ARTIGO 6


A NOÇÃO DE ANGÚSTIA NA PRÁTICA CLÍNICA: APROXIMAÇÕES ENTRE O PENSAMENTO DE KIERKEGAARD E A GESTALT-TERAPIA

THE NOTION OF ANGUISH IN CLINICAL PRACTICE: RELATIONS BETWEEN KIERKEGAARD’S THOUGHT AND GESTALT-THERAPY


Manuela Bogéa Peres*
Adriano Furtado Holanda**

 

RESUMO
O artigo visa estabelecer relações entre o pensamento de Sören Kierkegaard e a Gestalt-Terapia, partindo da noção de angústia, aqui entendida como um fenômeno essencialmente humano e que revela o sujeito na sua relação com o mundo. A Gestalt-Terapia possui uma visão de homem compatível com as Filosofias da Existência e tem entre seus postulados a proposta de um retorno ao vivido, sendo uma abordagem na qual a questão da angústia pode ser compreendida em sua complexidade, a partir de uma visão relacional. A partir de algumas noções kierkegaardianas, procura-se apontar similaridades e discrepâncias entre seu pensamento e a proposta da Gestalt-Terapia para a clínica psicoterápica. Dada a existência de pouca literatura específica sobre a angústia na clínica gestáltica, espera-se fomentar questionamentos sobre o entendimento desta questão, bem como contribuir para uma perspectiva de fundamentação filosófica da Gestalt-Terapia.

 

PALAVRAS-CHAVE
Angústia; gestalt-terapia; Kierkegaard; psicoterapia.

 

INTRODUÇÃO

A noção de “angústia” permeia as teorias e práticas psicológicas, em especial no seu locus de atuação clínica. Neste contexto – bem como no senso comum –, conviver com a angústia constitui-se uma das tarefas mais difíceis na vida de um sujeito. O que se tem visto, ao longo do tempo, é uma contínua tentativa de se evitar o confronto com esta tarefa, encontrando inúmeras formas de aliená-la. A questão é que, apesar dos diversos esforços na busca por se evadir da angústia, a pessoa permanece angustiada. É, possivelmente, através da improficuidade de sua busca que o cliente chega à psicoterapia.

O presente trabalho nasce de um projeto de investigação de como a psicoterapia pode responder a esta demanda, pautada no pensamento clínico da Gestalt-Terapia, e pela necessidade de abrir possibilidades para uma discussão teórica, dada a escassez de literatura encontrada acerca do assunto, tanto na Gestalt-Terapia em particular quanto na clínica em geral. Neste sentido, este trabalho se insere na perspectiva de um questionamento epistemológico da Gestalt-Terapia, em sua teoria e prática (KARWOWSKI; HOLANDA, 2002).

Para este fim, se estabelece a tentativa de encontrar relações entre a filosofia da existência de Kierkegaard e a Gestalt-Terapia, no tocante à angústia, como proposta de compreensão deste fenômeno na clínica. Colocando-a como essencialmente humana, este filósofo se faz presente como possibilidade de fundamentar a idéia de que a angústia não pode ser ignorada no âmbito da psicoterapia. Esta proposta se mostra possível pelo fato de que a Gestalt-Terapia possui uma visão de homem compatível com as Filosofias da Existência, e ambas têm, entre seus postulados, a proposta de um retorno ao vivido.

O CONCEITO DE ANGÚSTIA

Etimologicamente, a palavra “angústia” advém do latim angustus, “estreito, apertado”, e de ang?re, “apertar, estreitar, afogar” (HOUAISS, 2001). Por sua vez, a raiz latina remete ao grego ???? (sufoco); que “significa um estado em que o homem se sente como sufocado perante um mal que está iminente, que é inevitável e pelo menos em parte não foi ainda experimentado” (MORUJÃO, 1990, p. 263).

O mesmo sentido pode ser apreendido na Medicina, sendo que no “Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais” (DSM-IV) ela aparece como sintoma para critério diagnóstico nos transtornos de ansiedade. Walton, Beeson & Scott (1986) ressaltam que este fenômeno pode ser considerado uma preparação fisiológica do organismo em determinadas circunstâncias, funcionando de maneira adaptativa para o indivíduo.

Na Psicologia, a angústia é caracterizada de maneiras bem diferenciadas, de acordo com os enfoques teóricos. Segundo Sillamy (1998), ela se refere a um medo sem objeto determinado ou a um estado de excitação causado por antecipações, sinais ou representações de perigo físico ou ameaça psíquica. Esta parece ser a definição mais comum aos diversos dicionários de Psicologia, corroborada por vários autores (DORIN, 1978; DORON; PAROT, 2000; DORSCH, 2001; ENGLISH; ENGLISH, 1964; GOLDENSON, 1970).

No referencial psicanalítico, o conceito de angústia é descrito por Chemama (1995, p.14) como um “afeto de desprazer maior ou menor, que se manifesta, em um sujeito, em lugar de um sentimento inconsciente, na espera de alguma coisa que não pode nomear”. Acrescenta ainda que sua ocorrência é vinculada à perda de objetos fortemente investidos.

Corsini (1984) utiliza o termo “comportamento de evitação” como sinônimo de angústia e afirma que nas teorias comportamentais ela é entendida como uma resposta a estímulos imediatamente antecedentes, sendo mantida por conseqüências reforçadoras, que podem ser externas ou internas. Eysenck, Arnold e Meili (1975) consideram que respostas de angústia condicionadas a situações objetivamente associadas ao perigo são adaptativas, ao passo que as não-relacionadas ao perigo são não-adaptativas e, portanto, patológicas.

Já o enfoque humanista sobre a angústia é dificilmente encontrado nos dicionários de Psicologia, sendo construído a partir de uma visão filosófica. Dados os fundamentos humanistas da Gestalt-Terapia, considera-se necessário recorrer ao campo da filosofia para fundamentar a possibilidade de trabalhar uma visão existencial do conceito de angústia.

