EDITORIAL


NÓ GÓRDIO NA PSICOLOGIA: CAMPOS DE SABER, ESPAÇOS POSSÍVEIS

Ariane P. Ewald*
Deise Mancebo
Eleonora Torres Prestrelo
Ana Maria Jacó Vilela

Publicações em Psicologia têm procurado dar conta das demandas sociais em torno de questões que vêm, de longa data, instigando nossa existência cotidiana como cidadãos e como intelectuais, seja em torno dos diversos tipos de mal-estar provocados pela modernidade globalizadora em curso, do consumo exacerbado, dos limites morais ultrapassados, das guerras insanas, ou mesmo das provocações religiosas, das decisões passionalmente assumidas, bem como das decisões pós-modernas assépticas, funcionais e pontuais.

A revista Estudos e Pesquisas em Psicologia tem se dedicado a construir um lugar de reflexão sobre esses aspectos da nossa existência, abrindo espaço também para as ciências “assemelhadas” que nos auxiliem a pensar nossos enigmas, sejam eles atuais ou passados, cujos rastros ainda visíveis comportam desdobramentos contemporâneos. Ernest Jünger, um dos mais importantes escritores da literatura alemã (Dossier Ernst Jünger, 1994), em seu livro de 1953, O Nó Górdio, nos chamava atenção para o fato de que este “nó”, que se apresentava a todos nós, dedicados a pensar as coisas da vida dos homens, deveria ser entendido como uma pergunta que o destino nos faz: de vez em quando se entrelaça o nó, como uma vez ou outra a pergunta se faz (JÜNGER, 1970). Diante dele, tornado então enigma incontornável, só nos resta ou tentar desatá-lo ou quedarmos mudos e perplexos, paralisados pela tarefa. Ele passa a ser nosso maior desafio, ao mesmo tempo em que se revela como uma chance para o pensamento dobrar-se sobre suas premissas mais caras e buscar um novo ponto angustiado, mas potente, de inflexão. O espírito abandona aí sua deriva, seu movimento errático e deambulatório pelas questões do mundo e se concentra neste nó a ser desatado, nesta questão tornada “grande”, porque ela assim foi assumida pelo seu pensador que, talvez, dedique a ela o resto de sua vida tentando desatá-la e/ou desdobrando-a em novos “nós”. Jünger alertava, porém, que para esta tarefa aspirar êxito, era necessário que o observador/pensador não se esquecesse de que não é dado a ninguém o direito de saltar por cima da própria sombra, por cima do lugar que o seu tempo lhe assinalou como seu. Mais ainda, o observador/pensador não poderia perder de vista que, por trás da distribuição geográfica das questões temporais, “assomam convulsões, reestratificações – tanto no Universo como também em seu próprio interior – que estão pedindo com urgência um reequilíbrio e formas novas” (JÜNGER apud A Cultura é o Ópio do Povo, p. 6). Não perdendo isto de vista, finaliza Jünger, que o pensador “ao menos não será vítima daquela espécie de unilateralidade que impede não só a discussão, como também a reflexão” (2001, p. 6).

Tal vem sendo o nosso desafio ao dar continuidade a mais uma edição de nossa revista Estudos e Pesquisas em Psicologia. Diante dessa área que se nos afigura como um campo de saber e reflexão, cujas novas fronteiras não só dilatam este campo, num processo de expansão quantitativa, mas, principalmente, o tornam cada vez mais refinado internamente, qualitativamente, cada um de nós determinou seu próprio nó górdio a ser desatado em sua trajetória intelectual. Cabe-nos o direito de fazê-lo mas, sobretudo, a obrigação de respeitar e acolher outros “nós” que, produzindo o sentido existencial para cada um dos observadores/pensadores, acabam também por nos mostrar quem somos nós como pensadores e como psicólogos.

Este número da revista apresenta essa perspectiva das diferenças, colocando em cena artigos que procuram refletir sobre as questões que as Ciências Humanas e Sociais têm se confrontado na contemporaneidade. Tem início com o artigo de Fernando Vidal, “Le sujet et le fronteières de la psychologie, XVIIIe-XXe siècles”, que nos provoca com a seguinte questão: o que é esta entidade nomeada Psicologia? E como foram formadas as fronteiras que lhe deram a identidade de uma disciplina? Entre outras questões, igualmente provocadoras, vemos surgir, através do seu texto, uma psicologia no século XVIII, “empírica” como ele afirma, que delimita suas fronteiras e seu objeto de estudo. Para auxiliar leitores pouco familiarizados com o texto em francês, Arthur Arruda Ferreira escreveu um comentário sobre o texto de Fernando Vidal, fazendo, dessa forma, uma introdução ao artigo e explicitando sua relevância para os estudos e as pesquisas em Psicologia.

