices das novas
vítimas flagradas no trabalho doméstico, na agricultura, nas atividades
terceirizadas e domiciliares etc. (2001, p. 228).
Os autores apontam para as renovadas formas de
inserção de crianças no trabalho e o crescente número de crianças trabalhando
no setor produtivo e de famílias, evidenciando o apoio familiar à inserção
precoce no trabalho. Ou seja, apesar de todas as ações de sensibilização e
fiscalização em torno da erradicação do trabalho infantil, ainda é grande o
número de crianças e adolescentes que começam a trabalhar precocemente.
De acordo com Silva et al (2002), as
estimativas da OIT no ano de 2000 eram de que haveria no mundo mais de 351
milhões de crianças entre 05 e 17 anos economicamente ativas, das quais 245
milhões efetivamente trabalhavam, sendo que, dessas, 178 milhões estavam
inseridas na categoria piores formas de trabalho e 170 milhões realizavam
trabalhos perigosos. Apesar da maior parte dessas crianças estarem concentradas
em países pobres da Ásia e Pacífico (60%), África (23%) e América Latina e
Caribe (8%), o fenômeno também está presente em países desenvolvidos. A maior
parte dessas crianças, cerca de 70%, segundo os autores acima citados, trabalha
em atividades rurais e extrativistas, em plantações familiares, com uso de
agrotóxicos sem utilização de equipamentos adequados e em grandes jornadas de
trabalho.
No Brasil, em 2001, existiam 32,8 milhões de
trabalhadores entre 05 e 14 anos de idade, sendo que 49,2% tinham entre 5 e 9
anos e 50,8% entre 10 e 14 anos. Desse total, 39,4% viviam na região sudeste e
32,6% na região nordeste. É importante ressaltar que as atividades
desenvolvidas por essa população se diferenciam dentro dos setores rurais com
predomínio da agricultura, e urbanos, com ênfase na indústria e comércio, bem
como em relação ao sexo: 65% de meninos e 35% de meninas trabalhando, tanto no
campo quanto na cidade (IBGE, 2002).
O relatório do Ministério do Trabalho (2000),
baseado nos dados do IBGE de 1999, aponta que dentre os estados nordestinos, a
Bahia responde pelo maior número das ocupações de pessoas de 05 a 15 anos
(27,52%), e o Rio Grande do Norte pelo menor com 2,48%. Nesse estado, a
agropecuária é o tipo de ocupação que mais se destaca, corroborando dados
nacionais e mundiais, seguidos do turismo, da produção de farinha, sal e da
pesca. Acrescenta-se o fato de que, nacionalmente, a grande maioria desses
trabalhadores (74,27%) não é remunerada e tem longa jornada de trabalho, fato
que também se aplica à realidade local (LIMA, 2001).
Nota-se, dessa forma, que o trabalho agrícola abrange grande parte
da mão de obra infantil. Conforme Filho e Francis (1997), o trabalho infantil é
visto como parte integrante do trabalho na agricultura familiar. Estes autores utilizam
uma definição de agricultura familiar que destaca dois aspectos: o uso do
trabalho e a tomada de decisões. Portanto, é considerada agricultura familiar
unidades trabalhadas pelos membros de uma família, os quais tomam as decisões
sobre produção, consumo, comercialização e investimentos. Estas unidades podem
estar organizadas sob a forma de propriedades e/ou sob a forma de arrendamento,
produzindo bens de subsistência e/ou para o mercado.
Essa definição de agricultura familiar, na qual
está incorporado o trabalho infantil, caracteriza a nossa população investigada
em Gramorezinho, Zona Norte da cidade do Natal/RN. As mães que participaram da
nossa investigação são as proprietárias das unidades de trabalho e produzem
hortaliças para subsistência e mercado. Estas mulheres são as que iniciam suas
crianças no processo de produção dessas hortaliças. Levam seus filhos para as
hortas desde bebês, uma vez que não têm com quem deixá-los em casa, de forma
que as crianças crescem em meio ao trabalho de suas mães. As atividades se
iniciam junto às brincadeiras, o que começa por volta de 4 a 7 anos de idade.
Depois, já com 8 ou 9 anos, as atividades vão tomando o caráter de
obrigatoriedade para as crianças.
As crianças participam de quase todo o processo
de trabalho das horticulturas realizado pelos adultos. A única atividade que
elas não realizam é a aplicação do agrotóxico, pois a população investigada
atribui aos adultos a responsabilidade dessa tarefa, por sua alta
periculosidade. As atividades realizadas pelas crianças consistem em adubar a
terra, limpar a leira, fazer a rega (aguação) das hortaliças, arrancar e
amarrar os molhos (coentro, alface, etc.). A rega é uma atividade realizada
manualmente com mangueiras ligadas a bombas elétricas. Em média, possuem uma
carga de trabalho que vai de 3 a 6 horas por dia e não são remuneradas.
