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Método
Dialético: Uma Construção Possível na Pesquisa em Educação da Infância?
Dialetic Method: A Possible Construction for Research into Education in the Childhood.
Ivone Garcia Barbosa
Solange Martins Oliveira
Magalhães
Este trabalho objetiva enunciar algumas reflexões
pontuais no campo da pesquisa sobre as práticas educativas utilizadas na
educação da infância, enfatizando questões pertinentes ao método de pesquisa.
Toma, então, como objeto de sua análise, estudos e investigações já concluídos
ou em andamento procurando apreender a constituição de possibilidades de orientação
dialética. Têm-se em vista a construção de novos olhares sobre o processo
investigativo, a partir dos quais seja possível redimensionar não somente as
análises como os próprios objetos pesquisados. Considera-se que a reflexão
metodológica é uma condição necessária para a (re)criação de paradigmas
teórico-epistemológicos que possibilitem interpretar o dinamismo do movimento e
das interconexões que compõem aqueles objetos. A superação da pesquisa
assentada em processos fossilizados que não consegue apreender a inversão da
realidade – estabelecida no processo de representação sobre as relações de
produção, as relações sociais e o próprio conhecimento – apresenta-se como um
grande desafio para que a educação da infância seja, cada vez mais, objeto de
múltiplos olhares, configurando um trabalho em zonas fronteiriças do
conhecimento. Tal perspectiva é uma exigência do próprio método dialético.
Palavras-chave
Educação da infância; práticas
educativas; pesquisa; método dialético.
O debate sobre a qualidade educativa nas
propostas de atendimento de crianças menores de sete anos tem se intensificado
no Brasil, sobretudo após a década de 80. Além de ressoar na luta por reformas
educacionais que assegurem a premissa da qualidade, o debate reflete e se
expressa em novos aportes teóricos e metodológicos, tanto no campo das práticas
pedagógicas como no da pesquisa.
É sobre o segundo campo que o presente trabalho pretende tratar, configurando algumas reflexões sobre as possibilidades de orientar nossas pesquisas sobre a infância e sua educação de uma perspectiva mais dialética. Nesse sentido, o grande desafio é a construção de novos olhares sobre o processo educativo e a infância, de modo a constituir categorias de análise que permitam compreender o movimento de constituição e de manifestação aparente dos processos individuais e coletivos, explicitando a totalidade e provisoriedade das relações e práticas sociais.
Evidenciar a contradição entre a aparência e a essência dos fenômenos e da realidade é princípio e condição essencial para superarmos a pesquisa que se assenta em processos fossilizados e que não consegue apreender a inversão da realidade que se estabelece no processo de representação sobre as relações de produção, as relações sociais e o próprio conhecimento.
Tomando como base leituras de Marx (1983; 1989) e de outros autores como Wallon (1975), Vygotsky (1998, 2000, 1996) e Moscovici (1961), entre outros, consideramos que o método dialético trata de explicar e não apenas descrever. A ciência, que está sempre em construção, não é uma simples réplica da realidade. Podemos afirmar que a explicação sobre as condições de existência e sobre os processos intrapsíquicos e culturais não deve ser reduzida a um princípio explicativo único. Ou seja, apesar de, ao longo da atitude metodológica, buscarmos algo comum nos objetos de pesquisa ou suas manifestações e determinantes, é preciso não reduzir as contradições e diferenças, ainda que para um certo “ajuste” ilusório de linguagem. A natureza dos fenômenos pode ser bem diferente, apesar das semelhanças em sua aparência. Ademais, no caso dos processos psíquicos, estes não podem ser relacionados apenas a um processo do próprio sujeito e, simultaneamente, só às condições de sua existência material. O enfoque que toma esses processos de uma perspectiva meramente individual caracteriza uma postura positivista da pesquisa.
Para Vygotsky (1998, p. 77),
qualquer abordagem fundamentalmente nova de um
problema científico leva, inevitavelmente, a novos métodos de investigação e
análise. A criação de novos métodos, adequados às novas maneiras de se colocar
os problemas, requer muito mais do que uma simples modificação dos métodos
previamente aceitos.
