ARTIGO 8


CONTRIBUIÇÃO DE VYGOTSKY AO CONCEITO DE IDENTIDADE: UMA LEITURA DA AUTOBIOGRAFIA DE ESMERALDA(1)
VYGOTSKY’S CONTRIBUTION TO THE CONCEPT OF IDENTITY: A VIEW OF THE AUTOBIOGRAPHY OF ESMERALDA

Ricardo Mendes Mattos*
Marisa Irene Siqueira Castanho**
Ricardo Franklin Ferreira***



RESUMO

O presente estudo, com ênfase na análise do conceito de identidade enquanto metamorfose – oriundo das obras de Antonio da Costa Ciampa – propõe uma articulação de alguns de seus pressupostos com teorias subjacentes à Psicologia sócio-histórica representada por Vygotsky. Por outro lado, delimitam-se inferências ao processo de constituição da identidade à guisa da lei da dupla formação das funções psicológicas superiores, proveniente dos estudos de Vygotsky. A estratégia empregada para subsidiar empiricamente o trabalho consistiu na leitura crítica de uma obra literária autobiográfica de uma ex-moradora de rua, a saber, "Por que não dancei?", narrada por Esmeralda. Pretende-se colaborar com a produção de conhecimento científico na área da Psicologia Social e verificar a pertinência de tal articulação.

PALAVRAS-CHAVE
Psicologia Social; Identidade; Metamorfose humana; Psicologia sócio-histórica; Lei da dupla formação dos processos psicológicos superiores.


INTRODUÇÃO
A existência do homem é uma contínua tentativa de ‘instalar-se’ de uma maneira segura em seu mundo, sempre em constante transformação. Para este processo se dar, o homem organiza suas experiências numa ordem significativa por meio de conhecimentos hermeneuticamente construídos, e que se configuram em um mundo simbólico. Nele, estão articuladas suas referências de mundo e de si mesmo – seus conceitos, crenças, idéias, atribuições sobre si e sobre seu ambiente físico e social. Uma dessas referências consideramos fundamental: a identidade.

No sentido de ampliarmos a compreensão sobre identidade, este artigo articula dois conceitos utilizados na Psicologia Social brasileira: o de identidade enquanto metamorfose e a lei da dupla formação dos processos psicológicos superiores. Para isso, iniciamos nossa apresentação ressaltando a visão de homem proveniente do materialismo histórico e dialético, que se apresenta como matriz filosófica que permite a realização de tal diálogo. Na seqüência, discorremos sobre o processo de constituição da identidade segundo Antonio da Costa Ciampa, e a formação dos processos psicológicos superiores, de acordo com a Psicologia Sócio-Histórica e conforme Vygotsky. Finalizando, com o intuito de identificar o valor heurístico de tais conceitos, analisamos um caso concreto. Produzimos a intersecção dos dois prismas para compreendermos a constituição da identidade de Esmeralda, uma mulher negra e pobre, fruto de um contexto de violência, e que conseguiu reverter o caminho ao qual estava destinada – o da delinqüência e o da morte.

A referida articulação, demasiada desafiadora e importante, não pode ser realizada sem primeiramente definirmos suas limitações, bem como algumas ressalvas que se fazem impreteríveis.

O objeto de estudo adotado é, única e estritamente, o processo de constituição da identidade. Em seu interior é que serão articulados os conteúdos enunciados no título do presente artigo. Por conseguinte, o estudo elaborado não pretendeu aprofundar-se na teoria de identidade de Ciampa, nem tampouco de analisar minuciosamente os conteúdos condizentes aos estudiosos da Psicologia Sócio-Histórica.

Há que se considerar que a visão de homem como uma totalidade concreta em ininterrupto processo de construção, de cunho dialético, está presente, explícita ou implicitamente, na grande maioria dos estudos realizados no interior da Psicologia Social brasileira, pois se apresenta como um denominador comum que permeia todas as vertentes desta área do conhecimento.

Tal afirmação é apoiada por Silvia Lane, cuja história acadêmica confunde-se com a própria história da Psicologia Social brasileira. Pontua que a citada área desenvolve-se a partir da adoção de uma epistemologia materialista histórica e dialética (LANE, 1985). Nesse processo, o indivíduo concreto, objeto da Psicologia Social, passou a ser visto como a “manifestação de uma totalidade histórico-social” (LANE, 2001, p. 16), constituído a partir das relações sociais em um contexto histórico determinado.

Baseando-se nesses pressupostos, Ciampa (1977), em sua dissertação de mestrado, discorre sobre o que ele denominou “questão original da Psicologia Social” para explicar o fenômeno humano. Em seu trabalho, enfatizou a necessidade de se compreender a relação dialética que se estabelece entre indivíduo e sociedade, considerando o conceito de identidade como o ponto-chave neste processo.

O conceito de identidade social, designando um fenômeno constituído na dialética entre indivíduo e sociedade, deve ser considerado como um conceito central em Psicologia Social, pois melhor que qualquer outro, permite uma adequada compreensão daquela relação entre indivíduo e sociedade (CIAMPA, 1977, p.137).

Para explicar a dialética indivíduo-sociedade, Ciampa lança mão de conceitos oriundos das obras de Berger e Luckmann (1985). Para tais autores, "estar em sociedade significa participar da dialética da sociedade" (p. 173), de tal maneira que o indivíduo, ao tomar contato com condições objetivas, historicamente determinadas, constitui sua realidade subjetiva que, concomitantemente, ao ser objetivada constitui, por sua vez, a mesma realidade objetiva em que vive.

Neste sentido, Ciampa proclama: “compreender a identidade é compreender a relação indivíduo-sociedade” (1977, p. 19), considerando que “cada indivíduo encarna as relações sociais configurando uma identidade pessoal” (CIAMPA, 1990, p. 127).