Além do trabalho, essas crianças estudam na
escola local, cujo ensino é da educação infantil ao 2º ciclo. Dividem o tempo
entre a escola e o trabalho, sendo este realizado em horários que não coincidem
com o da escola. Vale salientar que essas crianças estão inseridas no Programa
Bolsa Escola, um programa de renda mínima que busca eliminar o trabalho
infantil. É importante ressaltar que o
programa ajudou a diminuir as faltas devidas ao trabalho, o que ocorria
principalmente nas sextas-feiras, quando as famílias se preparavam para vender
as hortaliças nas feiras de final de semana. No entanto, não eliminou a
existência do trabalho infantil.
Algumas dessas crianças, no final de semana,
trabalham em hortas de terceiros, realizando as mesmas atividades anteriormente
descritas. Recebem uma remuneração variando entre 10 a 20 reais por uma jornada
que pode variar de 4 a 7 horas de trabalho. Para as mães, essa é uma atividade
importante para os filhos, pois, além de ser remunerada, ajuda a ocupar o tempo
ocioso de suas crianças.
Em relação à situação encontrada em
Gramorezinho, algumas questões nortearam nossa investigação: o que faz com que
tais famílias, mesmo tendo suas crianças inscritas em programas de atendimento,
continue mantendo o uso da mão-de-obra infantil, ainda que tal prática seja
proibida e impeditiva de recebimento de complementação de renda?
Quando se investiga na
literatura do campo as determinações para a ocorrência do trabalho infantil, a
pobreza, geralmente, se apresenta como a principal causa do fenômeno. Campos
(2001), na sua tese intitulada “Pobreza e Trabalho Infantil sob o Capitalismo”,
conduz sua explicação para o mecanismo intrínseco ao capitalismo, o qual gera
pobreza e cria as condições para a reprodução do fenômeno da inserção precoce
de crianças no trabalho. Portanto, para o autor, a mão-de-obra infantil é um
fenômeno decorrente da pobreza, tendo como seu gerador o modo de produção
capitalista.
Não negligenciamos o aspecto
econômico, pois reconhecemos que são famílias em situação de pobreza, imersas
no modo de produção capitalista, cujo trabalho das crianças se apresenta como
algo necessário. Entretanto, embora inseridos nesse contexto, que constrói e
alimenta as condições para a reprodução do trabalho infantil, precisamos
considerar que nem todas as crianças pertencentes ao universo da pobreza estão
submetidas ao mundo do trabalho. Convivemos com crianças, por exemplo, que se
tornam pedintes ou criminosas.
Para aprofundar nossa reflexão sobre o
fenômeno, fomos para além do aspecto econômico e pensamos em outros aspectos
que pudessem estar presentes na manutenção da inserção precoce das crianças no
mundo do trabalho. Supomos que os discursos e práticas produzidos no Brasil, no
final do século XIX, em relação ao trabalho, continuam arraigados nas
instituições responsáveis pela socialização das crianças trabalhadoras como a
família e a escola.
Nesse trabalho, focamos a família, representada
pelas mães que participaram do nosso estudo. Essa representação se dá pelo
único fato de que foram elas que responderam ao convite feito pela pesquisadora
para a discussão da temática. Nenhum pai ou outro familiar se prontificou a
isso, indicando o lugar de destaque ocupado por essas mulheres no cuidado e
educação da prole. Nosso objetivo, portanto, consistiu em investigar o que as
mães das crianças trabalhadoras pensam acerca do trabalho infantil, tentando
articular as falas dos sujeitos com a noção de ideologia.
É importante indicar que partimos da idéia de
que a família é uma instituição, um aparelho da cultura. Este termo é utilizado
por Souza Filho (1995), ao fazer uma revisão do que Althusser chamou de
aparelhos ideológicos do Estado - família, escola e religião. O autor considera
esses aparelhos, não do Estado, mas da cultura, constituindo “uma malha de espaços
de socialização em cujo interior a ideologia circula, atua” (p. 55; grifos
do autor). Nesse sentido, entendemos que as falas (práticas discursivas) das
mães são polissêmicas, atravessadas por várias vozes, articulando diferentes
tempos: o histórico, dos conteúdos culturais e do imaginário social onde estão
inseridas; o tempo vivido, das vozes “situadas” na história pessoal de cada uma
e o tempo curto da interação face a face com o pesquisador, onde esses tempos
de mesclam (SPINK; MEDRADO, 2000).
Assim, optamos por uma
vertente qualitativa em pesquisa e adotamos a perspectiva construcionista dos
fenômenos. De acordo com Spink e Menegon (op.cit), nessa perspectiva a
relação sujeito-objeto é ressignificada de modo que tanto o sujeito quanto o
objeto são construções sócio-históricas e colaboradores na produção do
conhecimento. A pesquisa é vista como uma prática social e nela proporcionamos
a visibilidade dos procedimentos de coleta e análise dos dados.
Procedimentos
Metodológicos
Sujeitos da pesquisa: mães das
crianças que trabalham no cultivo de hortas em Gramorezinho, Zona Norte de
Natal/RN. Constituíram nossos sujeitos, 08 mulheres com idade entre 27 e 47
anos, todas são casadas no civil e uma delas é viúva. Possuem, em média, 04
filhos. Apenas uma tem 02 filhos. São mulheres que cuidam do lar, dos filhos e
da horta.