No âmbito filosófico, o termo se refere aos sentimentos e às sensações que se presentificam no homem quando este se vê obrigado a se responsabilizar por suas ações. Nas Filosofias da Existência, a angústia é vista como resultante da apreciação plena das implicações da escolha e da responsabilidade pessoais.

Kierkegaard – primeiro filósofo a tratar a questão com profundidade – considera que a angústia desperta o homem para a possibilidade de ser livre, e que ela ocorre frente à percepção de que o futuro não é determinado, que há possibilidades de escolha e, portanto, liberdade (ABBAGNANO, 1996). Afirma, também, que por ela o homem toma consciência do nada de onde veio e do porvir em que se engaja, sendo o puro sentimento da possibilidade, sobre a qual o homem não tem qualquer garantia de realização (HUISMAN, 2001).

KIERKEGAARD E AS FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA

A filosofia de Kierkegaard se refere essencialmente à recuperação da subjetividade da existência e do existente. O ponto de partida é a própria existência. Neste sentido: “O homem é [...] o único ser que tem a capacidade de cuidar do próprio ser, de se projetar, e é neste sentido que dizemos que ele é o único que existe” (RIBEIRO, 1985, p. 37).

Esta ênfase sobre o ser humano é a característica mais forte e comum nas Filosofias da Existência, que, de acordo com Huisman (2001), recuperam a subjetividade do homem, perdida desde a filosofia platônica, quando a preocupação saiu do “sujeito que pensa” para as “coisas pensadas” por ele, construindo um mundo de pura objetividade.

Jolivet (1961) afirma que as Filosofias da Existência podem ser caracterizadas por partirem da experiência concreta e vivida, debruçando-se diretamente sobre o ser humano, e pela recusa em considerar a existência como objetivável:

A existência não comporta potencialidade alguma: aquilo que ela pode ser é-o sempre em acto e os seus possíveis não são senão uma expressão do que ela é em acto. [...] a liberdade, que ela é, a constitui e, ao mesmo tempo, a limita e enclausura, pois a cada momento do seu devir, ela é tudo o que pode ser [...] (JOLIVET, 1961, p. 20)


Neste sentido, Ribeiro (1985) aponta que o homem não é autodeterminado, mas um ser em constante construção, sendo aquilo que decide ser, cuja essência é resultante de seus atos. Esta afirmação remete à liberdade fundamental que impõe ao homem a necessidade de escolher, a todo instante, o que será no instante seguinte, colocando-o diante da responsabilidade pelo que faz, não lhe sendo permitido culpar a um outro por seus erros.

Nas Filosofias da Existência, a liberdade é o fundamento do ser, aquilo que constitui o homem, e a responsabilidade é aquilo que a limita. Neste cenário em que o homem se reconhece como legislador de si mesmo e sozinho na execução de seu projeto, a angústia se instala e mobiliza-o para a ação. Assim, o que as Filosofias da Existência buscam “é que o homem não viva se debatendo contra a verdade, mas que possa encará-la diretamente, ainda que isto seja difícil” (RIBEIRO, 1985, p. 39).

Um dos aspectos centrais do pensamento de Kierkegaard é que sua filosofia procura recolocar a subjetividade como a verdade e a realidade, propondo que o indivíduo seja compreendido em sua singularidade, como categoria central da existência, que é – inevitavelmente – individual. Opondo-se ao racionalismo abstrato e à ciência objetiva, a filosofia de Kierkegaard põe o homem em evidência, como um ser de significados e que não se pode abstrair de si mesmo (HOLANDA, 1998a).

Para Kierkegaard, uma filosofia da existência coerente deve fazer um todo uno com a verdade: deve-se vivê-la em lugar de pensá-la. É preciso, antes de tudo, existir, não se alcançando a verdade pelo pensamento (JOLIVET, 1961). Este filósofo não admite que a análise existencial possa conduzir a uma verdade universal. Para ele, tentar objetivar a existência significaria negá-la, pois a existência não pode ser apreendida senão como história: é pura possibilidade e incerteza, demandando continuamente tomadas de decisão.

Ao negar a filosofia como sistema e postular que a análise da existência só pode se dar em caráter individual e concreto, Kierkegaard concede um lugar fundamental à subjetividade do indivíduo (HUISMAN, 2001). Sua busca é por uma verdade pessoal e subjetiva e se dá pelo referencial cristão. A partir de suas crenças em relação à própria religiosidade, este filósofo pensou a existência e as condições que se impunham ao homem na procura por fazê-la autêntica.

O pensamento kierkegaardiano destaca algumas condições necessárias para uma existência autêntica através da exortação ao cristianismo, quais sejam: 1) o compromisso e o risco, não podendo haver verdade sem disposição a tomar um compromisso e arriscar tudo; 2) o primado da subjetividade: a objetividade e a certeza não determinam o homem, e sim a “concordância da verdade com as mais profundas exigências da pessoa, com essa verdade moral que é em mim o indivíduo que eu sou e quero ser” (JOLIVET, 1961, p. 49). O que quer que seja dado ao homem, o é apenas como possibilidade, sobre a qual ele efetua suas escolhas e define sua existência. E 3) o desespero e a angústia: condições inerentes ao ser humano, que ocorrem pela obrigação da escolha e o risco nela contido. Sua presença vem da consciência dos próprios limites, do sentimento de que não se pode ser completo, nem por si mesmo, nem pelo mundo. Para diferenciar desespero e angústia, Kierkegaard dirá que o desespero está ligado ao fracasso e resulta deste, enquanto a angústia precede o pecado – estando ligada à possibilidade e à liberdade. A angústia coloca o homem diante de si mesmo, preparando e anunciando uma ruptura necessária – a escolha para realizar o próprio eu.