Da mesma forma, diversos autores brasileiros, representantes da Psicologia Sócio-Histórica (BOCK, 2001; GONÇALVES, 2001; AGUIAR, 2001; FURTADO, 2001), compartilham da mesma concepção. Vejamos a opinião de Aguiar que ilustra, tanto quanto ratifica, tal congruência: “O homem [...] atua interferindo no mundo (atividade) e, ao mesmo tempo, é afetado por esta realidade, constituindo seus registros” (2001, p. 96).

Assim, nossas articulações envolvendo a Psicologia Sócio-Histórica e o conceito de identidade não estão desprovidas de fundamentação teórica, posto que ambas partilham de uma mesma matriz filosófica coadunada à visão marxista de homem.

PROCESSO DE PRODUÇÃO DA IDENTIDADE SOB A LUZ DAS OBRAS DE CIAMPA
Segundo Berger e Luckmann (1985), a realidade subjetiva(2) é construída a partir de um processo de interiorização da realidade social dotada de sentido e mediada por outrem.

Neste sentido, podemos presumir a constituição da identidade como uma dialética entre a identificação atribuída a nós pelos outros e a autoidentificação, “entre a identidade objetivamente atribuída e a identidade subjetivamente apropriada” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 177). Assim, a identidade é formada e transformada no âmago da dialética que envolve indivíduo e sociedade. Tal processo, então, depende do conhecimento socialmente difundido em um todo dotado de sentido, em que um “outro” indivíduo como mediador é parte integrante.

Seguindo de perto os passos de Berger e Luckmann, Ciampa elabora colocações sobre o mesmo processo de modo muito similar. Declara que o “significado socialmente compartilhado define, explica, legitima a realidade” (1990, p. 71) e, portanto, “a identidade se concretiza na atividade social [...] uma identidade que não se realiza na relação com o próximo é fictícia, é abstrata, é falsa” (1990, p. 86).

Ciampa refere-se ao processo de interiorização como elemento imprescindível para a constituição da identidade. Assevera: “interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo nosso. A tendência é nós nos predicarmos de coisas que os outros nos atribuem” (1990, p. 131).

Como podemos perceber, as concepções de Berger e Luckmann e de Ciampa se assemelham. No entanto, este último propõe um avanço no entendimento do processo de interiorização ao analisar detidamente os “modos de produção” da identidade (alusão aos modos de produção da mercadoria no sistema capitalista, descritos por Marx em “O Capital”)(3).

Sondando o “aspecto operativo” da identidade, Ciampa vislumbra três momentos importantes de seu processo de constituição: pressuposição, posição e reposição.

Inicialmente, ocorre a pressuposição da identidade, pois “sempre há a pressuposição de uma identidade; sempre uma identidade é pressuposta” (CIAMPA, 1990, p. 153). Entendemos tal afirmativa como a ocorrência de uma predicação atribuída ao indivíduo pelo ‘outro’, isto é, a nomeação de um atributo individual nas relações que se dão no âmago de uma estrutura social. Trata-se de uma identidade dada, atribuída, outorgada pelo outro e mediada por este. Esta identificação, objetivamente infligida, carrega em si o conhecimento compartilhado socialmente e as expectativas dos outros no que se refere ao modo como um determinado indivíduo deve agir e ser. Assim, de acordo com a pressuposição da identidade, o indivíduo, como ser social, é “um ser-posto” (CIAMPA, 1990, p. 164). Compreende-se, então, que em um primeiro momento a identidade é pressuposta, ou seja, “suposta antecipadamente” (SÉGUIER, 1972).

Num segundo momento, tal pressuposição é incorporada pelo indivíduo; ele a assume e articula uma posição em relação a seu grupo e seu mundo. Tomando como referência as concepções de Berger e Luckmann (1985), poderíamos dizer que aquela identificação, objetivamente atribuída, foi subjetivamente apropriada pelo indivíduo. Este adota o que lhe foi pressuposto pelas pessoas significativas de seu meio social, identifica-se com tais características e representa sua posição, ou seja, apresenta-se como representante dessas características.

Após a pressuposição da identidade e o decorrente processo de interiorização, pelo indivíduo, dessa identidade pressuposta, “seu processo interno de representação é incorporado na sua objetividade social...” (CIAMPA, 1990, p. 161).

Enveredando no terceiro momento do processo de produção da identidade, uma vez pressuposta e posta, a identidade é “re-posta” constantemente pelo indivíduo em suas relações sociais. A “re-posição” retira a sucessão temporal do processo, posto que ele aparece como dotado de uma identidade permanente e estável, em o que Cimpa pondera ser a “mesmice” de si. A mesmice de si mesmo “é pressuposta como dada permanentemente e não como reposição de uma identidade que uma vez foi posta” (CIAMPA, 1994, p. 67). Assim, “uma vez que a identidade pressuposta é reposta, ela é vista como dada - e não como se dando num contínuo processo de identificação” (p. 66).

Estão ressaltados os processos que se dão na constituição da identidade compreendida como metamorfose. Esta, contida na constituição contraditória do fenômeno concreto, é escamoteada pela aparência de não-metamorfose oriunda do trabalho de reposição da identidade que aparece sob a forma de personagem – tal forma é concernente ao aspecto representacional da identidade em sua aparência eminentemente descritiva que “coisifica” a atividade que a engendrou. Ciampa (1990, p. 163) descreve assim tal conclusão: “re-atualizamos, através de rituais sociais, uma identidade pressuposta, que assim é vista como algo dado (e não se dando continuamente através da re-posição). Com isso, retira-se o caráter de historicidade da mesma...”.

