COMUNICAÇÃO DE PESQUISA


CLÍNICA DO SUJEITO E ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: NOVOS DISPOSITIVOS DE CUIDADO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

Doris Luz Rinaldi*

 

A pesquisa que ora desenvolvemos intitula-se “Clínica do sujeito e atenção psicossocial: novos dispositivos de cuidado no campo da saúde mental”(1), dando prosseguimento à pesquisa que se iniciou em agosto de 1997 na Faculdade de Serviço Social da mesma universidade(2), com o objetivo de repensar os pontos de referência teóricos e as estratégias de intervenção no âmbito das práticas de cuidado nos serviços públicos de saúde mental do Rio de Janeiro.

O trabalho acumulado neste período, através de discussão teórica articulada à realização de pesquisa empírica (3), permitiu que avançássemos segundo as linhas básicas de investigação propostas inicialmente no projeto. Essas linhas dividiam-se entre a análise do processo de trabalho do Serviço Social, no contexto do trabalho em equipe que se desenvolve na área de saúde mental, e a análise do papel da família no cuidado aos usuários nesta mesma área. Posteriormente, acrescentamos uma terceira linha de investigação com o objetivo de analisar os dispositivos básicos que instrumentalizam as novas práticas assistenciais em saúde mental, no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira, com especial atenção para o papel do dispositivo psicanalítico nos novos serviços. Esta última linha foi consolidada em 2001, tendo se ampliado e se aprofundado a partir de então, tornando-se o eixo central da pesquisa no que tange à investigação das categorias discursivas que sustentam os novos dispositivos de cuidado.

A desconstrução da velha ordem manicomial e excludente e a concomitante construção de novas formas de lidar com a loucura constituem um processo que vem se desenvolvendo em várias partes do mundo, desde meados do século passado, através de um trabalho permanente de crítica ao paradigma psiquiátrico e ao modelo asilar de tratamento da loucura que a aprisiona ao saber médico, sob a forma da “doença mental”. Esse trabalho de transformação tomou caminhos diferentes de acordo com a diversidade das situações existentes em cada país, tendo se iniciado, no Brasil, na passagem da década de 1970 para a década de 1980 com o movimento da luta antimanicomial. Na década de 1990, tal processo desenvolveu-se em direção à proposta de uma Reforma Psiquiátrica, com a discussão do Projeto de Lei n. 3657/89 do Deputado Paulo Delgado (PT/MG), apresentado pela primeira vez em 1989. Ao longo da década de 1990, a discussão desse Projeto, com suas idas e vindas, foi acompanhada do aparecimento de novos serviços, o que fez com que sua aprovação 12 anos depois, em 6 de abril de 2001 (Lei 10.216), com acréscimos e modificações, se desse em um cenário em que a assistência em saúde mental se apresenta em parte modificada(4).

Hoje, a existência de uma rede de serviços de atenção diária em saúde mental, tais como Hospitais-Dia, Residências Terapêuticas e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), convive com o velho modelo hospitalocêntrico e manicomial, mas já se mostra como uma “tendência vigorosa e promissora” (ALVES, 1999, p. 23). Se os asilos ainda permanecem em número elevado no país, como depósitos de excluídos e despossuídos de todos os matizes, não há dúvida que a expansão dessa nova rede de cuidados representa o início promissor de um processo de transformação dos modos tradicionais de lidar com a loucura, que não se resume à desospitalização e à criação social e administrativa de novos serviços, mas que implica a reinvenção dos saberes e práticas neste campo. O saber psiquiátrico não detém mais a exclusividade no tratamento da loucura no campo da saúde mental, campo este que se afirma hoje como multidisciplinar, articulando diferentes saberes e práticas em torno de algumas propostas básicas. A luta pela cidadania do louco e a consideração da loucura como uma questão de existência constituem o eixo em torno do qual giram as principais propostas da Reforma Psiquiátrica.

Atualmente, os Centros de Atenção Psicossocial ocupam um lugar privilegiado, de referência, na rede de saúde mental, existindo 398 CAPS cadastrados no país(5). A legislação vigente determina a autonomia desta unidade em relação à rede hospitalar, uma vez que os CAPS poderão funcionar exclusivamente em área física específica e independente de qualquer estrutura hospitalar, só podendo localizar-se dentro dos limites de uma unidade hospitalar geral ou de instituições universitárias de saúde, desde que com estrutura física independente, com acesso privativo e equipe profissional própria(6).