Com base nestas condições, Kierkegaard estabelece que há diferentes maneiras de o indivíduo experienciar sua existência, às quais chama de estágios (ou esferas) da existência. Ele os distingue em três: a) a esfera estética, caracterizada pelo refúgio no imediatismo do desejo e na recusa das escolhas. Tem um aspecto de satisfação material e quantitativa, representando um homem centrado na busca do prazer; b) a esfera ética, caracterizada pela compreensão desesperada de que é preciso ir além do imediatismo para se tornar o que se é. Retrata a crença em um saber unitário e uma vida governada por normas morais, consagrada no matrimônio E c) a esfera religiosa, que representa a libertação de todo cinismo autodestruidor e a aceitação do peso de uma falta do homem perante Deus, para com o qual tem uma dívida (HUISMAN, 2001). Como ordem de realidade superior, este estágio se manifesta pela desordem dos anteriores e pela completa solidão do homem.

O paradoxo existencial trabalhado por este filósofo reside na insuficiência da subjetividade do homem em relação a Deus – que o transcende e que ele não é e não pode chegar a ser. Nesta perspectiva, “a existência é e permanecerá sempre falta, uma ascensão inacabada e inacabável. Não cessamos de aspirar a uma plenitude enquanto vagamos no meio de uma incerteza infinita” (HUISMAN, 2001, p. 43), em total solidão com nós mesmos.

É em sua obra “O Conceito de Angústia”, de 1844, que Kierkegaard traz à tona a questão do livre-arbítrio como a fonte da angústia humana. Ele afirma que, pela falta de um projeto básico para a sua existência e pela ausência de uma essência definidora de si, é imposta ao homem uma liberdade absoluta que lhe gera medo, insegurança e angústia.

Na angústia [o homem] tem medo de perder a si mesmo [...]. A angústia apodera-se do homem enquanto livre, que vê nas suas mãos o próprio destino, que dá conta de que precisa se arriscar livremente, para se salvar. (FRAGATA, 1990, p. 163)

Segundo Huisman (2001), o silêncio de Deus – gerador de incerteza – impõe ao homem que ele não pode contar senão com ele mesmo, numa concepção de consciência ensimesmada e eternamente confrontada a dilemas. Neste contexto, a angústia aparece como o único motor para o homem, que o impele à ação e o tira do estado de inércia, esperando pôr fim a seu estado de incerteza.

Sobre a angústia, Kierkegaard dirá ainda que a saída da ignorância para a autoconsciência é o que conduz o humano até ela, por confrontá-lo com a insegurança da pura possibilidade (a liberdade): “[...] o que angustia na angústia é ser sem razão [...], o indivíduo não se angustia por ter feito, mas por ter que fazer e por poder fazer” (CAULY apud HUISMAN, 2001, p. 44).

Esta idéia é confirmada por Aranguren (1982), quando afirma que a angústia é um estado afetivo que possui uma intencionalidade, uma referência a um objeto intencional e que, sendo a angústia de algo que não é nada, o nada se torna o correlato objetivo do estado subjetivo de angústia. Ele conclui que a angústia não se refere a nada determinado, mas à pura possibilidade de poder. Afirma ainda que ela não é uma imperfeição, mas o lugar da irrupção do espírito. Daí Kierkegaard propor a necessidade de aprender a angustiar-se.

Assim, permanecer na ignorância, fixando-se em um modo de vida automatizado – tornando-se uma estrutura rígida – é uma forma de evitar o confronto e permanecer seguro. De acordo com Huisman (2001), Kierkegaard descreve a conversão da angústia repulsiva em angústia atrativa como vertigem da liberdade. Para ele, a angústia é o intermediário entre o possível e o real, caracterizada como o poder (ou seja, o ser livre) ao qual a escolha se impõe e é, em si mesma, um ato de liberdade.

De forma mais específica, a angústia pode se dar por três vias: pela falta de espiritualidade, na qual o homem é incapaz de existir como totalidade; pelo desejo do homem de ser o que gostaria de ser, não tolerando ser o que é; e pela percepção das próprias limitações e de sua dependência perante Deus. Na visão adotada por este trabalho, esses três aspectos podem ser resumidos num só: a não-vivência da própria totalidade.

É neste sentido que se pode vislumbrar as possibilidades de entrelaçamento entre o pensamento de Kierkegaard e a Gestalt-Terapia sobre a questão da angústia: na sua visão de homem e nas suas proposições de retorno à subjetividade e de resgate do vivido.

GESTALT-TERAPIA

No contexto geral das abordagens psicoterápicas, a Gestalt-Terapia surge como um modelo que procura privilegiar os aspectos vivenciais da experiência humana. Sua concepção de homem se constrói em torno de algumas características fundamentais, partindo de um privilégio da existência sobre a essência. Como assinala Ribeiro:

[...] esse princípio significa que a ‘escolha existencial’ é fundamental para o ser humano. Significa que nós escolhemos o que aceitamos, pensamos, rejeitamos, sentimos e até como nos comportamos [...] o homem é um ser de responsabilidade, um ser permanentemente mutante, um ser de relação. (RIBEIRO, 1994, p. 14)

Partindo daí, Martins (1998, p. 16) destaca três pontos centrais sobre os quais a Gestalt-Terapia se apóia: a liberdade, a responsabilidade e a escolha humanas. Baseado nestas características, afirma o sujeito humano como um ser responsável, como uma totalidade passível de integração, como um ser “voltado para a consciência, auto-regulado, em permanente energia de auto-realização e presentificação e em busca de dar um sentido às suas percepções, às suas experiências, à sua existência”. Estas idéias supõem um resgate do humano em tudo o que seja potencialmente transformador, gerador de possibilidades e caminhos para a reconstrução de si mesmo.

Na Gestalt-Terapia, com base na Teoria do Campo de Kurt Lewin, o indivíduo é percebido como um sistema, no qual há valências positivas e negativas que se superpõem. Assim, entende-se que há partes adoecidas no sistema, afetando o bom funcionamento de sua totalidade. Por isso a psicoterapia não se atém ao sintoma ou à doença (valência negativa), mas ao processo que os mantém, buscando encontrar as partes mais preservadas da personalidade (valência positiva). Acredita-se que este procedimento permite que a pessoa, entrando em contato com os próprios recursos para restaurar o funcionamento saudável da totalidade do sistema, se redefina cotidianamente como um ser de possibilidades.