O processo de produção da identidade, enquanto metamorfose, dá-se numa base absolutamente concreta: assim como a identidade é pressuposta nas relações sociais materializadas, ela é assumida e re-posta, sempre atrelada à realidade objetiva historicamente construída. Como anuncia Ciampa (1990, p. 201): “na práxis, que é a unidade da subjetividade e da objetividade, o homem se produz a si mesmo. Concretiza sua identidade”.

O processo de concretização da identidade configura-se empiricamente no que Ciampa denomina de ‘personagem’(4). Esta é uma forma subjetivada dos papéis sociais, constituintes do acervo social de conhecimento. Através dos papéis, é dada a possibilidade de o indivíduo agir no mundo e objetivar, ainda que de um modo parcial, sua identidade (CIAMPA, 1990). A personagem constitui-se no papel social subjetivado de modo peculiar pelo indivíduo.

Prosseguindo, articularemos tais concepções com a “Lei da Dupla Formação” de Vygotsky, ressaltando a forma com que contribui para uma melhor compreensão do processo de constituição da identidade.

CONCEITO DA “LEI DA DUPLA FORMAÇÃO DAS FUNÇÕES PSICOLÓGICAS SUPERIORES” EM VYGOTSKY
Vygotsky, o protagonista principal do que veio a ser denominado Psicologia Sócio-Histórica (BOCK; GONÇALVES; FURTADO, 2001), norteou suas concepções sobre o fenômeno humano a partir do estudo dos processos psicológicos superiores. Tais processos “são aqueles que caracterizam o funcionamento psicológico tipicamente humano” (OLIVEIRA, 1993, p. 23), e possuem sua origem ontogenética permeada pela interação social e mediada simbolicamente pelos sistemas historicamente construídos pela humanidade.

Considerando os processos relacionados ao conceito de identidade, é possível, guardadas as disparidades epistemológicas, incluí-la no âmbito dos processos psicológicos superiores por implicar numa consciência de si enquanto ser no mundo peculiar da espécie humana. Por outro lado, ao analisarmos a formação dos processos psicológicos superiores, estamos, indiretamente, acumulando conhecimentos que nos permitem compreender o processo de constituição da identidade.

Segundo Vygotsky (1998, p. 75), os processos psicológicos superiores estão atrelados à Lei da Dupla Formação, segundo a qual “todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social e depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológico) e depois, no interior da criança (intrapsicológico)”.

Tal conceito, embora aparentemente simples, deve ser compreendido com algumas ressalvas. Primeiramente, ele não se refere a uma coerção social infringida ao indivíduo, isto é, uma imposição do outro que é interiorizada necessariamente pelo indivíduo. Quando destacamos a participação do outro como mediador na interiorização de “formas culturais maduras de atividade” (GÓES, 1991, p. 17), não podemos perder de vista o prisma de sujeito subjacente à teoria vygotskyana, que “não é passivo nem apenas ativo; é interativo” (VIGOTSKY, 1998, p. 21). Como manifesta Góes, “o plano intersubjetivo não é o plano do 'outro', mas o da relação do sujeito com o outro” (1991, p. 19).

O conceito da “Lei da Dupla Formação” assim apresentado de forma simplista – no enredo das aparências –, pouco acrescenta ao processo de produção da identidade à guisa da teoria de Ciampa. Vimos que este último assume a pressuposição da identidade nas relações sociais para, posteriormente, o indivíduo interiorizá-la, assumindo sua posição. Em termos distintos, porém em conceito demasiado equivalente, Vygotsky pondera que uma função psicológica superior perpassa, primeiramente, pela intersubjetividade (relação do indivíduo com o outro) para, num segundo momento, tornar-se intrasubjetiva. De sorte que uma indagação se faz impreterível: de que maneira, portanto, pode-se afirmar que a “Lei da Dupla Formação” contribui para a elucidação do processo de constituição da identidade?

A resposta a tal questão, em última análise, resume o objetivo deste trabalho. Com o intuito de clarificá-la de modo pertinente, enfocaremos única e exclusivamente o processo de transposição da identidade pressuposta para uma identidade posta, ou, em termos vygotskyanos, a transformação do plano interpsíquico em intrapsíquico, no que se convencionou denominar processo de interiorização.

Para tanto, atentemos a uma ressalva feita por Oliveira (1993). Segundo a autora, para uma compreensão da obra de Vygotsky, devemos ter bem claro o significado de síntese, pois é uma idéia presente em suas colocações e central na sua forma de compreender os processos psicológicos:

A síntese de dois elementos não é a simples soma ou justaposição desses elementos, mas a emergência de algo novo, anteriormente inexistente. Esse componente novo não estava presente nos elementos iniciais: foi tornado possível pela interação entre esses elementos, num processo de transformação que gera novos fenômenos (OLIVEIRA, 1993, p. 23).

Mais adiante, Oliveira afirma: “o processo pelo qual o indivíduo internaliza a matéria- prima fornecida pela cultura não é, pois, um processo de absorção passiva, mas de transformação, de síntese” (p. 38). Neste sentido, é bem sabido que o conteúdo simbólico imanente em uma interação possui um significado compartilhado socialmente por membros pertencentes a uma mesma cultura. Não obstante, ao se tornar um processo intrapsíquico, este conteúdo sofre uma síntese comprometida com o “sentido” pessoal que o indivíduo atribui àquele conteúdo interiorizado.

Conclusão similar foi efetuada por Alvarez e Del Rio (1996, p. 86), quando apontam que os “processos externos são transformados para criar processos internos”. Leontiev, um dos principais seguidores de Vygotsky, chega a seguinte conclusão, muito semelhante à destes últimos:

A ação interior constitui-se, portanto, primeiro sob a forma de uma ação exterior desenvolvida. Posteriormente, após uma transformação progressiva – generalização, redução específica dos seus encadeamentos, modificação do nível em que se efetua – ela interioriza-se, isto é, transforma-se em ação interior, desenrolando-se inteiramente no espírito da criança (2000, p. 200, grifos nossos).