De fato, os fenômenos concretos são inesgotáveis, se considerarmos em separado cada um de seus traços. Por essa razão é que precisamos buscar aquilo que os convertem em objetos científicos e não apenas objetos de simples curiosidade comum. Isto é, não basta olhar para elementos que chamam nossa atenção de modo imediato, mas para o que realmente nos fará compreender as especificidades do objeto de investigação. É com esse intuito que em nossas pesquisas temos buscado alguns aspectos e características que situem a educação da infância no substrato sócio-cultural de cada época, compreendendo, então, sua historicidade, algumas leis e condições gerais do conhecimento e as exigências objetivas do campo da educação e, em especial, da educação infantil.
Ao
constituir o olhar sobre a educação da infância referida às relações parentais,
Por exemplo, temos resgatado teórica e empiricamente a produção sobre as
condições históricas de transformação das relações familiares, seus reflexos
nas expectativas, representações e ações dirigidas à educação das crianças e as
formas como se manifestam as relações cotidianas. Para tanto, tomamos como foco
principal o processo de socialização e a possível manifestação da violência
doméstica contra a criança (MAGALHÃES; BARBOSA, 2003).
Os
estudos mostram que os princípios e as práticas educativas diferem
profundamente nas diferentes épocas e grupos. Na referida pesquisa, e em outras
que estamos desenvolvendo, os dados permitem afirmar que essas práticas
educativas e o processo de socialização vão sintetizar crenças, ideais,
conceitos, valores e regras sócio-culturais, permitindo às crianças a
estruturação da sua identidade e de sua individuação. Esse processo se vincula
às formas como cada grupo define a criança.
As
variações histórico-culturais das representações sobre a criança e a infância
levam-nos a reconhecer a centralidade das dinâmicas de transformação social e
das modificações pelas quais passa a própria criança. A socialização das
crianças, a formação de sua auto-imagem, seu auto-conceito, são processos que
se imbricam na complexidade das sociedades e dos grupos e dos diferentes locus
educacionais em que aquelas estão inseridas.
Captar
esse movimento sob uma perspectiva dialética tem envolvido não apenas uma reflexão teórica, mas a busca
por um método investigativo que nos aproxime da complexa dinâmica dos fenômenos. Não são raras as vezes em que
temos nos deparado com limitações das próprias pesquisadoras e dos instrumentos
mediadores ao longo das investigações.
Assim,
desenvolvemos uma pesquisa no período de 2000-2001 sobre as práticas docentes
em instituições públicas de educação infantil e a forma como as
professoras-pedagogas manifestam o pensamento sobre as práticas, apreendendo
significados e sentidos constitutivos da identidade profissional (ALVES, 2002).
Consideramos a contradição como categoria de análise, já que os
significados não apenas representam identicamente os processos da atividade
humana e as dinâmicas de sua realização cotidiana; eles também são
constitutivos daqueles processos, podendo mesmo se apresentar como uma representação
invertida da realidade. Observações nesse sentido foram apontadas por Marx
(1983, 1989), bem como nos estudos de Badinter (1985) sobre o mito do amor
materno, podendo-se de antemão concluir que tal inversão é colocada no plano da
ideologia.
Outros
aspectos mostraram-se relevantes no desenvolvimento da pesquisa: as
modificações do processo de trabalho docente, as raízes e os efeitos da
proletarização do ato de ensinar, bem como a questão de gênero e profissão.
Consideramos a alienação como categoria fundamental na análise das
informações apreendidas sobre algumas formas de constituição e manifestação nos
significados e sentidos da docência, bem como possibilidades de superação, sem
negar os limites impostos pela relação entre as concepções de trabalho docente
e a forma capitalista de organização do trabalho em geral no Brasil. A
discussão sobre a natureza do processo educativo e, mais especificamente, do
trabalho docente e a identificação destes com um processo tipicamente
capitalista, apesar de ainda apresentar algumas polêmicas, precisa ser por nós
enfrentada.