Na visão de Ribeiro (1999), o homem é um ser individual (“você é você e eu sou eu”), singular (“eu sou eu, diferente de você”) e subjetivo (“eu sou eu, diferente de você, e tenho consciência disso”), capaz de assumir responsabilidades e se relacionar de maneira construtiva. Observe-se que esta consideração diz respeito à individualidade do ser humano, e não à proposição de um individualismo.

Fazer esta diferença é importante na compreensão do movimento de evolução da Gestalt-Terapia ao longo do tempo. Como ocorreu com as Psicologias Humanistas de modo geral, no início, houve uma exacerbação das noções de individualidade, singularidade e subjetividade, como reação aos modelos dominantes na época. A questão é que – indo para o outro extremo – colocou-se o risco de isolar o homem de seu aspecto relacional, impondo um solipsismo que alienaria o sujeito de seu contexto socioambiental.

À medida que a percepção deste isolacionismo foi clareando para os gestalt-terapeutas e se colocando como um fator prejudicial ao processo psicoterápico, o foco saiu do indivíduo para a relação. É na diferença que o homem se reconhece como único, e é só na relação que a diferença pode ser percebida, aspecto em que a Gestalt-Terapia difere da filosofia kierkegaardiana.

Yontef (1998) considera um equívoco achar que a Gestalt-Terapia se volta apenas para a interioridade, pois a consciência de si mesmo sem uma consciência do mundo lida somente com parte do campo, e a auto-observação passa a ser tão inócua à produção de insights quanto a carência de interioridade.

Na perspectiva da Gestalt-Terapia, a pessoa é concebida como um processo permanente de autodefinição, um ser em constante construção, ou seja, a pessoa é aquilo que está sendo, permanentemente responsável por seu cuidar-se e modificar-se. É sobre a noção de pessoa como impermanente, constantemente renovada e relacional, que a Gestalt-Terapia alicerça sua perspectiva psicoterapêutica, apontando para uma transição ocorrida ao longo de sua história, de uma perspectiva centrada no processo de awareness e no aqui-e-agora, para uma ênfase também no processo de contato interpessoal (JULIANO, 1999). Assim, a objetividade em psicoterapia só pode ocorrer na intersubjetividade.

Neste particular, a awareness pode ser definida como a experiência de estar em contato com a própria existência, que Ribeiro (1994) caracteriza como a experiência de estar consciente da própria consciência. “A awareness é cognitiva, sensorial e afetiva. [...] A pessoa que está consciente, aware, sabe o que faz, como faz, que tem alternativas e escolhe ser como é” (YONTEF, 1998, p. 31).

É neste sentido que se diz que a ampliação de consciência – entendida como a busca incessante por um continuum de awareness – é o principal objetivo da psicoterapia gestáltica. A experiência de estar aware torna possível que a pessoa aprenda uma forma mais saudável de estar no mundo, por devolver ao indivíduo o poder e a responsabilidade sobre a própria vida. É nesta ênfase no processo de awareness que a Gestalt-Terapia pode recuperar o sentido da angústia na experiência de seu cliente.

Já a idéia de “aqui-e-agora” contém e explica a relação do sujeito com a realidade, dispensando a necessidade de recorrer à experiência passada, pela crença de que também esta está contida no presente (RIBEIRO, 1985). Na Gestalt-Terapia, é o presente que explica o passado, e não o contrário. O que está implicado nesta colocação é que o homem não é mera repetição de seu passado: embora ele esteja contido em seu presente, algo nele é modificado pelas vivências ulteriores.

No contexto da psicoterapia, o papel do terapeuta é trilhar com seu cliente o caminho de busca da ampliação de consciência e desenvolvimento da awareness, numa postura ativa mas não diretiva, de facilitador de um processo e não de solucionador de problemas (YONTEF, 1998). A partir daí pode-se compreender o binômio saúde e doença em Gestalt-Terapia.

Doença resulta de uma disfunção na capacidade do indivíduo de estar em contato com sua experiência. Saúde envolve a idéia de integração – consigo e com o ambiente –, o que permite o desenvolvimento da awareness, isto é, permite que o cliente perceba os processos pelos quais ele aliena partes do seu funcionamento (YONTEF, 1998). A partir daí, acredita-se que a pessoa aprende a auto-aceitação e pode assumir a responsabilidade por si, suas escolhas e seu modo de funcionar.

Não há uma única maneira de alcançar este objetivo, mas algumas características são essenciais para um trabalho gestáltico, conforme o esquema referido por YONTEF (1998):

I-and-thou (eu-e-tu),
Here-and-now (aqui-e-agora),
What-and-how (o que-e-como).

Isto significa que deve ser considerada a importância do encontro cliente-terapeuta; da preponderância do presente sobre o passado e o futuro; e do “como” sobre o “por quê”.

A contribuição única de Perls, segundo Yontef (1998), para a metodologia psicoterápica está na substituição da interpretação pela observação e experimentação comportamentais. Isto significa dizer que, na psicoterapia de base gestáltica, a vivência em si mesma, a experiência, é o caminho para a descoberta, e que a “cura” não está nos resultados, mas no processo mesmo de aprendizagem.

Convém esclarecer que a noção de “cura” – assim como no contexto geral das abordagens clínicas em Psicologia – é controversa na Gestalt-Terapia. Historicamente, observa-se que alguns autores optam por não se utilizar dela, por considerá-la limitada a uma perspectiva positivista da clínica; outros – como é o caso deste trabalho – se apropriam do conceito, adequando-o a uma visão mais dinâmica (DELISLE, 1991; HOLANDA, 1998b; PERLS, 1988; POLSTER; POLSTER, 2001; RIBEIRO, 1985, 1994, 1997; YONTEF, 1998).