Conseqüentemente, o processo de interiorização está permeado por uma re-significação individual, re-significação esta que metamorfoseia o conteúdo compartilhado, adquirindo um sentido intrapsíquico singular.

Parece-nos que tal concepção, malgrado não ressaltada por Ciampa, é um consentimento entre autores que adotam uma perspectiva sócio-histórica na investigação da ontogênese.

A ARTICULAÇÃO DA PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA COM O CONCEITO DE IDENTIDADE NO ÂMAGO DA PSICOLOGIA SOCIAL BRASILEIRA
Ciampa, em um artigo publicado posteriormente à sua tese de doutoramento, contempla a “produção de sentido” como fator fundamental do conceito de identidade como metamorfose: “Evidentemente, não se trata aqui de metamorfose como processo natural (como a da borboleta), mas de processo histórico e social, que se dá fundamentalmente como produção de sentido” (CIAMPA, 1998, p. 92-93, grifos nossos).

Conjeturamos, então, que a constituição da identidade, segundo o prisma desse autor, não está absolutamente desprovida da idéia de produção de sentido. Não obstante, Ciampa se abstém de elucidar as propriedades intrínsecas dessa produção de sentido, de sorte que achamos lícito dialogar com autores da Psicologia Sócio-Histórica que esclarecem em minúcias tal questão.

Góes (1991, p. 18) relata: “As funções psicológicas, que emergem e se consolidam no plano de ação entre sujeitos, tornam-se internalizados, isto é, transformam-se para constituir o funcionamento interno”. Assim, a identidade individual constitui-se a partir de um reflexo das relações intersubjetivas. Porém, como enfatiza Furtado (2001, p. 76): “o termo reflexo aqui pode ser entendido em sentido metafórico, já que não se trata de reflexo especular, da duplicação do mundo externo no mundo interno, mas de uma construção que depende da sua base material concreta”.

Aguiar corrobora a concepção de Furtado quando convida alguns pioneiros da Psicologia Sócio-Histórica a refletirem sobre o processo de interiorização. Escreve que não se trata de um “registro mecânico do que se vive ou se experiência” (2001, p. 96), constituindo uma “cópia fiel da realidade”, mas sim entendido “numa processualidade permanente [...] num processo de conversão” de “produções simbólicas em construções singulares” (p. 98).

Vamos nos deter um pouco mais na obra de Aguiar (2001), pois esta autora promove fértil discussão a respeito do processo de apropriação individual das significações objetivas da sociedade. Ela afirma que o plano individual não se constitui numa mera transposição do social; o movimento de apropriação das referências das quais se dispõe no acervo social de conhecimento envolve a atividade do sujeito e contém a possibilidade do novo, da criação.

Para endossar suas opiniões, Aguiar convoca alguns autores da Psicologia Sócio-Histórica. Assim, referencia Leontiev: “o reflexo da realidade objetiva pela consciência não se produz passivamente, mas de maneira ativa, criativa, sobre a base e no decorrer da transformação prática da realidade” (1978 apud AGUIAR, 2001, p. 97). Cita também Pino, quando este discute o conceito de conversão:

A noção de conversão pressupõe [...] a noção de superação e de mediação, pois o que ocorre não é a interiorização de algo de fora para dentro, mas a conversão de algum elemento da realidade social em algo que, mesmo permanecendo 'quase social', se transforma num elemento constitutivo do sujeito (PINO apud AGUIAR, 2001, p. 103).

Tendo como base essas referências teóricas, podemos compreender com maior amplitude e lucidez a constituição da identidade.

Como vimos, tanto o processo denominado por Ciampa de “interiorização dos predicados atribuídos pelos outros”, como aquele que Berger e Luckmann (1985) conceituam de “apropriação subjetiva”, não contemplam alguns aspectos intrínsecos apontados pelos autores da concepção sócio-histórica. O enveredamento por concepções oriundas de autores denominados sócio-históricos permitiu-nos vislumbrar processos como síntese, transformação, criação, configuração e metamorfose, subjacentes à interiorização. Assim, o significado socialmente compartilhado referente à pressuposição da identidade, ao ser internalizado na adoção da posição identitária, recebe um sentido pessoal, uma configuração nova, sintética e qualitativamente distinta que, embora impregnada de representações sociais, é apropriada de forma singular e individual.

Enfim, ao lermos criticamente as inferências prescritas anteriormente sobre o processo de constituição da identidade, relevamos a existência de sucessivas superações dialéticas. Primeiramente, a concepção de identidade como um atributo estático é refutada por Ciampa, ao analisar em pormenores a metamorfose como um processo constituinte e intrínseco à sua concepção de identidade. Mais adiante, o conceito da “Lei da Dupla Formação” nos permitiu aprofundar a apropriação individual dos conteúdos sociais.

Ademais, sintetizando o conhecimento produzido no presente artigo, registramos que a identidade que aparentemente surge como não-metamorfose, como um traço estático e imutável, escamoteia seu intrínseco processo de constituição. Assim sendo, inicialmente verificamos que a identidade é pressuposta a partir da relação do indivíduo com significados socialmente compartilhados, no plano intersubjetivo e mediado por “outro” indivíduo. Posteriormente, ocorre a adoção de uma posição, que não coincide de forma isomórfica com o conteúdo intersubjetivo, posto que sofre uma síntese e elaboração individual de sentido ao ser transportada para o âmbito intrasubjetivo. Finalmente, o indivíduo repõe tal identidade, sempre atrelada às bases materiais e concretas da estrutura social (relações sociais e institucionais), conferindo-lhe uma aparente atemporalidade e ahistoricidade.

Devidamente munidos teoricamente, cabe-nos, nesse momento, convocar uma experiência real e concreta, para avaliarmos a versatilidade de tais conceitos. Vejamos o que Esmeralda tem a nos dizer.