O
empenho investigativo sobre a docência na educação infantil considerou a
importância dessa temática na atual conjuntura político-educacional brasileira,
além, obviamente, dos estudos internacionais. A estreita relação entre a
qualidade educativa e a formação geral e específica dos educadores de
instituições de educação infantil vem sendo apresentada enfaticamente na
literatura da área, indicando um vínculo direto entre a atuação docente e a
implementação de um projeto pedagógico inovador, no qual se possam superar as
propostas de caráter assistencialista, compensatório, recreacionista ou
preparatório (antecipador) que marcaram a trajetória das instituições. Assim,
foi essencial a interpretação da historicidade, buscando situar a educação
infantil no próprio movimento social, de modo a compreendê-la não a partir de
si mesma nem da consciência que as professoras têm dela, mas, como afirma Marx
(1983), é preciso explicar essa consciência a partir das contradições da vida
material. Recorreu-se, para tanto, ao inventário do recente panorama legal da
educação infantil, em âmbito nacional e local, como uma das formas de
manifestação desse campo de trabalho docente.
A
pesquisa confirmou que a constituição da identidade profissional é um
processo fundamentalmente social. O
contexto de atuação, os grupos nos quais se inserem os sujeitos, veiculam
concepções e práticas portadoras de significados que vão se imbricando na
construção dos sentidos pessoais. Assim, a identidade profissional é perpassada
por um conjunto de idéias e concepções que delimitam a área de atuação do
professor de educação infantil.
Por se
tratar de um campo vinculado a um órgão público, percebemos que a
regulamentação e as propostas oficiais para a educação infantil passam a se
inserir como parte do contexto mais amplo no qual se realiza o trabalho docente
e se configura a identidade da profissão. No contexto da política neoliberal
assumida no Brasil, que estabelece a minimização dos investimentos públicos na
garantia dos direitos proclamados e a privatização da educação, face à
imprecisão de quais recursos e fontes de financiamentos destinam-se à educação
infantil, observou-se que os argumentos contrários a designação de professores
para a atuação na educação infantil acabam contribuindo para a permanência de
profissionais leigos, com custo menor. O conjunto da investigação, no entanto,
não possibilitou identificar, com precisão, a influência de elementos do
projeto institucional, nem mesmo no que se refere às concepções das
coordenações pedagógicas.
Nos
diferentes posicionamentos, pudemos apreender uma hierarquização das atividades
educativas e a constituição de relações de trabalhos conflituosas entre os
agentes do processo. O parcelamento das tarefas, diretamente relacionado a essa
hierarquia no trabalho, leva a uma perda do elo com os motivos – fins e
objetivos – do projeto educativo e, conseqüentemente, do próprio trabalho
docente.
Destacamos,
por outro lado, a presença de um processo de naturalização da noção de infância
e a apresentação da afetividade como elemento central das relações educativas e
de trabalho. A profissionalização, no sentido de fundamentar e ampliar as
práticas cotidianas estaria, portanto, vinculada a elementos de ordem pessoal.
Desse prisma, as professoras alinham-se com as concepções de “mulher-mãe-educadora
nata” que antagonizam com uma defesa de qualificação e profissionalização da
educação infantil. Privilegiam atributos pessoais – carinho, paciência, amor,
dedicação – como características suficientes para ser educadora de crianças
pequenas. Concluindo, podemos afirmar que as concepções manifestadas pelas
professoras acabam por naturalizar a docência que, segundo elas, é vista como vocação
e dom natural. Não percebem, então, o seu caráter de atividade social
ideologicamente condicionada, o que dificulta a discussão sobre mecanismos de
transformação.
De modo
paradoxal, as mesmas professoras apresentaram alguns indicativos de um
posicionamento mais crítico como, por exemplo, a valorização do estudo e da
formação reivindicada por elas para obtenção de uma qualificação específica
para a educação infantil. Os dados identificaram que a constituição da docência
e dos sentidos a ela atribuídos é um processo complexo, não linear, isto é,
caracteriza-se como uma totalidade em movimento.