Em relação à psicoterapia, outro conceito central da Gestalt-Terapia é o de “contato”, definido por Ribeiro (1997) como convite ao encontro das diferenças, do qual a mudança é função e pelo qual ela se torna possível. De acordo com Polster e Polster (2001), apropriar-se do que é assimilável ou rejeitar o que é inassimilável no novo leva à mudança, de modo que fazer contato é incompatível com permanecer o mesmo. Aqui é importante retomar a questão relacional, pois é impossível pensar contato, encontro e mudança sem uma relação que os torne possíveis. Assim, a idéia de contato envolve necessariamente relação, pois é nela que o homem se modifica e modifica aos outros.

Associada à noção de contato, tem-se a idéia de “fronteira”. Segundo Yontef (1998), a fronteira entre o indivíduo e o ambiente deve ser permeável o suficiente para permitir trocas, e firme o suficiente para manter sua autonomia. Quando a fronteira perde uma destas características, a pessoa perde o poder de distinção entre si e o mundo. “A fronteira de contato é o ponto em que o indivíduo experiencia o ‘eu’ em relação ao que é não-‘eu’ e, por esse contato, ambos são experienciados mais claramente” (POLSTER; POLSTER, 2001, p. 115), o que significa uma ampliação de consciência do indivíduo em relação à sua totalidade. Por isso, Ribeiro (1997) coloca totalidade, consciência e contato como o tripé da mudança em psicoterapia.

Tomando o contato como paradigma da Gestalt-Terapia, pode-se remeter à sua noção de doença, entendida como uma interrupção do contato em qualquer um dos campos do espaço vital da pessoa e que, afetando todos os outros campos em função da interdependência postulada por Kurt Lewin na Teoria da Campo, modifica sua totalidade.

Sob esta ótica, é impossível pensar a pessoa e o sintoma isoladamente: no processo, a pessoa como totalidade é figura, tendo o sintoma como fundo. Esta é uma leitura diferenciada da doença e do sintoma, que diferencia também a maneira de se lidar com ela no processo psicoterapêutico, pois se acredita que a doença,

[...] não deve ser considerada em si, mas sempre em relação à pessoa e ao campo total no qual esta existe. [...] Por isso, não deveríamos tratar a doença e sim a pessoa adoecida, na qual a relação harmoniosa entre os campos se quebrou.” (RIBEIRO, 1997, p. 36)

É a partir desta noção que Ribeiro (1997) trabalha o Ciclo do Contato, definido mais especificamente como o Ciclo dos Fatores de Cura e Bloqueios do Contato. Este ciclo esquematiza várias formas de contato pleno, como processos com início, meio e fim.

Por Bloqueios do Contato entende-se uma série de mecanismos pelos quais a pessoa interrompe o contato consigo e com o mundo. Estes bloqueios são também chamados de mecanismos de defesa, justamente pela idéia de que vêm como uma maneira de o organismo tentar se proteger de uma situação, com a qual não consegue lidar de modo saudável.

Já os Fatores de Cura são as maneiras pelas quais a pessoa faz contato, possibilitando a mudança. De acordo com Ribeiro (1997), trilhar um caminho pelos Fatores de Cura dentro do Ciclo significa dar continuidade à procura infinita pelo contato total consigo mesmo, no mundo.

A proposta de Ribeiro (1997) é de tomada do Ciclo como um modelo psicopatológico e prognóstico para a Gestalt-Terapia, visando a mudança, aqui concebida como função do contato na relação entre pessoa e mundo. A psicoterapia se constitui, então, em um espaço de transição do bloqueio para o fator de cura e, uma vez completado o ciclo, ele implica numa auto-equilibração da pessoa em direção ao estado de saúde.

No que diz respeito ao Ciclo do Contato no processo psicoterápico, um dos aspectos mais importantes remete à questão das polaridades. A polarização é a maneira pela qual a pessoa tenta se equilibrar no mundo, identificando-se com um dos extremos de uma cadeia de características opostas. O perigo é perder a fluidez, a capacidade de transitar – movimentar-se – entre os pólos, passando a um processo de fixação, ou seja, negando um pólo e afirmando apenas o outro.

De acordo com Ribeiro (1994), este processo de reencontro com a parte negada amplifica a consciência das possibilidades da pessoa. Em consonância com esta postura, se coloca a necessidade de, em psicoterapia, o cliente entrar em contato com suas polaridades, vivenciando conscientemente suas maneiras de se interromper (bloqueios) como forma de integração da própria experiência, para chegar ao estado de saúde – entendido como a realização de contatos plenos, a vivência da própria totalidade.

ANGÚSTIA E GESTALT-TERAPIA

É interessante observar que a Gestalt-Terapia tenha dedicado pouca atenção à questão da angústia. E foi neste estranhamento, refletido na escassez de literatura sobre o assunto, que nasceu a questão que deu origem a este trabalho. Foi então que ocorreu o encontro com as Filosofias da Existência, a partir de um olhar direcionado à busca de aproximações com Kierkegaard. Ao considerar a angústia como condição de existência para o homem, Kierkegaard abre forçosamente nossos olhos para ela.

Vários pontos de convergência entre o pensamento de Kierkegaard sobre o fenômeno da angústia e os princípios fundamentais da Gestalt-Terapia se mostraram possíveis no desenvolvimento deste trabalho. Uma das principais aproximações entre o pensamento de Kierkegaard e a psicoterapia como um todo, é explicitada nas palavras de Feijoo (2000), que, sob uma perspectiva existencial, declara:

[...] a proposta de uma psicoterapia em uma perspectiva fenomenológico-existencial vai buscar nas reflexões de Kierkegaard a possibilidade de se estabelecer uma relação psicoterapêutica na busca da transparência do eu, a qual constitui-se como retomada do movimento do existir. A proposta deste pensador torna viável uma psicoterapia que consiste em ajudar o outro a reconhecer-se nas suas escolhas. (FEIJOO, 2000, p. 122)

Fazendo esta mesma aproximação à abordagem gestáltica, pode-se ver o homem como um ser dialético e de movimento, e que a tentativa de resolver o inevitável (neste caso, a angústia) leva a pessoa a uma paralisação que resulta no que Feijoo (2000) chama de “perda do eu”. Segundo sua proposição, a psicoterapia caminharia no sentido de auxiliar a pessoa a sair do fechamento para a abertura, uma vez que o fechamento é entendido como uma negação da existência.