ESMERALDA: ANÁLISE CRÍTICA DE UMA EXPERIÊNCIA CONCRETA DE CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADE
Esmeralda foi uma menina que viveu como moradora de rua, foi dependente química, assaltante e que, a partir de algumas contingências sociais, alterou o destino que vinha se delineando. Tornou-se uma mulher em processo de emancipação pessoal e escreveu um livro contando sua história pessoal. É esta a história que servirá de fio condutor de nossa análise.

Entretanto, o presente trabalho não visou narrar detalhadamente a vida de Esmeralda – há que se considerar que ela própria já o fez com esmero, em sua obra publicada –, mas, sim, recortar alguns trechos ilustrativos que nos viessem permitir articular idéias sobre a constituição de sua identidade à guisa dos conceitos explanados anteriormente.

Grosso modo, Esmeralda é uma sobrevivente de um contexto de violência e pauperismo que constitui a situação de “rualização” em uma metrópole como a cidade de São Paulo. Sua narrativa, que compreende o período de 1979 a 2000, parte da tentativa de entender a indagação: “por que não dancei?”. Considerando que muitas – a grande maioria – crianças e adolescentes que passaram pelas ruas de São Paulo estão “mortas, presas, loucas ou doentes” (ORTIZ, 2001, p. 19-20), Esmeralda tenta, ao longo da obra, responder à referida questão.

O primeiro fato relevante que destacamos está atrelado à proposta de Esmeralda de reconstituir a história de sua vida. Para tanto, a autora passa a procurar “documentos burocráticos produzidos sobre mim” e a “conversar com as pessoas que me conheceram” (ORTIZ, 2001, p. 20, grifos nossos). Observemos que o processo de mediação na constituição da identidade se faz saliente desde o início: para compreender a si, Esmeralda recorre à visão das instituições – como a FEBEM (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor) – e a das pessoas com as quais conviveu; ambas mediações vão balizar, dar significado e possibilitar a compreensão de si própria.

Esmeralda descreve um atributo de sua identidade, o de estar perdida – desfilando personagens que foi engendrando em sua ontogênese: “fui até o fundo. Roubei, fumei crack, fumei muito crack, trafiquei, fui presa, apanhei prá caramba. Diziam que eu não tinha jeito, estava perdida. Eu mesma achava que não tinha jeito” (ORTIZ, 2001, p. 19, grifos nossos). No relato, aponta primeiramente o espaço da intersubjetividade, do significado socialmente compartilhado, ilustrado pela expressão “diziam” (mediação do “outro” por meio da linguagem como sistema simbólico); após tal processo de pressuposição, ou seja, da atribuição de características identitárias pelo outro, ocorre a posição em relação a seu grupo e a seu mundo, momento no qual o referido atributo torna-se intrapsíquico (“eu mesma achava que não tinha jeito”).

Para compreender a si, Esmeralda relata fatos de sua infância: a dependência alcoólica da mãe; as atrocidades e os espancamentos que sua mãe lhe imputava; a morte de sua irmã após um estupro; a miséria e as condições sub-humanas de seu “barraco”; a atividade familiar de pedir esmola para sobreviver; os estupros que sofreu de seu padrasto e de um tio; o incêndio em seu barraco e outros infortúnios.

Para falar de si, Esmeralda recorre aos outros, ou melhor, à relação dela com os outros. Observamos daí a importância das relações sociais e das mediações institucionais da família. Esmeralda relata diversos episódios de sua infância que constituíram sua identidade, fatos a partir dos quais configurou um sentido individual ao significado compartilhado.

Eu me sentia presa num mundo desconhecido onde toda a minha família sofria, inclusive eu. Isso me dava uma raiva muito grande e muitas vezes eu tinha vontade de tomar veneno, de me matar. [...] Acho que uma família serve tanto para construir como prá afundar uma pessoa. A minha só me afundou (ORTIZ, 2001, p. 27).

Fica explícito que as relações e os acontecimentos concretos vivenciados por Esmeralda vão engendrando sua identidade, não como uma “cópia” do significado socialmente atribuído, mas como produto do sentido pessoal apropriado. É óbvio, em última análise, que há a pressuposição da identidade permeada por valores sociais, porém, uma vez constituintes da realidade subjetiva, tais conteúdos adquirem um contorno distinto, uma configuração simbólica pessoal e peculiar.

Assim sendo, podemos recortar diversos predicados atribuídos à Esmeralda que, uma vez interiorizados, são legitimados com um sentido individual: a personagem de filha de um alcoolista lhe era socialmente outorgada, no entanto, ao posicionar-se enquanto tal, Esmeralda promove uma metamorfose no significado, sentindo-se infeliz, querendo suicidar-se, invejando os irmãos mortos – “[...] eu achava minha infância infeliz e tinha inveja da minha irmã Salete que tinha morrido” (p. 38), e querendo matar a mãe – “[...] pensei até em matar a minha própria mãe” (p. 37); a personagem de pedinte e mendiga, da mesma forma, foi internalizada com um sentido depreciativo, que embora muito similar ao significado social, transforma-se em um gesto do qual se envergonhava – “[...] comecei a ter vergonha de pedir esmola [...] eu não queria pedir prá depois minha mãe ficar bebendo pinga” (p. 32-33).