Trabalho de campo: iniciamos
o trabalho de campo através de contatos com a escola local. Realizamos um levantamento
inicial do número de crianças que ali estudavam e trabalhavam nas hortas.
Registramos 50 crianças: 29 meninos e 21 meninas, cuja faixa etária variava de
05 a 11 anos. Em seguida, procuramos as famílias dessas crianças. Algumas
famílias não confirmaram o trabalho das crianças, que se identificaram na
escola como ajudantes ou trabalhadoras. Então, de 50 crianças, ficaram 35 (24
meninos e 11 meninas, com idades variam entre 5 a 11 anos), cujos pais
reconheceram o seu trabalho ou ajuda. Na seqüência, nos dirigimos a essas
famílias e fizemos um convite para participarem de alguns encontros pra
discutir sobre o trabalho das crianças. Somente 08 mães responderam ao convite
e foi com elas que conduzimos a pesquisa. Somando suas crianças, temos um total
de 19. São 14 meninos e 5 meninas, cujas idades
variam entre 8 e 11 anos. Essa diferença entre meninos e meninas se dá somente
pelo fato dessas famílias possuírem um número maior de filhos do sexo
masculino.
Instrumento de pesquisa:
utilizamos o grupo focal, o qual foi utilizado para que, mediante a circulação
dos discursos dos sujeitos, pudéssemos identificar as práticas discursivas. A
experiência de Judith Green é citada por Menegon (2000) para falar da
pertinência desse instrumento. Para Judith, o grupo focal apresenta “uma
situação mais próxima dos contextos interacionais do dia-a-dia”, favorecendo
“uma interanimação dialógica povoada por um contingente mais rico de vozes, em
que a negociação de versões e posicionamentos é mais viável” (p. 223).
Em relação à condução dos grupos, seguimos
algumas orientações para um melhor aproveitamento das sessões. Minayo (1999)
cita Schrimshaw, para o qual o pesquisador introduz o tema e mantém acesa a
discussão no grupo; enfatiza para o grupo que não há respostas certas nem erradas;
encoraja a palavra de cada um; busca as “deixas” de continuidade da própria
discussão e fala dos participantes; aprofunda respostas e comentários
considerados relevantes pelo grupo ou pelo pesquisador e observa as
comunicações não-verbais e o ritmo próprio dos participantes. Rizzini et al
(1999), ao tratar da direção das sessões para que os temas e os debates sejam
aprofundados, lembra que cabe ao pesquisador tentar garantir a manutenção da
discussão em torno do assunto original e evitar que alguma pessoa domine a
discussão. Sugere, ainda, que seja ressaltada para cada pessoa a importância de
sua contribuição em participar das discussões.
O grupo
focal foi composto pelas 08 mães e, durante o período de dois meses, realizamos
05 encontros, cada um com duração de uma hora, no salão paroquial da igreja
local. Este instrumento foi escolhido porque se buscava proporcionar uma maior
circulação da palavra entre as mães, dando uma abertura para que elas compartilhassem
e refletissem sobre suas experiências. Além disso, esse espaço coletivo de
trocas poderia possibilitar a emergência de discursos ideológicos, bem como a
recriação de sentidos e conseqüentemente do cotidiano. As sessões dos grupos
foram gravadas com o consentimento de todas e posteriormente transcritas para a
análise das práticas discursivas. Utilizamos, ainda, um outro instrumento, o
diário de campo, que consiste, de acordo com Minayo (1999), em um caderno em
que constam as falas, as informações que não sejam do registro formal, ou seja,
são as conversas informais que acontecem no contexto da pesquisa.
Análise das práticas
discursivas: apoiamo-nos na abordagem
teórico-metodológica da produção de sentidos no cotidiano, segundo a qual o
sentido é uma construção social, um empreendimento interativo, datado
historicamente e localizado culturalmente (SPINK; MEDRADO, 2000).
Os homens, nas relações
sociais cotidianas, produzem discursos para dar sentido à realidade que os
cercam e é nesse processo que os discursos ideológicos se apresentam. As
práticas discursivas se apresentam como eminentemente culturais, sendo,
portanto, o veículo sobre o qual a ideologia se ancora. O alvo da nossa
investigação consistiu na produção de sentidos a partir das práticas discursivas,
articulando-as à noção de ideologia, enriquecendo assim a nossa análise.
Interessou-nos, sobretudo, identificar nas falas dos nossos sujeitos os
momentos em que se “materializava” a ideologia acerca do trabalho infantil.
Quanto ao procedimento de analise do
material de pesquisa, iniciamos com uma imersão nas falas produzidas pelos
sujeitos nas discussões de grupos, procurando deixar aflorar os sentidos, sem
prender os dados em categorias, classificações ou tematizações definidas a
priori. Fizemos um confronto possível entre sentidos construídos no processo de
pesquisa, de interpretação e aqueles referentes à noção de ideologia. Desse
confronto, analisamos o nosso material. A seguir, apresentaremos as nossas
reflexões.
