RESENHA


CREPÚSCULO DA ALMA: A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XIX
ALBERTI, Sônia. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003.

Francisco Portugal*


A história da psicologia parece ser tarefa estrangeira composta por matéria igualmente estranha a nós. Os manuais universitários de história da psicologia apontam, em sua maioria, seu surgimento na Europa no século XIX, e a seguir sua multiplicação nos Estados Unidos no século seguinte. A América Latina e o Brasil teriam encontrado seu lugar nesta história apenas muito recentemente e, mesmo assim, na forma de uma importação de problemas e modelos conceituais, isto é, de forma marginal.

O livro de Sônia Alberti, Crepúsculo da Alma: a Psicologia no Brasil no século XIX, surpreende de chofre por seu subtítulo, ao revelar uma preocupação com a história da Psicologia no Brasil no século XIX. Foi justamente por não ter considerado “esses discursos [de Psicologia] uma réplica malfeita de textos estrangeiros” que uma nova análise se tornou possível.

Em lugar de abordar a Psicologia como um fato, um saber desde seu início bem-delineado e bem-definido, que a pergunta de Canguilhem – O que é Psicologia? – ganha todo seu alcance. Trata-se, então, de buscar os discursos que estiveram presentes no século XIX e produziram através de seus agenciamentos o que veio a se chamar Psicologia. Longe de acatar uma pressuposta cientificidade da Psicologia — quer por seu exercício histórico que reconhece a falta de preocupação de parte dos textos analisados do século XIX em relação a este procedimento, quer pela concepção foucaultiana de que o conhecimento consiste numa invenção, permitindo enxergar na referida cientificidade uma estratégia de legitimação em lugar de um acesso privilegiado ao real —, a autora buscou encontrar as condições de funcionamento de práticas discursivas específicas que forneceram consistência à Psicologia.

Se não sabemos ao certo o que é Psicologia, isto é, se não acatamos as definições atuais que se sobrepuseram às outras, se não somos possuídos pelo presentismo, torna-se absolutamente legítimo escavar no mundo cinza dos documentos o que se constituiu como práticas psicológicas em seus enlaces com os processos políticos, econômicos, religiosos, etc.

Buscando, na análise histórica, os agenciamentos de palavras como alma, espírito, eu, consciência, Sônia Alberti organiza dois grupos discursivos de Psicologia no século XIX: de um lado, um discurso mais filosófico-religioso ligado à igreja e aos senhores de terra, produzindo uma alma autônoma, unificada, consciente, central; de outro lado, um discurso mais ligado à Medicina e à burguesia urbana, defendendo um psiquismo organizado mas dividido e fisiologizado. Dois grupos discursivos, dois dispositivos de poder que Foucault denominou soberano e normalizador.

A autora mostra a multiplicidade de fatores envolvidos com os discursos da alma respeitando o ecletismo próprio às produções psicológicas presentes no século XIX, sem cair na critica fácil que denuncia aí uma confusão inextricável ou num reducionismo que buscaria expor uma linha de pensamento privilegiada, entre as várias existentes, que acaba por tornar a tarefa histórica impossível ou excessivamente abstrata.

Entre as ricas análises dos sentidos e investimentos que esses discursos da alma produziram, as reflexões sobre a introspecção são especialmente interessantes. A introspecção garante ao indivíduo que ele saiba mais de si do que qualquer outro e marca uma diferença essencial entre esses discursos e aqueles que virão. A introspecção não só garante a autonomia do indivíduo, porque constitui acesso exclusivo a sua própria consciência (que o psicologista pode, no máximo, enunciar e classificar), mas produz simultaneamente uma moral.

Esta moral, fruto do encontro dessa alma com um corpo e um meio social, requer o livre arbítrio e a vontade, que escolhe e executa seus desígnios, e que, por isso, supõe e reproduz a autonomia. Uma moral estribada no conhecimento de si, na valorização da unidade da alma, pouca serventia poderia ter para um projeto planificador como o da medicina social vindoura com seus dispositivos disciplinarizadores.

No segundo grupo de discursos, destacam-se os conceitos de organização, anatomia, fisiologia de processos e funções sedimentados pela captura científica desses discursos. A medicina, dirigindo-se agora para as condições urbanas e a organização da saúde pública, realiza uma planificação social que torna necessário fisiologizar o social. Associada às propostas de saneamento das estruturas físicas da cidade, o cidadão deverá conhecer também uma outra moral. Novo poder médico cuja atuação normalizadora promove a saúde, na medida em que a falta de higiene se transforma em deficiência moral.

A alma una e autônoma proposta pelos discursos da alma é ridicularizada em nome de uma organização das partes do corpo – transmutado agora em organismo –,que se torna o suporte da moral e do entendimento. A saúde concebida como a boa ordem entre as partes passa a ser um saber especialista suportado pela idéia do normal e do patológico. O doente deve relatar seus males nos exames a fim de corrigi-los.

Se a introspecção, entendida como auto-observação, era garantia da autonomia da alma nos discursos anteriores, a sensação, entendida como fato psicológico mais verdadeiro, permitiu aos discursos médicos conhecer a alma de outra forma inacessível a este saber. Os discursos médicos forneceram uma nova inteligibilidade à noção filosófica de sensação, transferindo-a de uma função da alma para uma função do corpo. Esta operação desloca o estudo da psicologia, “a alma se esvanece ao dar lugar aos discursos sobre o cérebro, os nervos, a medula, ou seja, o organismo e seu funcionamento”.

O psiquismo fisiológico, de forma totalmente diferente da alma, é formalizado não pelo conhecimento que o indivíduo tem de si mesmo, mas pelas observações controladas, pelo cientista que observa o outro. Passagem esta, a da corporificação do psiquismo, que alterou a própria concepção de indivíduo e autorizou o médico a operar um poder que só ele pode ter.

Canguilhem mostrou como um empirismo puro não passa de um voyerismo e que, por isso, toda análise envolve, em certa medida, uma estrutura que confere ordem ao que se observa. Longe de toda verdade, a análise histórica pode ser iluminada por modelos conceituais (nossas questões sempre partem de uma inserção na realidade) que fornecem inteligibilidade aos documentos. Ela pode estar atenta e ouvir o que eles têm a dizer, mesmo que contrariando alguns de nossos mestres. Ou ainda, como é freqüente ocorrer na Psicologia, a análise pode ser obscurecida por esses mesmos modelos ao projetá-los sobre as fontes, tentando ajustá-las e fazendo do trabalho uma mera repetição do que deveria ser apenas um instrumento. Cabe a nós escolher nosso caminho.

A atualidade desse estudo de Sônia Alberti está sobretudo em mostrar como essas noções – alma, espírito, eu, sensação, consciência, etc – consideradas inicialmente não-psicológicas, ganharam uma consistência própria em algumas psicologias de nossos dias, revelando processos de construção de verdades que provêm e se investem em práticas políticas e sociais. Notável ainda que o texto tenha sido produzido em 1980, isto é, anterior ao interesse histórico, atualmente bem mais difundido, sobre a Psicologia. A preocupação destas reflexões com as funções da Psicologia torna o livro leitura necessária para todos aqueles que se ocupam dos saberes psicológicos, principalmente para os mais seguros de sua prática psi.

Recebido em: 01/08/2003
Aceito para publicação em: 31/08/2003
Endereço: fportugal@alternex.com.br

* Professor do Departamento de Psicologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-Rio.