Apesar
dos resultados obtidos na pesquisa mostrarem-se extremamente reveladores,
destacamos a importância do debate sobre o exercício metodológico em andamento:
as informações que foram utilizadas para serem transformadas em dados da
pesquisa decorreram de várias observações e diálogos abertos entre pesquisadora
e professoras, mas também, muitas vezes, das pontuações feitas pelas
professoras nos questionários que haviam sido propostos. Isso apresentou-se
como um entrave, na medida em que, para se compreenderem os mecanismos sociais
e a forma como esses se articulam nas representações e significados atribuídos
pelos indivíduos à docência e ao trabalho, assim como em outras categorias, seria
necessário a junção de outros instrumentos, inclusive a observação mais
constante e sistemática no processo de atuação cotidiana dos sujeitos da
pesquisa.
Essa
análise sobre o método também se faz importante na pesquisa sobre as práticas
educativas no contexto familiar, que vem sendo desenvolvida desde o ano de
2001. Nesse caso, o objeto abrange relações extremamente importantes e
complexas, exigindo uma perspectiva dialógica por parte do pesquisador, na
tentativa de identificar e traçar argumentos explicativos sobre os fenômenos
cotidianos na família e, ao mesmo tempo, a tradução desses no aspecto do
desenvolvimento da criança, obstaculizado pela violência expressa de diferentes
formas e intensidades, mas que nem sempre é um fenômeno aparente. O que é
violência, afinal? Como ela pode ser identificada nas relações concretas que se
estabelecem e que nem sempre se condicionam e se identificam com aquilo que
está posto na legislação? Até que ponto se pode compreender a violência,
processo muitas vezes velado, que exige apreensão de nuances específicas e
pontuais? Em que medida seria possível, no processo de análise, evidenciar as
relações com a história e a cultura?
Os
procedimentos de investigação dessa problemática têm abrangido entrevistas com
pais-professores de classe média, de diferentes gerações, com idades variando
entre 18 e 70 anos, que criaram os filhos em diferentes épocas. Além disso, a
partir de estudo-piloto, foram construídos questionários com o objetivo de
identificar as práticas educativas utilizadas pelos pais-professores no
processo de socialização das crianças e as formas pelas quais acreditam
“corrigir” seus filhos, os valores priorizados na formação do caráter da
criança e suas posições quanto à idade ou época do desenvolvimento infantil
para o início da educação. Os resultados obtidos serviram de referência para a
elaboração de roteiro de entrevistas aprofundadas sobre o objeto de estudo.
Os dados
demonstraram uma modificação no papel disciplinador, antes assumido pelo pai,
enquanto detentor de um poder nas relações parentais. Agora, são as mães que
demonstram uma postura mais disciplinadora e rígida, investindo em atitudes de
castigos físicos para correção de comportamentos que consideram inadequados.
Segundo seus depoimentos, quando o diálogo não consegue persuadir a criança,
acabam batendo, como forma alternativa de educar. Contraditoriamente, isso é
explicado por elas como uma atitude positiva e de afeto, isto é, batem para
mantê-las “no caminho do bem”. Por intermédio das entrevistas, tem sido
possível captar outras nuances da violência, os questionários não se
mostraram suficientes para perceber e explicar o fenômeno. Nas entrevistas, os
pais-professores se envolvem em temáticas que resgatam a memória da própria
infância, quando muitos deles vivenciaram atos de violência de seus pais.
Porém, acreditam que a intensidade do ato que cometem com seus filhos é menor
e, portanto, não representa um ato violento, mas sim uma forma necessária de
impor limites.
Na
pesquisa a que ora nos referimos, é possível afirmar que o aporte teórico que
vem sendo utilizado não tem permitido classificar, sem que isso tivesse um tom
de juízo de valores dos próprios pesquisadores e da esfera jurídica, as
atitudes dos pais em relação às crianças. Obviamente, aqui não podemos
defender, de uma perspectiva dialética, uma neutralidade do pesquisador e dos
próprios instrumentos. Porém, para fugir da estereotipia, pensamos ser ainda
necessário elaborar novos instrumentos e formas de aproximação dos sujeitos da
pesquisa, a fim de que estes possam se posicionar de modo consciente e
articulado, exprimir e até expandir os significados e sentidos pessoais sobre
suas práticas educativas, inclusive sobre a suposta violência. Trata-se, pois,
de assumir uma postura crítica frente à violência e, desse modo, objetivar
projetos de intervenção provocadores e constituintes do processo de pesquisa.