Por fim, a totalidade das vivências sensíveis e reais de Esmeralda vão configurar sua identidade pessoal, na medida em que são revestidas de um sentido singular, individualizado. Gradualmente, Esmeralda vai articulando uma “saída” para os seus conflitos, uma resolução também impregnada de sentido individual; resolve, definitivamente, sair para o mundo, fugir de casa, ganhar a vida nas ruas. Subjetivamente prescreve seu destino, adota um projeto: “todas essas coisas me faziam querer sair de casa” (p. 41)

Procurando encontrar uma anestesia ao desespero, Esmeralda vai às ruas em busca de vida, de liberdade. Torna-se uma menina de rua aos oito anos de idade; assume tal identidade como forma de libertar-se do jugo algoz de sua mãe; agia de maneira independente e emancipada. Entorpecida por “liberdade”, “diversão” e “felicidade”, Esmeralda mergulha no taciturno universo das ruas. Embora sejamos por vezes redundantes, não podemos deixar de enfatizar novamente a diferença simbólica da identidade pressuposta para sua identidade posta. O sentido que Esmeralda atribuía à sua identidade de menina de rua era algo díspar do significado socialmente atribuído, como podemos ver nas expressões acima, isto é, “a rua como um lugar associado a uma menina livre”.

Prosseguindo nossa análise, vemo-nos impelidos a delimitar duas personagens, expressões da identidade de Esmeralda, que serão alvo de nossa apreciação, a saber: sua autopredicação de drogadita e delinqüente.

A delinqüência e a dogradição são consideradas pela sociedade como atributos necessariamente atrelados à vida de uma criança em situação de rua. Não obstante, ao buscarmos compreender a história de Esmeralda, veremos que tal pressuposição, socialmente objetivada, recebe um sentido pessoal congruente com a realidade objetiva à qual ela estava exposta.

Ao iniciar sua trajetória como menina de rua, Esmeralda, impregnada pelo sentimento de liberdade, não possuía contato com nenhuma droga, tampouco efetuava qualquer ato delinqüente. Em sua primeira passagem pela FEBEM, apreendida como carente e não como infratora, Esmeralda descreve seus objetivos e aponta como se identificava:

Nesse tempo, na FEBEM, eu era menina pequena, tinha dez anos, minha cabeça era diferente de agora. Eu ainda era bobinha. Andava com as meninas, mas só queria brincar. [...] Só depois que fui embora da FEBEM é que passei a pensar diferente (p. 60-61).

Esmeralda era “bobinha”, somente queria divertir-se e usufruir sua liberdade. No entanto, as condições objetivas vão se modificando, Esmeralda sai da FEBEM e começa a “pensar diferente”. Passa a dormir nos “mocós”, a conhecer as “leis da rua”. Exposta a novos significados sociais, Esmeralda inicia sua ‘carreira de drogadita’, assume a posição desta identidade atribuindo sentidos pessoais para sua interiorização:

[...] eu estava me familiarizando [...] então comecei a cheirar colas com elas [...] eu ficava olhando para as nuvens e via os anjinhos. Não sentia fome, não sentia frio. Não sentia medo. Com a cola, eu tinha coragem. Por isso eu gostava [...] os meninos respeitavam as meninas que usavam drogas (p. 65-66).

Talvez Ciampa dissesse que as condições objetivas se impuseram. Esmeralda apropria-se subjetivamente da identidade outorgada, legitimando-a com a necessidade de se inserir em um grupo, de se proteger, de ser respeitada para não sofrer ofensivas. No que diz respeito aos processos de mediação geridos na relação das pessoas com a realidade objetiva que se apresenta, é possível apreender o processo que se engendra, levando Esmeralda a funcionar por meio de uma “mente social” que funciona em “seu exterior e com apoios instrumentais e sociais externos” (ALVAREZ; DEL RIO, 1996, p. 85).

Da mesma forma que a drogadição, a delinqüência teve seus germes plantados em sua estadia na FEBEM. Tal instituição, legitimada socialmente para promover o “bem-estar do menor”, acaba por inserir Esmeralda em grupos de delinqüentes e drogaditos. A criança que entrou na FEBEM querendo brincar acaba por engajar-se em idéias distintas: “Ali a gente não estudava, não fazia nada o dia inteiro. Eu ia já projetando o meu mundinho, o que eu ia fazer quando saísse da FEBEM. Eu ia roubar [...] eu estava com raiva da vida, com raiva de tudo” (ORTIZ, 2001, p. 73).

Esmeralda, embora não tivesse ainda efetivado seus planos de furtar, já estava subjetivamente predisposta para tal, com o devido apoio concreto que geriu esses pensamentos. Até que certa feita foi estuprada por um menino de rua: “ele ficou a noite toda me batendo e transando comigo [...] ele ficava transando comigo com a faca no meu pescoço” (p. 78).

Nessa época, Esmeralda “ainda nem roubava, era a maior medrosa” (ORTIZ, 2001, p. 78). Contudo, sentia-se suscetível a toda sorte de infortúnios, carecia de proteção para garantir a própria sobrevivência. Neste contexto, conhece Ivone, uma “mãe de rua” que lhe protegia em troca de sua colaboração em furtos:

Depois das vezes que fui estuprada, comecei a andar com a Ivone. Com ela eu aprendi a roubar [...] Eu ficava com ela porque era temida por todos. E me protegia [...] a gente roubava muito [...] Andando com ela, todo mundo me respeitava, ninguém mais batia em mim (p. 79-80).

Como vimos, a própria vida nas ruas impõe suas leis. As personagens desenvolvidas de menina de rua, delinqüente e drogadita, expressões concretas de sua identidade, se acompanhadas em sua gênese, podem ser compreendidas como parte de um repertório de atividades necessárias à sobrevivência. Essas personagens foram se engendrando em bases materiais, nas relações intersubjetivas – na FEBEM e nas ruas. Observamos que, ao tornar-se intrapsíquico, um conteúdo não é reflexo do exterior, mas, sim, inserido no emaranhado de representações adquiridas durante a história de vida, adquirindo uma nova configuração. Nós, enquanto constituintes da sociedade, estamos imbuídos de diversos pré-conceitos, diversas pressuposições sobre a identidade de um menor em situação de rua. Ao pensarmos neles e, por conseguinte, nas relações que travamos com os mesmos, sempre pressupomos a existência das drogas e da delinqüência. Tal pressuposição, como fica explícito no caso de Esmeralda, ao ser interiorizada, sofre uma metamorfose, sendo revestida de um conteúdo simbólico individual. No emaranhado da vida nas ruas, longe de constituir algo pejorativo, esses atributos conferem um status comprometido com uma superioridade na hierarquia da rua, adquirem um sentido pessoal de coragem, de ser respeitada e assim sobreviver à violência imanente nesse ambiente.