Ao falar de dialética do homem, tem-se, na perspectiva existencialista de Feijoo (2000), a possibilidade do estabelecimento de um paralelo com o conceito de polarização na Gestalt-Terapia. Pode-se entender o processo de polarização da angústia como sendo, de um lado, paralisadora, e de outro, como tendo um sentido para a pessoa. Em geral, o cliente encontra-se fechado no pólo da paralisação, e é a busca do outro pólo (do sentido), via abertura para a experiência, que permite ao indivíduo transitar entre os pólos. Assim, abandona-se o processo de polarização em nome de um processo integrativo, de busca da totalidade.

O que se está chamando atenção aqui é para a impossibilidade da não-vivência. Quanto mais a pessoa nega sua experiência – sentimentos, emoções, pensamentos, ações, desejos – maior o estado de paralisação e fechamento que gera para si mesma, entrando em um ciclo de manutenção do estado de ausência de saúde. Negar a sensação de estar angustiado significa interromper o contato com uma parte de si mesmo.

Esta negação pela interrupção do contato pode ser associada à idéia de ausência do homem para si mesmo levantada por Kierkegaard, conforme Lodge (1997) discute em seu romance intitulado “Terapia”:

[Kierkegaard afirma que] o homem infeliz está sempre ausente para com ele mesmo, nunca presente para ele. Lawrence discorda, em princípio, do filósofo: ‘Não, errado, meu caro Sören – nunca paro de pensar em mim, esse é que é o problema. Mas, quando analisei, pensar em mim não é a mesma coisa que estar presente para mim’. Percebe, portanto, que nunca está presente a si mesmo porque está sempre vivendo no passado, de recordações, ou no futuro, de expectativas. (LODGE, 1997, p. 119)

Além de resgatar o contato como esta idéia de presença, o trecho supracitado chama a atenção para outro conceito fundamental: o “aqui-e-agora”. É somente no “aqui-e-agora” que o contato pode acontecer, e, portanto, o contato exige que a pessoa esteja presente para si mesma, como maneira de chegar à awareness.

A noção de angústia como condição de existência, conforme afirma Kierkegaard, passa a ser tomada como um fenômeno essencialmente humano, que não pode ser “tratada” em si mesma. O que se olha, em psicoterapia, é a vivência que cada um faz da própria angústia, ou a maneira de (não) fazer contato com ela.

A angústia, como modo de liberdade, deve ser mantida: experimentá-la e nela emergir são o possível da liberdade. O homem se constitui como liberdade, daí a angústia frente ao real e ao futuro, onde se dá o mundo das possibilidades. Muitas vezes, no entanto, o homem quer fugir de sua liberdade e, conseqüentemente, da sua angústia, assumindo-se, no mundo, como não-liberdade. (FEIJOO, 2000, p. 115)

Esta afirmação resgata o pensamento de Kierkegaard – no qual a angústia acontece para o homem frente à possibilidade como liberdade absoluta, na imposição do ato de escolher e responsabilizar-se por suas escolhas – e, ao mesmo tempo, aponta para o aspecto eminentemente vivencial que se enfatiza na Gestalt-Terapia, ao propor a manutenção da angústia. E mais, a necessidade de experienciá-la – com todo o sofrimento que possa nela estar implicado – em oposição a fugir dela, negando-a.

Não se está propondo a aceitação do sofrimento no sentido de dizer que o indivíduo deve sofrer porque esse é seu destino e nada há a fazer, mas no sentido de que o sofrimento é um dado de realidade. Aceitá-lo como tal é integrá-lo à própria experiência, o que significa deixar de alienar uma parte de si mesmo.

Só pela vivência profunda de uma polaridade se chega à outra, pela integração da experiência: a vivência da angústia chega ao consultório como um só dos pólos, em geral o do sofrimento, da paralisação ou da desesperança. Só vivenciando esta experiência de dor o homem poderá chegar à vivência da angústia como mobilização, como abertura para a mudança, “positivando” a experiência de ter possibilidades e escolhas.

A não-negação das polaridades permite a consciência da totalidade do organismo, cujo funcionamento inclui a tensão constante em busca da auto-regulação, na qual reside o conceito de saúde em Gestalt-Terapia. Neste sentido, a angústia pode ser entendida como esta tensão que mobiliza o organismo no sentido de auto-regular-se.

A angústia, portanto, não é, em si mesma, patológica. A paralisação e a imobilização em face dela, a fixação nela ou a negação dela é que impedem o bom funcionamento do indivíduo. A partir das reflexões aqui realizadas, acerca das aproximações entre o pensamento kierkegaardiano e a Gestalt-Terapia, a angústia deve ser reinserida num processo natural, ligado ao funcionamento saudável.

Nessa perspectiva, nosso olhar se volta para a saída de uma “má” vivência da angústia – a idéia de que ela é sofrimento e sofrimento deve ser eliminado – para uma “boa” vivência da angústia – que se refere à idéia de que ela mobiliza o indivíduo a buscar a superação dos próprios limites. É nesta atitude de busca pela superação de si mesmo que o homem alcança a possibilidade de crescimento e entendemos que no processo psicoterapêutico gestáltico isto pode ser feito através da integração da experiência do sofrimento, pelo fato de que ele tem um sentido.

Naranjo (1993) propõe que a pessoa se renda ao sofrimento da mesma maneira que ao prazer, pois esta é a única maneira de integrar o sujeito para atingir a totalidade da vivência. Kierkegaard propõe o mesmo ao falar da angústia: aceitando o sofrimento como realidade, o homem se depara com a força mobilizadora desta experiência, encarando a angústia como algo que o exorta à escolha constituinte de si mesmo.