Empreendemos esforços no sentido de enfrentar um dos desafios que se coloca a
partir da premissa de que o pesquisador, como intelectual, deve não somente
explicar a realidade mas também indicar caminhos e pistas para a sua
transformação, inserindo-se ativamente na vida prática como construtor e
organizador, indicando possíveis caminhos para a transformação da realidade
(GRAMSCI, 2001).
Investigando
algumas concepções de professores sobre o papel da socialização e o modo como
se posicionam frente ao processo de formação de conceitos e valores pelos seus
alunos, cinqüenta (50) professoras de ensino fundamental, escolas particulares,
nível sócio-econômico médio, responderam a um questionário com perguntas
abertas sobre os valores priorizados em suas práticas educativas cotidianas. A
segunda etapa da pesquisa, em desenvolvimento, abrange professores da rede
pública, pais e alunos. Uma análise qualitativa permitiu identificar os valores
priorizados conforme ordem de importância atribuída pelos sujeitos: amizade;
respeito ao próximo; amor; verdade; ação-correta. As mães-professoras ainda
advogam o diálogo, o bom exemplo, a paciência e o equilíbrio
em suas ações; outras citam a religiosidade. Contraditoriamente,
os dados revelam que as práticas educativas tendem a manifestar o exercício da
autoridade através de uma postura disciplinadora, o que pode significar uma
ação no campo ideológico, desfavorável à tomada de consciência, à visão crítica
e à constituição de “quase-necessidades” (VYGOTSKY, 1998). Interpretar dados
dessa natureza não é uma tarefa simples, já que, paradoxalmente, a socialização
pode significar adoção de posturas domesticadoras-disicplinadoras e, também,
abranger aspectos ativos e construtivos, motivando a criança a agir criativa e
criticamente.
Outra
pesquisa (PINHEIRO, 2000) também identificou uma postura disciplinadora nas
práticas educativas de uma pré-escola pública. Como estratégia de levantamento
de informações sobre as crianças e os procedimentos pedagógicos em sala de aula
utilizou-se da observação participativa. Vários instrumentos foram construídos
e utilizados para facilitar a interação com as crianças, bem como possibilitar-lhes
a manifestação sobre a auto-percepção e a concepção sobre as funções da
pré-escola. Questionários de identificação, desenhos, histórias, brincadeiras
estruturadas e livres, entrevistas individuais e em grupo, foram utilizados
para compreender as representações do corpo da criança na pré-escola.
Ao final
das investigações, uma frase anunciada por uma das crianças denunciou
sinteticamente a totalidade do processo de transformação da visão da criança
sobre si mesma e o papel da escola: a criança se considerava bom aluno porque
ficava “quietinho e sentado, obedecendo a professora”. É interessante observar
que a afirmativa reproduziu literalmente uma frase de uma das educadoras no
início da pesquisa.
Como é possível
notar, nossa tentativa metodológica é a de iniciar pelo real e pelo concreto,
considerado como “síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da
diversidade” (MARX, 1983, p. 218). Isso não significa, no entanto, que se
encontrem separados como antinomias o concreto e o abstrato, já que, como bem
mostra Kopnin (1978), o sensorial e o
racional estão presentes em todo o processo de conhecimento e em todas as
formas e etapas do desenvolvimento. Esta “racionalidade” ou teorização aparece
através dos discursos, das proposições, e, em última instância, no interior das relações e necessidades sociais
cotidianas, a partir do que o homem vai construindo sua consciência.