A partir desses acontecimentos, a vida de Esmeralda foi se delineando de maneira progressivamente destrutiva. Sob a influência de irmãos de rua, passa a usar crack e logo se torna dependente química. Os furtos se intensificam e tornam-se constantes, sempre atrelados à necessidade do uso da droga. Nas palavras de Esmeralda: “Então eu vivia prá usar. E prá isso eu precisava roubar [...] Eu vivia prá usar e usava prá viver, e assim eu mergulhava na monotonia” (ORTIZ, 2001, p. 98-99).

Monotonia, repetição, réplica e re-posição. A identidade, uma vez pressuposta e assumida, vai sendo permanentemente re-posta na totalidade da experiência sensível de Esmeralda. Trata-se, no caso específico de Esmeralda, de um processo que Ciampa denomina “mesmice de si imposta” – conceito que não será aqui aprofundado, pois demandaríamos de um outro trabalho para contemplá-lo satisfatoriamente.

O fato é que Esmeralda vai naufragando na re-posição de sua identidade e, em um círculo vicioso de réplica de si, vai sofrendo intensamente: “Chegou um tempo que o crack não me preenchia mais [...] Quando me deparava com meu eu, eu me sentia horrível [...] Eu tinha deixado tudo mesmo prá viver aquela vida, que era muito vazia. Eu chorava todo dia [...] eu me considerava um lixo” (p. 104).

Esmeralda caminha para a morte simbólica, a crise de ator sem personagem. Não assume uma postura de autora de sua vida, somente autora das determinações pressupostas; passa a re-produzir compulsivamente sua identidade, não podendo produzir, criar sentidos. A identidade pressuposta e re-posta acabam por negar a vida. As personagens de drogadita e ladra, como diversos papéis embutidos socialmente, não permitem o florescer de sua humanidade, de sua identidade humana. Funcionam como fetichismo que domina e manipula a identidade de Esmeralda, acorrentando-a e afogando-a no fundo do poço.

Imersa nesse processo, Esmeralda passa a refletir sobre sua vida, a querer mudar: “eu estava no fundo do poço [...] e comecei a perceber a falta de domínio, a pensar no que eu estava fazendo com a minha vida” (p. 125).

Nossa protagonista carecia de autodeterminação, de renovar-se, de promover metamorfose. Passa a refletir sobre mudar de vida. Entretanto, Esmeralda sozinha não poderia empreender tal transformação. A constituição da identidade e sua metamorfose estão sempre coadunadas ao plano intersubjetivo. Esmeralda descreve seu processo de desumanização:

Era aquele ciclo. E eu não conseguia preencher o vazio. Senti que não tinha mais jeito. Pensei que a única saída era morrer de overdose, a única saída era a morte [...] O crack tirou o desejo. Eu vegetava, não tomava banho, ficava fedida. Parece que tinha chegado o tempo de eu começar a mudar de vida (p. 126).

Esmeralda, após meses resistindo, passa a aceitar o convite de educadoras de rua que logravam lhe auxiliar. Neste momento, passa a freqüentar a “Fundação Projeto Travessia”, onde encontra condições objetivas que promovem uma mudança em sua identidade: passa a almejar a reinserção social, projetando-se em um futuro; passa a dar novos significados a seu passado, desenhando-o com outros contornos.

Agora, mergulhada em um ambiente no qual é identificada como humana, Esmeralda tem a oportunidade de desenvolver sua humanidade. O germe de uma nova vida já se torna visível, mas Esmeralda não rompe com sua identidade de menina de rua abruptamente. Ainda é norteada pelas referências antigas. Está, por assim dizer, no âmago de um processo de re-socialização ao qual necessita se adaptar. Sentindo a metamorfose gradual, Esmeralda observa o ruir de seus valores antigos e tem dificuldades para adotar sua nova posição, de engendrar sua nova identidade: “Eu estava me sentindo perdida, perdida no mundo. Tinham cortado o meu cordão umbilical, tinham tirado as coisas que me moviam: a droga, roubar e a rua. Me tiraram daquele mundo e me jogaram pra outro” (p. 146)

Concomitantemente à sua ida ao Projeto Travessia, Esmeralda, com o auxílio de educadoras, vai morar em uma casa de passagem e se submete a um processo de desintoxicação no Projeto Quixote. Com o passar do tempo, a personagem “trabalhadora” surge no horizonte simbólico de Esmeralda. Começa a despojar-se de seus costumes e hábitos de rua. E a perceber que esta nova vida possuía novas leis.

Para mim ainda era aquela lei: para ser respeitada, tinha que bater. Era assim [...] Acho que eu queria que todo mundo soubesse que um dia eu tinha ficado na rua, que eu fazia e acontecia, mas lá (Projeto Travessia – adendo nosso) não era igual a lei da rua (p. 149).

Esmeralda, sob a proteção acalentadora dos projetos sociais, aluga um quarto de pensão e concretiza sua nova personagem, a de trabalhadora, expressão de uma transformação identitária, ao iniciar suas atividades na TV PUC. Interessa-se por matérias que retratam o universo do afro-descendente brasileiro, inicia uma viagem às suas origens.