No tocante a este aspecto da escolha como aquilo que confere ao indivíduo a liberdade para construir-se a si mesmo, pode-se fazer uma relação entre o pensamento de Kierkegaard e as palavras de Ribeiro (1985), ao falarem da experiência de angústia e da experiência de psicoterapia, respectivamente, na medida em que ambos apontam estas experiências como oportunidade – senão necessidade – de que a pessoa aprenda a correr riscos. Nesta leitura, correr riscos é entendido como condição para o compromisso que o encontro com a verdade exige (segundo Kierkegaard) e para a abertura para a mudança (em Gestalt-Terapia). Se para este filósofo a vivência da angústia provoca a mesma aprendizagem que o processo psicoterapêutico para Ribeiro (1985), então a angústia trazida pelo cliente ao setting passa a ser uma condição facilitadora do processo, se adequadamente administrada pelo psicoterapeuta.

O que se está tentando pensar, metodologicamente, é a saída “da coisa em si” (a angústia), de forma a poder vislumbrar a possibilidade de lidar com ela de forma concreta na terapia, interessando, pois, o sentido que a angústia tem para o sujeito que a vivencia.

Voltando às raízes filosóficas, recupera-se o sentido do pensamento socrático – “conhece-te a ti mesmo” – sobre Kierkegaard, como um retrato da necessidade de que o homem faça esse retorno a si próprio como fonte primeira de conhecimento. A proposta kierkegaardiana de retorno à subjetividade – valorização do ser existente em sua singularidade – é a porta de entrada para o contexto psicoterapêutico, pois é neste retorno que o cliente pode integrar a experiência da angústia e vivenciá-la de modo saudável.

Na Gestalt-Terapia, também se valoriza a singularidade como um retorno à subjetividade como verdade e realidade, porém, a partir de uma ótica relacional. Este talvez seja o ponto de maior distanciamento entre o pensamento de Kierkegaard e a proposta gestáltica. O filósofo deu tamanha importância à individualidade em sua obra, que acabou por ignorar – e muitas vezes negar – o papel constituinte das relações para o ser humano.

Sob este ponto de vista relacional, o trabalho com o cliente é de modificação das valências investidas em sua angústia. Não é a angústia que muda, mas a percepção que o cliente tem dela. Quando chega ao consultório paralisado pela angústia, o cliente a está vivenciando como uma força frenadora em seu espaço vital. Quando chega querendo se livrar de sua angústia, a está vivenciando como uma valência negativa e, portanto, investindo toda a sua força em repeli-la. A busca é de que ele possa vir a vivenciá-la como uma valência positiva, para a qual é atraído, aproximando-se e apropriando-se dela.

Nesta ênfase sobre a vivência também se pode aproximar Kierkegaard da Gestalt-Terapia: para ambos, o vivido é o primordial. Para o filósofo, isto fica claro em sua veemente e constante negação da filosofia como um sistema: segundo ele, não é pelo pensamento que o existente se constitui; é preciso viver para existir. Caminhando na mesma direção, tem-se a famosa afirmação de Perls: “perca a cabeça, recupere os sentidos”. (PERLS, 1979, p. 155).

Retomando os conceitos de contato como saúde e bloqueio de contato como ausência de saúde, está se propondo a saída do bloqueio – a não-vivência da angústia – para o contato. Vale ressaltar o tripé da mudança mencionado anteriormente: o contato é o que permite a apropriação da experiência de angústia e, apropriando-se dela, o indivíduo recupera o senso de totalidade que, por sua vez, propicia a awareness. “Esse pressuposto se fundamenta na crença de que awareness e responsabilidade andam sempre juntas e que o processo terapêutico é isto: um caminho constante entre a consciência do que se é e a responsabilidade de atualização” (RIBEIRO, 1994, p.14-15).

Este poderia ser o grande momento de mudança para o cliente. A hipótese aqui apresentada é de que a awareness, neste caso, seria o momento em que a angústia deixa de ser figura e passa a ser fundo, porque o cliente volta a se perceber, inteiro, como figura. Aqui se tem outro encontro da Gestalt-Terapia com Kierkegaard: essa ênfase na totalidade insere a angústia como algo que não pode ser destacado da experiência do sujeito.

Kierkegaard (1982) afirma que a busca incessante do homem é por se tornar o que realmente é. No mesmo sentido, Perls (STEVENS, 1977) diz que o primeiro e último problema do indivíduo é integrar-se internamente e, ainda assim, ser aceito pela sociedade, reforçando a idéia de que a Gestalt-Terapia procura levar a pessoa à integração, deixando de lado os “deverias” socialmente impostos para respeitar seus sentimentos e necessidades.

Assim, a angústia não é algo de que o homem possa se livrar, mas sobre o qual pode assumir o poder, utilizando-se dela como força propulsora para o próprio crescimento. Olhando para a própria angústia, a pessoa se habilita a ver além dela. Abrindo mão da necessidade de negá-la, no sentido de vê-la fora de si, a pessoa pode integrar a angústia a si mesma em sua inteireza, assumindo-se maior do que ela.

Neste caminho se estabelece uma ética humanista, na qual se afirma o desenvolvimento das capacidades do homem, e “a virtude consiste em assumir-se a responsabilidade por sua própria existência. O mal constitui a mutilação das capacidades do homem; o vício reside na irresponsabilidade perante si mesmo” (FROMM apud AMATUZZI, 1989, p. 91). Nesta perspectiva, a ética humanista é o que conecta Kierkegaard mais intimamente à Gestalt-Terapia. É sob a sua égide que se arrisca o resgate da noção de angústia construída pelo filósofo como proposta de compreensão deste fenômeno no contexto da clínica gestáltica. Visto como um instrumento, uma força, um caminho para o encontro de si mesmo, consigo mesmo e com uma forma mais autêntica de estar no mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de um apanhado geral do conceito de angústia, encontrou-se na filosofia de existência de Kierkegaard uma possibilidade de se pensar este fenômeno em consonância com os postulados da Gestalt-Terapia. O conceito aqui adotado baseou-se numa resultante da apreciação das implicações da escolha e da responsabilidade pessoais, ocorrendo para o homem frente à percepção de que seu futuro não é determinado, despertando-o para a possibilidade de ser livre. Isto pôde ser feito com base numa visão de homem como um ser em constante construção, que é aquilo o que decide ser e cuja essência é resultante de seus próprios atos. Esta concepção remete a uma liberdade fundamental que impõe ao homem a necessidade de se escolher a todo instante.