O Trabalho Infantil e
a Ideologia
O conceito de ideologia que utilizamos está
fundamentado nas reflexões de Souza Filho (1995). Enquanto a concepção
tradicional restringe a análise da ideologia ao campo da luta de classes, este
autor a lança num campo de discussão mais amplo, ao entender por dominação a
submissão do indivíduo a toda Ordem Social. Essa dominação não é exclusivamente
a de classe ou de Estado, mas ela se alarga como submissão à cultura, padrões,
convenções, etc.
Conforme Souza Filho (1995), a ideologia se
inscreve no sujeito a partir dos modos de operar da linguagem e da cultura,
que, ao ocultarem o caráter de convenção humana e social, tornam invisível a
dominação. Se por um lado a linguagem e a cultura são condições para a
existência humana, por outro, seus modos de operar fazem com que a realidade
social seja vivida como algo natural e não como algo construído pela ação dos
homens, impedindo que eles se dêem conta do processo sócio-histórico resultado
das práticas sociais humanas.
Para compreender o lugar da
ideologia na cultura, torna-se importante remetermo-nos ao simbólico e ao
imaginário, pois, pela ação deles, o mundo social é dotado de sentido. Eles
estão na raiz da ideologia, construindo, em cada sociedade e época histórica,
explicações para que os homens se situem como sujeitos sociais na realidade que
os cerca.
Conforme Castoriadis (1982),
“tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está
indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele”
(p.142). Este autor em muito contribui para a nossa reflexão na esfera do
imaginário e do simbólico. O sistema simbólico consiste em ligar símbolos
(significantes) a significados (representações, significações). O simbólico
está numa estreita relação com o imaginário, pois o símbolo possui um componente
imaginário e este, por sua vez, para passar de imagem para outra existência,
deve utilizar-se do simbólico. O que ocorre é que, se por um lado, há uma
função simbólica no imaginário, por outro, o simbolismo pressupõe a capacidade
imaginária.
O simbólico e o imaginário
estão presentes no campo dos discursos que a sociedade constrói sobre si mesma
e a ideologia se constitui nesse campo, incutindo valores, normas etc, de modo
que os sujeitos não desobedeçam, mas aceitem a Ordem Social estabelecida. A
ideologia, portanto, vai prover explicações para que os sujeitos se situem numa
determinada Ordem Social, justificando-a e fornecendo os fundamentos da
existência dessa Ordem. A ideologia serve a legitimação da Ordem Social, e, por
isso, é o discurso da dominação. Essa dominação é entendida como sujeição do
indivíduo à cultura, enquanto engendrada de sistemas sociais que aparecem como
obras da natureza divina ou do acaso. Assim, a ideologia, como um conjunto de
representações/significações, oculta a natureza sócio-histórica da realidade,
tornando invisível à dominação.
Nosso interesse recai sobre
as significações simbólicas e imaginárias acerca do trabalho infantil.
Enfocamos, sobretudo, os discursos construídos sócio-historicamente na nossa
sociedade acerca deste tema, buscando perceber o que há de ideológico nesses
discursos, como essa modalidade de trabalho tem sido justificada e explicada,
fornecendo os fundamentos para a manutenção da sua prática.
Vejamos o momento em que se
engendra, na sociedade burguesa, um discurso que encaminhará a massa dos
miseráveis com suas crianças ao mundo do trabalho. Foucault (1972) aponta para
o século XVII, a idade clássica, momento em que surge “uma nova sensibilidade à
miséria [...] uma nova ética do trabalho” (p. 55). Havia o interesse em manter
a ordem geral e é posto no miserável, ao mesmo tempo, um efeito da desordem e
um obstáculo à ordem. Segundo este autor, a miséria, antes considerada mais num
sentido místico, de uma glorificação da dor e de uma salvação comum à pobreza,
passa a ser encerrada numa culpabilidade, numa certa relação entre a ordem e a
desordem. Essa nova sensibilidade, não mais religiosa, é encarada no horizonte
moral. Tem-se aqui a distinção entre os bons e maus pobres. Os primeiros são
aqueles que fazem parte da pobreza submissa e conforme a ordem que lhe é
imposta; já os segundos pertencem à pobreza insubmissa: são os que escapam,
desviam da ordem.
O trabalho passa a ser
percebido “como solução geral, panacéia infalível, remédio para todas as formas
de miséria” (FOUCAULT, 1972, p.71). O trabalho que antes era visto, num sentido
religioso, como punição, castigo devido à “queda” do homem, ou seja, a sua
expulsão do paraíso por causa da desobediência a Deus, transcende para uma nova
ética, recebendo um valor de penitência e resgate. Aderir ao trabalho, agora, é
aderir ao grande pacto ético da existência humana.