Findado o trabalho com as reportagens, surge um emprego em um ateliê local, no qual Esmeralda subsidia recursos para alugar uma casa. Eis o florescer da identidade humana. Esmeralda passa por um árduo período de recuperação, que culmina com a conquista de um lar e a publicação de seu livro. Empreende a negação daquilo que a negava, chegando a uma síntese qualitativamente superior. O que vemos é a concretização da expressão que, segundo Ciampa, resume a dialética da identidade enquanto metamorfose humana: “vida-morte-e-vida”. Esmeralda, logrando encontrar a vida, vai para as ruas e encontra sua negação: a morte. No fundo do poço, Esmeralda aceita ser erguida por um braço amigo e passa a articular a personagem de trabalhadora. Com tal posição, Esmeralda rompe com o círculo vicioso, promove a negação daquilo que a negava e concretiza o vicejar da vida: a identidade humana. É possível supor que operavam aqui “modelos significativos” no desenvolvimento de uma nova postura diante do mundo e de si mesma, uma nova produção de sentido que possibilitou o aflorar dessa nova identidade.

A Esmeralda de hoje não permanece estática: articula planos, traça novos objetivos. “Eu penso em fazer uma faculdade, em fazer antropologia, estudar tudo sobre o Brasil, sobre a cultura afro” (p. 193). Possui o sonho de constituir família e sente-se alegre pela metamorfose, pela consciência de estar sempre mudando, evoluindo: “Eu sou feliz por estar vendo que estou crescendo” (p. 207).

Isso não quer dizer que a Esmeralda de hoje tenha se esquecido de seu passado, e deixe de pensar nos companheiros que ainda vagueiam errantes na rua, anestesiados pelas drogas ou entorpecidos pelas leis de um universo desumano. Ao expressar-se sobre isso, enfatiza:

Acho que, se tiverem oportunidade, essas crianças saem da rua, porque desejo todas têm [...] Quando saem prá rua, elas têm incentivo para roubar, matar e praticar a violência. Prá sair dela, precisam de incentivo e oportunidade para praticarem coisas boas (p. 201).

Esmeralda assume que sozinha não poderia empreender tal mudança. A autodeterminação – que não significa ausência de determinações materiais, mas autonomia e emancipação em sua atividade no mundo sensível – desenvolve-se a partir do momento em que as relações sociais permitem que o germe, como que adormecido, de sair das ruas encontre apoio exterior: “[...] fui encontrar forças dentro de mim e também encontrei pessoas que puderam me dar um apoio. Sozinha eu não conseguiria” (p. 192).

Marx ponderava:

Se o homem é constituído pelas circunstâncias, é necessário construir circunstâncias humanas. Se o homem é social por natureza, é na sociedade que ele desenvolve a sua verdadeira natureza [...] Segue-se a necessidade de organizar de tal modo o mundo empírico, que o verdadeiramente humano seja ali experimentado pelo homem, que o homem se habitue a fazer a experiência de si mesmo, na sua qualidade de homem (apud CALVEZ, 1959, p. 71-2).

Neste sentido, Ciampa (1990, p. 38) afirma: “[...] sozinhos, certamente não podemos ver reconhecida nossa humanidade, conseqüentemente, não nos reconhecemos como humanos. Ter uma identidade humana é ser identificado e identificar-se como humano”.

Finalizando, certas histórias nos comovem por serem belas. Outras, por serem cômicas. Algumas, entretanto, muitas vezes trágicas, são fundamentais, pois nos permitem compreender, parafraseando Guimarães Rosa, algumas veredas do grande sertão. Nesse sentido, algumas concepções da Psicologia Social analisadas aqui podem servir como instrumentos para a construção de novas veredas, de tal maneira que venham efetivamente a partilhar de um novo acervo social de conhecimentos que, por sua vez, favoreçam condições concretas para a emancipação pessoal de muitos excluídos, como Esmeralda. Assim, a Psicologia estará realizando sua função social.

 

NOTAS
* Graduando do Curso de Psicologia da Universidade São Marcos
** Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano; docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos; Linha de Pesquisa: Desenvolvimento Humano e Processo Ensino-Aprendizagem.
*** Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano; coordenador e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos. Linha de Pesquisa: Identidade - Formação e Tranformação
1 - O presente artigo está coadunado ao trabalho de Iniciação Científica realizado por Ricardo Mendes Mattos, intitulado “A constituição da identidade do morador de rua no ápice da exclusão social”, que possui a colaboração da Universidade São Marcos e o patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
2 - Segundo os referidos autores, a identidade é concebida como sendo o “elemento-chave da realidade subjetiva” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 228).
3 - Para perscrutar as analogias do processo de constituição da identidade segundo Ciampa, com o processo de produção da mercadoria na sociedade capitalista segundo Marx, vide: Ciampa, 1985, p. 139, 149 e 174 a 178 (obra relacionada nas referências bibliográficas); e Carone, s/d (informação verbal).
4 - Comunicação pessoal de Ciampa aos autores do artigo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ABSTRACT
The present study, with emphasis in the analysis of the concept of identity as a metamorphosis – originated from Antonio da Costa Ciampa’s works -, proposes an articulation of some of his assumptions with implied theories to the socio-historical psychology represented by Vygotsky. Therefore, it keeps some conclusions to the process of constitution of identity following the law of double formation of superior psychological functions, which was found in the vygotskian socio-historical theory. The methodological strategy applied in the empirical research concerns in a critical view of an autobiographic literary work: “Why I didn’t dance?”, by Esmeralda, an ex-homeless. In this context, this study is able to contribute with the production of the scientific knowledge in the Social Psychology area and to verify how appropriate is this articulation.

KEYWORDS:
Social Psychology; Identity; Human metamorphosis; Socio-historical psychology; The law of double formation of superior psychological processes.

Recebido em: 07/03/2003
Aceito para publicação em: 20/08/2003
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Ricardo Mendes Mattos - ricardomendesmattos@ig.com.br
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