O trabalho de Ana M. Fernández, “Subjetividades y Políticas” discute, do ponto de vista das mobilizações sociais e do imaginário político, as novas modalidades de cidadania que começaram a surgir na Argentina. Procura ampliar a compreensão sobre a relação subjetividade e política, através da interrogação sobre a ação de cidadãos na busca de saídas para suas dificuldades cotidianas diante de uma crise instalada e suas relações com seus “vizinhos”. Fazendo conjunto com esta discussão, o artigo de Ana Maria Szapiro, “O indivíduo fora da cidade”, aborda a experiência da individualidade e do alheamento em relação ao outro. Analisa como o sujeito contemporâneo, inserido numa lógica de funcionamento cuja base é a da ideologia do liberalismo, parece tentar construir uma identidade embasada em práticas sociais de relações livres e igualitárias, com a família se transformando em campo de observação para essa prática.

As relações entre sujeito e sociedade é também um dos focos do artigo de Alda J. Alves Mazzotti, “Estratégias de enfrentamento do sofrimento psíquico no trabalho bancário”. Levando em consideração que nossa sociedade contemporânea tem se esmerado em “criar” novas formas de sofrimento, a autora procura entender as relações entre sofrimento psíquico e as ações empreendidas por bancários no enfrentamento cotidiano do estresse, da insatisfação pessoal com a empresa e as relações profissionais.

Os artigos de Fermino F. Sistos e Patricia Virginia Troncoso Guerrero – “Avaliando a dominância e argumentação em aprendizagem por interação” –, de Natanael A. dos Santos – “Tópicos em percepção e processamento visual da forma”-, e de Nilton P. Ribeiro Filho e Elton H. Mitsushima – “Interações entre sistemas de referência alocêntricos e egocêntricos” – trazem um outro tipo de discussão, compatível com a área de aprendizagem e da neuropsicologia, cujas temáticas e enfoques delimitam um dos possíveis, apesar de não-hegemônicos, espaços de saber dentro do campo teórico da Psicologia.

Procurando articular alguns dos pressupostos da Psicologia sócio-histórica, representada por Vygotsky – com a análise do conceito de identidade de Antonio da Costa Ciampa –, Ricardo M. Mattos, Marisa S. Castanho e Ricardo F. Ferreira estabeleceram como ponto de partida para esse trabalho a autobiografia de uma ex-moradora de rua. O relato acompanha os procedimentos investigativos no processo de constituição da identidade cuja fundamentação teórica, como afirmam os autores, está centrada em alguns conceitos de Vygotsky.

Na seção Comunicação de Pesquisa, Dóris Rinaldi apresenta a investigação que coordena, no campo da saúde mental, motivada pelas discussões dos novos serviços de atenção à saúde mental que se desencadearam, a partir dos anos 1980, sobre uma sociedade sem manicômios. Dóris Rinaldi aponta para o surgimento de uma nova linguagem na relação com o “doente mental”, proporcionada pela veiculação dos conceitos que orientam as propostas atuais no campo da saúde mental, que buscam um afastamento com a ordem manicomial existente. Por fim, tem-se a resenha do recente livro de Sônia Alberti, Crepúsculo da Alma, feita por Francisco Portugal. No texto, o autor destaca a importância histórica do livro, para a Psicologia no Brasil, em especial as análises sobre os discursos produzidos no século XIX, em torno de “conceitos” como alma, consciência e espírito. O livro, que tem em Michel Foucault um interlocutor privilegiado, aponta para a emergência do pensamento psicológico no Brasil, as tensões e os conflitos presentes nessa gênese, e os desdobramentos daí advindos.

A pesquisa em Psicologia ganha com essas contribuições e esperamos, como editores, poder continuar apresentando reflexões que, de alguma maneira, conduzam ao confronto do homem consigo mesmo, abrindo perspectivas concretas para um mundo socialmente mais justo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A CULTURA é o ópio do povo. Editorial. O Nó Górdio. Jornal de Metafísica, Literatura e Artes, ano 1, n. 1, p. 5-6, dez. 2001.
DOSSIER Ernest Jünger. Magazine Littéraire. Paris, n. 326, p. 16-59, nov. 1994.
JÜNGER, Ernest. Le Noeud Gordien. Paris: Bourgois, 1970.

* Professoras e pesquisadoras do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.