Importa
lembrarmos nesse momento que o pensamento teórico tem suas particularidades,
constituindo-se a partir de idealizações de aspectos fundamentais da
prática-objetiva. Ao refletir essa prática, as experiências sensório-objetivas
vão cada vez mais incorporando um caráter cognoscitivo, permitindo daí certas
interações “mentais”, interiorizadas com os próprios objetos e situações e, assim,
determinando-lhes novas formas de movimento. Podemos afirmar, utilizando
análises de Rozov (apud DAVYDOV, 1982, p. 302), que a abstração
científica consiste em elucidar a independência do estado ou situação de
qualquer objeto considerado com respeito a certos fatores. Como resultado da
abstração obtém-se um novo objeto idealizado, que pode ser conhecido sob novas
condições, que não eram permitidas muitas vezes com o objeto inicial.
Portanto,
no processo de assimilação do concreto e sua reprodução como algo
espiritualmente concreto, supõe-se uma ascensão do abstrato ao concreto. Ou
seja, se inicialmente o real pode aparecer ao homem como um sensorial “dado”,
no processo de conhecimento, ocorre, devido à atividade humana, uma
transformação da visão sobre o objeto. Desse modo, o pensamento teórico
engendra em forma de conceitos e representações, o sistema de interconexões,
mediações e determinações fundamentais do fenômeno concreto, podendo revelar
sua essência.
Do
prisma dialético, a abstração é vista como um processo no qual o interesse
recai naquilo que está por trás do aparente, buscando-se descobrir as
propriedades, os aspectos e indícios, as relações que constituem a essência do
objeto concreto. A tarefa da abstração não é separar uns dos outros, os
indícios percebidos, mas através deles descobrir novos aspectos do objeto, que
traduzam as relações essenciais. Essa reconstrução teórica do concreto pode
ocorrer através de conceitos, que, como resgatou Vygotsky (2000), não é algo
morto, apenas uma noção geral ou abstrata, posto que o conceito incorpora uma
atividade objetiva do pensamento.
Seguindo
essas premissas e preocupadas em resgatar alguns elementos presentes em
pesquisas sobre a educação da infância, destacamos o trabalho de Silva (2002)
sobre aquela educação entre os trabalhadores rurais sem terra. Investigando o
significado da infância e de sua educação no Acampamento Oziel, em Goiânia, a
pesquisadora buscou resgatar a categoria infância como algo específico da vida
social. Inspirando-se em estudos de Martins (1993), Faria (1999), entre outros, ouviu adultos e crianças do
acampamento, considerando-os como sujeitos históricos.
Martins
(1993) realiza uma importante análise sobre a exclusão social, a pobreza, a
falta de direitos, a violência e exploração de crianças brasileiras, em várias
regiões do país. Resgatando a voz daqueles que, em geral, aparecem como
população silenciosa nas investigações, os textos resultantes das pesquisas,
organizadas pelo autor, acabam por nos apresentar lugares diversos da infância
e as proposições educativas que as contemplam.
Na
investigação com os trabalhadores rurais sem terra, a compreensão do processo
cotidiano de elaboração e implementação de uma educação das crianças só poderia
acontecer caso a dinamicidade das relações e o envolvimento com o próprio
movimento pudessem ser desvelados. Para isso, foi necessário superar o conceito
de neutralidade científica e política do pesquisador, sendo criadas
alternativas de aproximação e registro das crianças e adultos participantes da
pesquisa. Presente no campo de modo sistemático e comprometida com o Movimento
dos Sem Terra, a pesquisadora participou de inúmeras atividades, inclusive de
brincadeiras do grupo de crianças, de seus afazeres domésticos cotidianos, dos
momentos de estudo na escola itinerante. Ainda como havia feito com as
crianças, entrevistou adultos nos mais diversos espaços do acampamento, ora em
grupo, ora individualmente. As interações com os sujeitos foram em muitos
momentos estimuladas pelos próprios acampados, que solicitaram em alguns casos
participar das entrevistas e atividades, bem como momentos de registro em vídeo e áudio. Este estudo de natureza
etnográfica pôde desvelar alguns conceitos sobre as atividades humanas que são
consideradas pelos sujeitos como essenciais no processo educativo da infância
da classe trabalhadora: estudar, brincar e trabalhar.