No município do Rio de Janeiro, a reestruturação da assistência teve início em 1995, quando a Secretaria Municipal de Saúde assumiu a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo inaugurados a partir de 1996 vários CAPS, que perfazem hoje nove unidades, sendo três dedicadas à clientela infanto-juvenil(7). Além desses, passaram à gestão da Secretaria Municipal de Saúde os serviços de atenção diária do Instituto Philippe Pinel e do antigo Centro Psiquiátrico Pedro II (atual Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira), municipalizados em 2000. Nesse compito, não podemos esquecer os hospitais-dia vinculados às unidades universitárias, como o Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ, e o Instituto de Psiquiatria, da UFRJ – sobre os quais nos debruçamos em fases anteriores da pesquisa –, assim como o Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro, ligado à Secretaria Estadual de Saúde (TENÓRIO, 2001).

A criação desta rede, entretanto, não garante, por si só, a transformação dos modos tradicionais de lidar com a loucura, pois a desconstrução da ordem manicomial excludente passa necessariamente por uma contestação radical da nossa relação com o chamado ‘louco’, enraizada em nossa cultura (RINALDI, 2000, p. 9). O paradigma da desinstitucionalização que norteia a Reforma Psiquiátrica deve ser compreendido, a nosso ver, como um processo de questionamento permanente dos saberes e práticas através dos quais, no cotidiano da assistência, abordamos a questão da loucura.

Na tentativa de contribuir para esse processo, a pesquisa que desenvolvemos nas duas unidades universitárias acima citadas, aliada ao acompanhamento e à discussão da literatura sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira, indicou a existência de uma nova linguagem no campo da Saúde Mental, que veicula os novos conceitos que orientam os dispositivos propostos em lugar da velha ordem manicomial. Neste trabalho, percebemos a importância do termo cuidado, que engloba as novas práticas, utilizado de forma generalizada na legislação em saúde mental, na literatura sobre o assunto e na prática dos serviços. Este termo surge como uma categoria que vem substituir a noção de clínica – esta última referida à prática psiquiátrica tradicional –, ganhando novos sentidos para além dos tradicionais cuidados médicos.

A categoria cidadania, por sua vez, é o carro-chefe da Reforma, onde se evidencia sua dimensão política, que não se restringe apenas à proposta de uma revisão das formas de tratamento da loucura, mas busca dar a ela uma outra resposta social (TENÓRIO, 2001, p. 11), que supere a tradicional exclusão social do louco. Já os termos escuta e acolhimento ganham o status de categorias pela importância que assumem nas práticas que se desenvolvem nesses serviços, como novos procedimentos que sustentam o tratamento, onde, ao considerar-se a loucura como uma questão de existência, o que se passa a valorizar é a dimensão do sujeito, outra categoria que ganha relevo. Neste quadro, vemos ressurgir a categoria clínica agora ressignificada através de uma adjetivação, como clínica ampliada, que não mais se confunde com a clínica médica strictu sensu, mas que inclui todos os procedimentos de atenção psicossocial, incorporando, como agentes destes procedimentos, profissionais de diferentes áreas.

O destacamento dessas categorias e a intenção de analisá-las em diferentes contextos discursivos, procurando apreender a diversidade de sentidos que elas recobrem, constitui o cerne de nossa atual proposta de pesquisa, dando seqüência ao trabalho que viemos realizando(8). Nosso objetivo é compreender o campo da saúde mental, a partir da Reforma Psiquiátrica, como um campo em construção, heterogêneo e plural, onde o trabalho de desconstrução da velha ordem passa necessariamente por uma reflexão permanente sobre as novas práticas, suas diferenças e semelhanças em relação às velhas práticas excludentes.

A partir disso, reestruturamos nossas três linhas de pesquisa: de um lado prosseguimos na investigação da intervenção do Serviço Social nas novas práticas de cuidado, assim como na análise do papel da família no campo da saúde mental, não só como objeto de cuidado, mas também como cuidadora, através da análise das categorias que destacamos e outras que surgirem e se revelarem discursivamente importantes para a compreensão dos rumos da Reforma Psiquiátrica no Brasil. De outro, estamos aprofundando a investigação já iniciada anteriormente sobre as possibilidades de vigência do dispositivo psicanalítico nos novos serviços e sua contribuição, como clínica do sujeito, aos propósitos da Reforma, norteados, da mesma forma, pelo estudo das categorias que pusemos em destaque. Como pensar a clínica psicanalítica nesse novo espaço de cuidados e qual a sua importância, como práxis que visa o sujeito, neste processo de transformação?

O desenvolvimento proposto para a pesquisa impôs, por sua vez, a escolha de um novo campo empírico de investigação. Após o estudo que fizemos em dois hospitais universitários, onde a dominância do discurso médico é indiscutível – ainda que localizadamente tenhamos constatado a presença das novas tendências trazidas pela Reforma – tomamos como campo empírico da pesquisa os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Município do Rio de Janeiro, tendo em vista o lugar central que essa nova unidade assistencial tem, tanto empírica quanto teoricamente, no campo da saúde mental. Com isso, pretendemos ampliar a pesquisa e contribuir mais efetivamente para a Reforma Psiquiátrica, através da construção de novas formas de lidar com a loucura.