No mundo clássico, temos uma
linha de partilha entre o trabalho e a ociosidade, sendo esta considerada como
maldita e condenada, como um dos mais degradantes males da sociedade. Manter a
ordem, portanto, implica encaminhar o mundo da pobreza (incluindo as suas
crianças) ao mundo do trabalho. Com essa nova forma de encarar o mundo da
pobreza, no imaginário social, o trabalho e a ociosidade assumiram novos
lugares e discursos. Conforme Castoriadis (1982), o papel das significações
imaginárias é o de fornecer “respostas” a “perguntas”:
não se trata de
perguntas e de respostas colocadas explicitamente e as definições não são dadas
na linguagem. As perguntas não são nem mesmo feitas previamente às respostas. A
sociedade se constitui fazendo emergir uma resposta de fato a essas perguntas
em sua vida, em sua atividade. É no fazer de cada coletividade que surge como
sentido encarnado a resposta a essas perguntas, é esse fazer social que só se
deixa compreender como resposta a perguntas que ele próprio coloca
implicitamente (p. 177).
O trabalho aparece no imaginário social como
algo que vem dar uma “resposta” para as questões vividas na sociedade, de modo
que ela pudesse se organizar simbolicamente como coerente, homogênea e
harmoniosa. Quanto ao nosso estudo, o trabalho infantil é uma prática que vem
também “responder” algo aos sujeitos, no sentido de se apresentar como uma
solução para as questões vividas naquela realidade:
[...] Outra coisa: pra você ter uma criança,
você bota na escola pública, quando a gente pode botar. Aí eles estudam até
meio-dia. E meio-dia a gente vai deixar eles fazendo o quê, solto na rua? A
gente tem que botar eles pra trabalhar. [...] A gente que vê a realidade, todo
dia, o dia a dia (pausa) aí o jeito que tem é botar pra trabalhar (Relato
Carla).
Mas o
horário vago, a gente vai fazer o que com os menino? A gente tem que levar eles
(Relato Catarina).
Percebemos nas falas das mães uma preocupação
com o tempo vago de seus filhos, tempo em que não estão na escola. Há falta de
condições de oferecer outras possibilidades às crianças como colocar o filho em
um esporte, ou um curso de computação ou ainda um curso de línguas, restando
como alternativa preencher o tempo ocioso do filho com o trabalho. O que nos
chama atenção é que, no imaginário dessa população, o horário vago aparece como
uma ameaça. Tomamos o que uma outra mãe lembra: “mente vazia oficina do diabo”.
Essa “mente vazia” implica não ter com o que se ocupar e isto nas falas das
mães aparece como a condição para desembocar num mau caminho, sendo o trabalho
visto como a solução para elas.
Apesar do discurso das mães acima indicar um
reconhecimento de uma realidade social profundamente desigual, que faz com que
somente certas famílias tenham acesso a equipamentos sociais de lazer e
profissionalização dos filhos, entendemos que em nenhum momento houve uma
reflexão entre as mães a respeito, por exemplo, de como o trabalho precoce é um
forte reprodutor da pobreza. Ou seja, não é porque visualizam essa diferença
social no seu cotidiano que podemos dizer que a ideologia foi desvelada. Ela
permanece profundamente viva, à medida que seus mecanismos de funcionamento são
naturalizados, reinventados, reproduzidos e sustentados subjetivamente. Isso se
dá, inclusive, quando justificamos que o trabalho tem sido uma das poucas
estratégias ainda possíveis para evitar os riscos que a falta de políticas
sociais igualitárias proporcionam a essa parcela da população. Não escapamos
nem da valorização do trabalho nem da legitimação e naturalização da iniqüidade
social.
Essa discussão, portanto, está bem próxima do
pensamento de Souza Filho (1995), quando aponta para a ideologia enquanto
conjunto de representações/significações que oculta a natureza sócio-histórica
da realidade, tornando invisível a dominação, a qual consiste na submissão aos
sistemas sociais que são vistos como obras de natureza divina ou do acaso.
No Brasil, a partir do século XIX, é que se
produz um novo discurso sobre o trabalho. A nova ética do trabalho que se
alastrou pela Europa na era clássica, conforme Rizzini (1998), foi transposta
para o Brasil, tomando corpo no final do século XIX, num momento em que o país
vivia uma série de mudanças como a abolição da escravatura, a constituição de
uma nação, o processo de industrialização. Ao trabalho que, até então, era
considerado algo degradante, humilhante, associado à escravidão, passa a ser
impressa uma nova concepção: a do trabalho dignificante e enobrecedor. Era
preciso atribuir ao trabalho um novo valor, pois na sociedade com todas essas
mudanças havia a percepção de um perigo iminente. É posto no trabalho a
“salvação” (termo utilizado na época) e os que insistiam em escapar a essa nova
visão, chamados “avessos ao trabalho”, eram discriminados e coagidos a
trabalhar.
A pobreza passa por um processo de moralização.
Na virada do século XIX para o XX, Rizzini (1998) aponta uma escala fictícia de
valores, na qual as virtudes estariam na sua extremidade superior e os vícios,
na inferior. Dentro dessa “escala de moralidade” era o cultivo ou não do hábito
de trabalhar que determinava a virtude ou o vício e estabelecia uma divisão
entre o que era moral e imoral, digno e indigno. Os pobres trabalhadores se
situavam mais acima na escala de moralidade. Os que permaneciam no ócio, os
avessos ao trabalho, eram os viciosos, os imorais, os que faziam parte da
pobreza indigna e, por se mostrarem insubmissos, eram vistos como uma ameaça em
potencial, associada à criminalidade.