Importa
observar que na análise de dados as três categorias aparecem como centrais
tanto para os adultos quanto para as crianças. O interessante aqui seria
podermos interseccionar todos os dados, de modo a compreender melhor as origens
dessa semelhança. Certamente, apesar da aparência de mera socialização
“adaptativa”, isto é, reprodutora de valores e de conhecimentos, acreditamos
que a dialeticidade posta na realidade pode nos indicar também a construção de
questionamento e de expectativa por parte das crianças sobre o universo
infantil diante das dificuldades da existência. Esta possibilidade de autonomia
de pensamento, porém, ainda que sofra o “contágio” de idéias pré-concebidas e
disseminadas pelo grupo social como um todo, deve ser também compreendida na
sua especificidade, já que as práticas educativas no acampamento e nas cidades
de características rurais, de onde a maioria se origina, permitem que as
crianças participem de diferentes atividades com adultos e de movimentos
próprios das crianças, como o “Movimento dos Sem-Terrinha”.
Nossas
reflexões sobre o campo da pesquisa em educação da infância abrangem alguns
aspectos teórico e metodológicos que consideramos pertinentes para fazer
avançar e superar a lógica mecanicista e positivista ainda presente em
pesquisas educacionais. Demonstram que é necessário romper certas regras e
(re)criar nossos métodos investigativos e de exposição, a fim de inaugurar
paradigmas e procedimentos capazes de promover a aproximação dialética com o
movimento do real em construção. Significa, desse modo, a busca por uma análise
qualitativa sobre os processos educacionais e suas relações com os diferentes
lugares da infância histórica e culturalmente constituídos. Não se pretende com
esse estudo negar toda a produção de nossas pesquisas até o presente momento;
ao contrário, reconhecemos que essas são suporte significativo para a
constituição do campo da educação infantil. Como afirmou Schaff (1995), é
preciso assumir o conhecimento como um processo de construção “verdades
parciais”, que tanto pode negar quanto incorporar o “velho” e, quando
necessário, reconhecer seu processo de caduquice.
Acreditamos
que a educação da infância deve ser, cada vez mais, objeto de investigação de
múltiplos olhares, isto é, contando com a análise de profissionais com formação
em diferentes áreas acadêmicas, que sejam capazes de trabalhar em zonas de
fronteiras do conhecimento, conforme exige o método dialético.
NOTAS
*Doutora em Educação pela PUC; Mestre em
Educação pela Faculdade de Educação da UFG; professora da Faculdade de
Educação, Universidade Federal de Goiás.
**Psicóloga, Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação/
UFG; Mestre em Educação pela UFG; professora da Faculdade de Educação,
Universidade Federal de Goiás
ALVES, N. N. L. Elementos mediadores e significados da docência em Educação Infantil na Rede Municipal de Ensino de Goiânia. 2001. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, Goiânia. BADINTER, E. Um amor conquistado – o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
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WALLON, H. Psicologia e educação da infância. Lisboa: Estampa, 1975.
Abstract
The current work intends to enunciate some valuable
reflections concerning researches into educational practices used in the
education in the childhood, emphasizing research method issues. It takes ongoing
or concluded studies and investigations as the object of analysis for new
possibilities of dialect orientation. It looks for a renew in the investigative
process to redefine not only the analysis, but also the subjects of research.
It is considered that methodologic reflections are essential to re(create)
theorical epistemological paradigms that make possible the understanding of the
dinamic of movments and interconections that compose that object. The challenge
is now to overcome researches which were set in fossilized process that can’t
apprehend reverse reality – established in the process of representation over
productionrelations, social relation and knowledge itself – and this is in
order to bring multiple sights onto education in the childhood, and then
comprise a work made in frontiers of knowledge. Such a perspective is a
requirement of the dialect method itself.
Education in the
childhood, educational practices, research, dialect method.
Recebido em: 20/07/04
Aceito para publicação em: 15/12/04
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