NOTAS
* Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora geral da Pesquisa. Também participam dessa investigação o Prof. Assistente Marco José de Oliveira Duarte, como sub-coordenador; as alunas de pós-graduação Eneida Maria Borges de Arantes (Especialização), Sandra Autuori (Mestrado), Lúcia Jardim Fernandes (Mestrado) e Maria Cândida Neves de Lima (Mestrado); a bolsista de apoio técnico Débora Salazar Sendra (CNPq); as bolsistas de iniciação científica Vivien Gomes Netto (PIBIC/CNPq), Patrícia Barros Cunha (PI-CNPq), Beatriz Raposo Câmara (PIBIC/CNPq) e Anabela Neves Marcos (PI-CNPq), além de Carina Vasconcelos de Oliveira e Renata Costa como estagiárias voluntárias da UERJ.
1 - A equipe de pesquisa é constituída por uma coordenação geral: Profª. Adjunta Doris Luz Rinaldi e uma sub-coordenação: Profº. Assistente Marco José de Oliveira Duarte. Participam da investigação bolsistas de iniciação científica – Vivien Gomes Netto (PIBIC/UERJ), Patrícia Barros Cunha (PI-CNPq), Luciana Vanzan (PI-CNPq), Beatriz Raposo Câmara (PIBIC-UERJ) e Anabela Neves Marcos (PI-CNPq) –, alunos de pós-graduação – Cecília Altieri (Especialização), Eneida Maria Borges de Arantes (Especialização), Sandra Autuori (Mestrado), Lúcia Jardim Fernandes (Mestrado), Maria Cândida Neves de Lima (Mestrado) e Karine Querino Mira (Mestrado) – e uma bolsista de apoio técnico A.S. Luciana Maria César Gonsalves (CNPq).
2 - Em 1997, demos início à pesquisa “Saúde, Loucura e Família: práticas socioinstitucionais em serviço”, dentro de uma linha de investigação inaugurada em agosto de 1994, na Faculdade de Serviço Social da UERJ, com a pesquisa “Saúde e loucura: processos sócio-culturais e subjetividade – a família em cena”. A partir de 2001, a pesquisa passou a localizar-se no Instituto de Psicologia e integrar na sua execução duas unidades acadêmicas da UERJ: o Instituto de Psicologia e a Faculdade de Serviço Social.
3 - Nos períodos anteriores da pesquisa, nossos campos de investigação empírica foram o Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e o Instituto de Psiquiatria, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB).
4 - Para uma análise deste movimento, ver Amarante (1995), Rinaldi e Duarte (1997, 1999, 2001) e Tenório (2001).
5 - Palestra realizada por Ana Pitta no 1º Fórum de Centros de Atenção Psicossocial (Quissamã), em dezembro de 2002.
6 - Portaria/GM nº. 336, de 19 de fevereiro de 2002, do Ministério da Saúde.
7 - Cadastro dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado do Rio, por Município, ano 2002, mês novembro.
8 - Uma primeira análise de alguns desses significantes encontra-se no artigo de Rinaldi, D. “ O acolhimento, a escuta e o cuidado: algumas notas sobre o tratamento da loucura”, parte integrante do Relatório Final da Pesquisa, concluído em 1999, posteriormente publicado na Revista Em Pauta (2000).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Domingos Sávio. O “ex” tentando ver o futuro. Cadernos do IPUB, Rio de Janeiro, nº. 14, p. 21-30, 1999.
AMARANTE, Paulo (Org). Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995.
RINALDI, Doris. O acolhimento, a escuta e o cuidado: algumas notas sobre o tratamento da loucura. Em Pauta, Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, nº. 16, p. 7-18, 2000.
RINALDI, Doris Luz; DUARTE, Marco José de Oliveira. Saúde e loucura: processos socioculturais e subjetividade. A família em cena. (Relatório Final da Pesquisa). Rio de Janeiro: DFTPSS/Faculdade de Serviço Social da UERJ, jul. 1997.
______. Saúde, loucura e família: práticas socioinstitucionais em serviço. (Relatório Final da Pesquisa). Rio de Janeiro: DFTPSS/Faculdade de Serviço Social da UERJ, jun. 1999.
______. Saúde, loucura e família: práticas socioinstitucionais em serviço. (Relatório Final da Pesquisa). Rio de Janeiro: DFTPSS/Faculdade de Serviço Social; DPC/Instituto de Psicologia/UERJ, jul. 2001.
TENÓRIO, Fernando. A Psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

Recebido em: 11/06/2003
Aceito para publicação em: 11/08/2003
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