As falas das mães trazem essa visão
moralizadora do trabalho infantil, bem como a oposição à ociosidade que é
encarada como um mal a ser evitado e combatido. Esse trabalho possui uma função
moralizadora, a qual vem servindo também de justificativa para a condução das
crianças ao mundo do trabalho. Observemos este diálogo no grupo das mães:
Carla:
[...] Porque no caso que era um tio meu, que o pai dele mimava ele demais. Ele
um rapaizão com 17 anos. Ele morava com a gente, aí eu trabalhava, aí quando
papai dizia: ‘bota fulano pra trabalhar!’. Aí o pai dele: ‘Não, meu filho num
vai trabalhar, não porque é muito novo, nunca pegou em enxada, num sei o quê’.
Quando pensou que não, ele já vivia na marginalidade e quando matou gente, foi
preso. Num foi pior pra ele? Num era melhor ter ensinado pra ele a trabalhar?
-Você acha
que o trabalho ajuda nessas coisas?
Carla:
Ajuda! [...] A gente tem que botar eles pra fazer alguma coisa, porque se a
gente deixar, vai ser desse jeito. Porque tem exemplo que a gente vê, aí
pronto. Tem que botar pra trabalhar, porque pelo menos eles tão ocupando a
cabeça em alguma coisa. (...).
Há um medo por parte das mães de que seus
filhos se tornem criminosos, vagabundos, que se envolvam com drogas e o
trabalho vem como a alternativa de que elas dispõem para evitar que essas
coisas se sucedam na vida dos seus filhos. Em conversas informais, escutamos
frases como estas: “Aqui tem um dilema: criança não fica na rua. Aqui não tem
criança envolvida com droga, não se vê ninguém pegando o que é do outro”;
“Estando no trabalho, não estão na rua pegando coisa alheia”; “A rua só serve
para aprender palavrão, aprender o que não presta”. O trabalho aparece como uma
forma de evitar que a criança permaneça na rua, sendo esta vista pelos sujeitos
como um espaço privilegiado para acontecer tudo aquilo que elas temem.
Conforme Rizzini (1998), no final do século XIX
e início do século XX, as famílias trabalhadoras educavam seus filhos de modo a
afastá-los dos “ambientes viciosos” e “evitavam, acima de qualquer outra coisa,
a escola perniciosa da rua” (p. 91). Segundo Osterne (1999), nesse período, no
discurso médico a rua era vista como a “escola do mal”. Em nosso campo de
estudo, escutamos muitas falas referentes à rua, cujo sentido de “escola”
nociva estava presente. A rua entrou no imaginário da nossa sociedade como um
espaço nocivo, devendo ser evitado.
Da Matta (1997) considera “casa” e “rua”
categorias sociológicas, conceitos que tentam dar conta do que uma sociedade
pensa, institui em seu código de valores e constitui seu sistema de ação. A rua
é vista como um espaço movimentado, propício às desgraças e roubos, portanto,
um local perigoso. Ariés (1981) nos oferece uma visão do momento em que a rua
perde a sua função antiga de espaço de socialização e torna-se um lugar
proibido para a infância. Isto se dá com as mudanças ocorridas na sociedade
moderna, a partir do século XVII, com a privatização da família e a instituição
de outros espaços, como a família e a escola, para socializar e educar a
criança.
Como o espaço da rua torna-se proibido, Osterne
(1999) aponta que a criança, não estando na escola, deve permanecer em casa.
Surge, então, uma preocupação dos especialistas em retirar da rua as crianças
pobres, os órfãos, os mendigos e os vagabundos, os quais, na visão deles, não
passavam de futuros delinqüentes e criminosos. Portanto, a criança na rua
constituía uma ameaça, enquanto que no trabalho era considerada enquadrada e em
segurança. Esta é uma preocupação que aparece em quase todos os momentos nos
quais tivemos contato com o nosso campo de estudo. A rua e a ociosidade são
consideradas o ponto de partida para a vagabundagem, a criminalidade, o uso de
drogas.
É claro que esse medo não é infundado. Sabemos
que, entre os jovens brasileiros, a violência é o maior problema enfrentado
atualmente. As taxas de mortalidade por causas violentas (homicídios, suicídios
e acidentes de transporte) entre jovens de 15 a 24 anos alcançam cifras muito
altas, sendo predominante entre homens, pretos, pobres e com baixo nível de
escolaridade (WAISELFEISZ, 2004). Ou seja, a falta de suporte social e de
alternativas, para a maioria dessas famílias, constitui fontes de
vulnerabilidade reais para suas crianças e jovens. Elas têm buscado enfrentar
tais condições utilizando recursos ainda disponíveis, como é o caso do
trabalho, que tem funcionado tanto como uma forma de proteção, quanto de
reprodução de capital humano.