Considerando-se este referencial, o ponto central da contribuição de Kierkegaard para a compreensão do humano aqui presente é o resgate da subjetividade, bem como sua ênfase sobre a vivência, em oposição ao racionalismo abstrato e à ciência objetiva. Sobre a questão da angústia, outra contribuição importante é sua afirmação de que a existência é essencialmente liberdade e – portanto – pura possibilidade e incerteza, demandando continuamente tomadas de decisão. Neste sentido, destaca-se sua visão da inevitabilidade da angústia, dada pela obrigação e pelo risco de escolher, e da consciência dos próprios limites: vendo em suas mãos o próprio destino, o homem se dá conta de que precisa arriscar livremente para se fazer, e ele pode se apoderar da angústia como um motor, impelindo-o à ação e tirando-o do estado de inércia, pela esperança de pôr fim ao estado de incerteza.

O estabelecimento de relações destas idéias de Kierkegaard com a Gestalt-Terapia mostrou-se viável a partir da visão de homem centrada na liberdade, responsabilidade e escolha humanas, que é comum a ambos. Tanto Kierkegaard quanto a Gestalt-Terapia se apóiam na crença no poder humano de se recriar e tomar posse de si, resgatando tudo que seja potencialmente transformador, gerador de possibilidades e caminhos para a reconstrução de si mesmo.

Em contrapartida, um aspecto importante da Gestalt-Terapia que se percebeu distanciá-la de Kierkegaard é a afirmação de que é na relação que a pessoa se constitui, é no contato com o outro que se faz possível para o homem a construção de sua subjetividade. Pela constatação desta diferença, ressalta-se a importância de refletir, a posteriori, como o fato de a Gestalt-Terapia desenvolver sua abordagem psicoterapêutica centrada na relação (depositando nela o potencial para a mudança e afirmando o encontro como seu principal instrumento) pode influenciar a apropriação da noção de angústia kierkegaardiana por esta abordagem.

Uma vez adotada a noção de angústia como fenômeno essencialmente humano, afirma-se que não é a angústia em si mesma o foco de atenção da psicoterapia, mas a vivência que o cliente tem dela. Sendo assim, a angústia passa a ser considerada como um “fenômeno”, real e evidente no contexto clínico, uma realidade vivida na particularidade de uma subjetividade, podendo ter – para este sujeito – a especificidade de uma valência positiva ou negativa, de acordo com o modo como este a vivencia. A angústia, portanto, deixa de ser considerada apenas como sintoma, como algo a ser extirpado, para se integrar ao vivido do sujeito.

Assim, enfatizou-se que, no processo terapêutico, a pessoa como totalidade é figura, tendo o sintoma como fundo, pela crença de que, reexperienciando suas interrupções, o cliente pode se conscientizar de si mesmo e de seus modos de se interromper. Esta ampliação de consciência possibilita o alcance da percepção da própria totalidade, pela qual a pessoa poderia integrar a experiência da angústia e modificar sua vivência dela. Neste contexto, resgatou-se o conceito de contato como instrumento para tal modificação, pelo qual a mudança se torna possível.

Colocando totalidade, consciência e contato como o tripé da mudança em psicoterapia, ela passa a se constituir em um espaço de transição do que se chamou de uma “má” para uma “boa” vivência da angústia, que implica o acontecimento de um processo de auto-equilibração da pessoa em direção ao estado de saúde.

Ao final deste percurso, vale ressaltar que este estudo não teve a pretensão de esgotar a discussão da noção de angústia, mas de despertá-la, fomentando questionamentos sobre um aspecto relevante para a psicoterapia, ao qual a Gestalt-Terapia não vem dedicando atenção. Constatando que as aproximações propostas são possíveis e tendo lançado algumas idéias de como se lidar com a angústia na clínica gestáltica, ressalta-se a necessidade de dar prosseguimento a este trabalho, pelo aprofundamento no estabelecimento das relações necessárias à apropriação da noção de angústia, e pela verificação da viabilidade de aplicação prática do que foi refletido no tocante à ação psicoterapêutica.

 

 

NOTAS
* Psicóloga Pós-Graduanda no Instituto de Gestalt-Terapia de Brasília (IGTB). Aluna do Curso de Mestrado da Universidade de Brasília (UnB).
* Psicólogo. Doutor em Psicologia pela PUC-Campinas. Professor Recém-Doutor (CNPq) na Universidade de Brasília (UnB). Didata do Instituto de Gestalt-Terapia de Brasília.

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ABSTRACT
The aim of this paper is to establish relations between Sören Kierkegaard’s thought and Gestalt-Therapy, taking the notion of anguish as its reference. Anguish is understood as an essentially human phenomenon that reveals the person in their relation with the world. Gestalt-Therapy’s comprehension of the human being is compatible with the ones presented by the Philosophies of Existence, which implies a return to the lived experience. Therefore, it is here taken as a psychotherapeutic approach in which anguish may be understood in its complexity, in a relational view. Some of Kierkegaard’s notions are related to Gestalt-Therapy’s proposition of psychotherapy, both where they converge and/or diverge. Due to the scarce specific literature on anguish in Gestalt-Therapy, it is this work’s task to foment the discussion about the understanding and coping with anguish in this psychotherapeutic approach, as well as to contribute to the perspective of giving philosophical foundation to Gestalt-Therapy, under the ground of Philosophies of Existence.

KEYWORDS
Anguish; gestalt-therapy; Kierkegaard; psychotherapy.

Recebido em: 17/10/2003
Aceito para publicação em: 16/01/2004
Endereço: aholanda@yahoo.com