A Família como
Aparelho da Cultura e Transmissora da Ideologia
As mães participantes do nosso estudo ocupam,
dentro das suas famílias, um lugar de destaque. São elas que assumem a
responsabilidade de conduzir suas crianças ao espaço da horta e de afastá-las
dos perigos da rua e da ociosidade. Tal lugar, construído socialmente, está
relacionado à influência que os higienistas tiveram aqui no Brasil no início do
século passado, criando uma nova organização doméstica, redefinindo os papéis
da família e da infância, dando à mulher um papel de destaque no cuidado dos
filhos (COSTA,1983). Vejamos o que as mães falam:
A mãe vai trabalhar, deixa eles em casa. Eles vão pra rua, né? A gente vai trabalhar, leva eles (Relato Júlia).
...Aí eles, às vezes, ia mais o pai, mas se eles quiser fazer faz, se num quiser, também, num tá nem aí. Ninguém é obrigado a fazer (pausa). [...] Só vão se eu obrigar mesmo e mandar eles ir. É porque não gostam mesmo.[...] O meu (o marido) diz assim: ‘Oh, manda eles vim fazer’, porque sabe que se eu mandar eles vem (Relato Priscila).
Os meus se
eu mandar fazer eles fazem. O pai também é assim, [...] ele não obriga ninguém
a fazer nada, não. [...] Mas eu, não. Eu fico em casa, mas eu passo a ordem:
‘Olhe, vá embora, você vá trabalhar porque tem que ir’ (Relato Ana).
Conforme Donzelot (1986), a estratégia de
familiarização nas classes populares, na segunda metade do século XIX, tem como
suporte principal a mulher, a quem cabia a função de tirar o homem do cabaré e
as crianças da rua. Como aparelho da cultura, a família é um campo privilegiado
da ideologia. Por isso, enfatizamos essa instituição como portadora e
propagadora da ideologia, daquilo que constitui dominação da Ordem Social. No
processo da ação socializadora, educativa, essa instituição atua como agência
da ideologia.
Lembrando Durkheim, essas crenças e práticas
que nos são transmitidas pelas gerações anteriores, nós adotamo-las “porque,
sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obra secular estão investidas de
uma autoridade que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar” (1978, p.
91). Nessa afirmação, o autor aponta
algumas características da ideologia: uma obra coletiva e quando temos
uma crença que nos é cara nos confrontamos com o caráter da sacralidade, da unidade,
do consenso. Para este autor, os pais e os professores estão como os
representantes e intermediários da educação, de uma coação que a criança recebe
para se constituir como um ser social. É uma coação permanente, pois todos
estão obrigados a ser, a estar na lei.
A partir do pensamento de Durkheim, gostaríamos
de enfocar um aspecto do nosso estudo que diz respeito a uma educação das
crianças voltada para o trabalho, ou seja, a uma infância que desde cedo é
coagida ao trabalho. A inserção da mão-de-obra infantil conta com o
“consentimento” da própria família. A ideologia tem uma força imensa pelo
simples fato de tornar os seus dominados cúmplices da sua própria dominação.
Falamos de um consentimento por parte dos sujeitos implicados, “sem perceber a trama
na qual estão enredados” (SOUZA FILHO, 1995, p.76). É no seu consentimento que
a dominação encontra base e condições para o seu exercício.
As mães do nosso estudo demonstram uma
preocupação em conduzir suas crianças desde cedo para o trabalho nas hortas e
todas tiveram uma infância de trabalho, iniciando com a idade entre 05 a 07
anos. Falam de uma época de trabalho intenso, de uma dupla jornada, uma vez que
trabalhavam na horta e em casa. Para algumas, a infância de trabalho foi uma
vivência triste e sofrida, que faz com que não desejem o mesmo para seus
filhos. Todavia, o que se mantém é uma educação que conduz ao trabalho, pois,
para essas mães, o trabalho na horta é o capital cultural de que elas dispõem
para transmitir aos filhos. Ou seja, independente das condições e contextos
onde se fez presente o trabalho na vida dessas mulheres, ele funciona como um
elemento importante e definidor de suas identidades, de sua história pessoal,
constituindo-se no elemento a ser transmitido a outras gerações. Todas as
vivências de sofrimento atreladas à pobreza e à necessidade do trabalho em suas
vidas parecem ser minimizadas ou até esquecidas, frente a esse jogo de forças
da reprodução das desigualdades sociais. É como se dissessem: apesar de todo
sofrimento, aprendemos algo que podemos transmitir aos filhos. É dessa forma
que pensamos o consentimento da família. Pelbart (2003), discutindo aquilo que
Foucault chamou por biopoder (poder sobre a vida) aponta: “nunca o capital
penetrou tão fundo e tão longe no corpo e na alma das pessoas, nos seus gens e
na sua inteligência, no seu psiquismo e no seu imaginário, no núcleo de sua
vitalidade” (p.13). Ou seja, é algo da ordem de uma produção subjetiva que
sustenta também a sua própria dominação.
O trabalho, pois, é uma prática que vem sendo
transmitida de geração a geração a um tipo muito singular de infância. Estamos
falando de uma infância pertencente a uma determinada classe social, que vem
reproduzindo, através de gerações, a ideologia do trabalho. Isso não quer dizer
que outros segmentos sociais não reproduzam a mesma ideologia. Reproduzem sim,
mas só que de lugares bastante distintos. Não é incomum segmentos médios e
altos da sociedade defenderam o trabalho de crianças como forma de educação e
de controle contra a marginalização. Não é raro esses mesmos segmentos
explorarem o trabalho de crianças e adolescentes com a justificativa de que
estão contribuindo para a diminuição da pobreza, da violência etc. Entretanto,
para seus filhos, valorizam apenas certos tipos de atividades, delimitam a
idade adequada para começarem a trabalhar, isto é, o trabalho é diferentemente
vivido nas diversas classes sociais. Consideramos, pois, que as famílias
estudadas nesse contexto específico vêm reproduzindo os sistemas de valores e
as tradições, as práticas historicamente construídas em relação ao trabalho
infantil na classe social a qual pertencem.
Considerações Finais
No Brasil, durante décadas, a criança
pertencente ao universo da pobreza foi encaminhada ao trabalho, encontrando respaldo
em todo o corpo social. A partir dos anos noventa, surgem as políticas para
combater o trabalho infantil com estratégias de prevenção e erradicação. No
entanto, há uma distância enorme entre o que é pensado e decidido em termos de
políticas e as realidades vividas pelas famílias, que não só apóiam, mas,
muitas vezes, impõem a entrada das crianças no trabalho. Nossa preocupação não
foi com o fato de que essas famílias, na sua maioria, necessitam do trabalho
dos filhos. Sabemos disso, bem como entendemos que esse trabalho possibilita,
muito precariamente, um certo compartilhamento de bens sociais e a aceitação
por parte da sociedade. Nosso intento era apontar as malhas invisíveis que
sustentam a reprodução dessa ideologia, seja por ocultação, seja por falta de
estratégias socialmente compartilhadas capazes de alterar esse jogo de poder.
Ao lançarmos uma escuta às mães, tentando
apreender os sentidos que atribuem ao trabalho infantil, encontramos sutilezas
importantes vividas no cotidiano daquela realidade, que se tornam obstáculos
nas ações de combate e que precisam ser conhecidas e enfrentadas. A articulação
das falas dos sujeitos com o campo da ideologia possibilitou uma análise mais
aprofundada do fenômeno e, assim, produzimos algumas reflexões sobre a questão
que permeia o nosso estudo: “O que faz com que as famílias, inseridas nos
programas de combate ao trabalho infantil, continuem a encaminhar suas crianças
ao trabalho?”.
Estar no trabalho impede a circulação dessas
crianças no espaço da rua, o qual aparece imbuído de uma ameaça, um medo.
Entramos no campo do imaginário dessa população em relação à rua e ao trabalho.
O trabalho é o que livra as crianças dos perigos que a rua e a ociosidade podem
trazer, tais como a criminalidade, a vagabundagem, o uso de drogas e outras
mazelas sociais. Os sujeitos aqui em questão respondem à nova ética do
trabalho, aderindo a essa ideologia. É como se para essas crianças, que vivem
no universo da pobreza, não houvesse outra possibilidade na vida, a não ser um
encaminhamento ao mundo do trabalho. Essas crianças continuam sendo percebidas
no imaginário da nossa sociedade como um problema social, como seres que estão
em vias de tornarem-se delinqüentes ou criminosos, sendo encaminhados ao
trabalho como forma de prevenção. Essa percepção é a que encontramos nos
discursos dos participantes da nossa pesquisa. Em relação ao nosso campo de
investigação, constatamos, portanto, que os discursos e práticas produzidos no
Brasil, no final do século XIX, sobre o trabalho infantil, permanecem presentes
nas mães responsáveis pela socialização das crianças.
NOTAS
*Professora
substituta do curso de Graduação de Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Mestre em Psicologia
** Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Dra.em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
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63-92.
WAISELFISZ, J. J. (Org.). Relatório de Desenvolvimento Juvenil 2003. Brasília: UNESCO, 2004.
Abstract
Child labor is prohibited by law, but studies
reveal a growing number of children working in the world. We found that the
discussion about child labor has been historically reproduced by children´s
socializing institutions, like the family. This study has as its objective to
discuss what mothers think about the work of their children. We created focused
groups with the mothers whose children are students and work in the cultivation
of vegetables in Gramorezinho (Natal, RN). We perceived how much work ideology
is immersed in the discursive practices of the participants. The mothers
themselves come from a background of child labor and reproduce the experience
of work in their own children. Work appears as an important alternative for
keeping the children off the streets. We perceived, therefore, that when one
refers to poor children, child labor presents itself as a practice
that has been reinforced historically by the family.
Keywords
Child labor; children;
family; ideology.
Aceito para publicação em:
06/01/2005
Endereço: izabelsec21@yahoo.com.br;
magdad@uol.com.br