ARTIGO 7


INTERAÇÕES ENTRE SISTEMAS DE REFERÊNCIA ALOCÊNTRICOS E EGOCÊNTRICOS: EVIDÊNCIAS DOS ESTUDOS COM DIREÇÃO PERCEBIDA
INTERACTIONS BETWEEN ALLOCENTRIC AND EGOCENTRIC FRAMES OF REFERENCE: EVIDENCES FROM STUDIES ON PERCEIVED DIRECTION

Elton H. Matsushima*
Nilton P. Ribeiro Filho**

 

RESUMO
Sistemas de referência (frames of reference) são definidos como um locus ou conjunto de loci em relação ao qual as localizações espaciais são determinadas. Os sistemas de referência egocêntricos definem as localizações espaciais em relação ao observador, enquanto que nos sistemas de referência alocêntricos, as localizações são determinadas em relação a loci externos ao observador. Analisam-se diversas evidências da utilização destes sistemas de referência pelo sistema visual humano, tanto para tarefas de percepção visual quanto para tarefas de navegação. Hipóteses da dissociação do sistema visual em função destes sistemas de referência são evidenciadas por resultados de estudos neuropsicológicos. O conjunto das evidências experimentais indica uma efetiva interação entre codificações em sistemas de referência egocêntricos e alocêntricos, de modo que os sistemas visual e visomotor introduzem transformações nas coordenadas de um sistema em função de outro, adequando a informação às características das diferentes tarefas.

PALAVRAS-CHAVE
Sistema de referência; Percepção; Ação; Rumo; Caminhar; Distância.

INTRODUÇÃO

Um sistema de referência (frame of reference) pode ser definido como um locus ou um conjunto de loci em relação ao qual as localizações espaciais são determinadas. Eles podem ser egocêntricos ou alocêntricos. Num sistema de referência egocêntrico, estes loci que definem as localizações espaciais são situados no corpo do observador, ou seja, é um sistema de referência centrado no observador. No sistema de referência alocêntrico, as localizações espaciais são definidas em relação a loci externos ao observador, sendo então um sistema de referência centrado em objetos ou em pivôs externos ao observador (CAMPBELL, 1993).

Há fortes evidências de que estes sistemas de referência são produto de processamentos neurais diferentes. Goodale e Haffenden (1998) coletaram inúmeras evidências da dissociação entre os processamentos envolvidos na produção, no controle e no ajuste de comportamentos relacionados com o sistema visoperceptivo e com o sistema visomotor. Esta divisão funcional parece ser fundada neurologicamente nas diferenças existentes entre as duas projeções do córtex estriado (V1), as projeções ventrais, que seriam responsáveis pelos mecanismos perceptuais, e as projeções dorsais, que processariam informação visual para o controle motor. Ambas as projeções processam informação das características físicas dos objetos, assim como de suas localizações espaciais. Entretanto, as projeções ventrais constroem representações perceptuais de longo prazo, processando características e relações espaciais duradouras entre os objetos. Esta característica possibilita às projeções ventrais atuarem na identificação de objetos, na atribuição de significado e no estabelecimento de relações causais. As projeções dorsais, por outro lado, lidam com o processamento instantâneo das localizações de objetos em coordenadas egocêntricas, possibilitando a programação e o controle fino de movimentos dirigidos aos objetos.

Então, o sistema visoperceptivo, ou projeções ventrais, deve funcionar como um mecanismo centrado no objeto, baseado em constâncias de objeto (ou identidade), tanto de tamanho, forma, cor, brilho, localização relativa. Ou seja, ele se constitui como um sistema de referência alocêntrico. De modo diverso, o sistema visomotor, ou projeções dorsais, trabalha com a codificação das localizações espaciais dos objetos em relação ao observador. Neste caso, ele se constitui em um sistema de referência egocêntrico, seja ele centrado na retina, na cabeça, no tronco, ou nos ombros do observador. O sistema de referência egocêntrico deve funcionar prioritariamente sob monitoramento contínuo, devido às necessidades do controle motor que deve se ajustar às constantes mudanças que podem ocorrer no status espacial tanto dos objetos quanto do próprio observador. Já o sistema de referência alocêntrico poderia prescindir deste monitoramento ininterrupto, já que sua principal função é produzir representações de longo prazo baseadas em características duradouras.

As localizações espaciais percebidas produzidas por estes sistemas de referência são variáveis internas tridimensionais resultantes da computação de diferentes fontes de informação num processo de afunilamento ponderado de informações espaciais. De tal forma que perdas em informação visual ocorridas em certas fontes de informação podem ser balanceadas ou compensadas pelo incremento da informação em outras fontes de informação, sem que a acurácia e a precisão da localização espacial percebida seja prejudicada (PHILBECK; LOOMIS; BEALL, 1997). Uma localização espacial percebida é composta de duas outras variáveis: a direção percebida e a distância egocêntrica percebida (LOOMIS; KNAPP, prelo).

A direção percebida é um componente do conhecimento espacial que se refere às relações direcionais entre objetos e lugares. Quando estas relações estão centradas no observador, são denominadas de direções egocêntricas. Estas, quando combinadas com o conhecimento da autoposição, contribuem para ações dentro de espaços de escalas amplas, que não sejam acessíveis diretamente aos sistemas perceptual e motor (MONTELLO; RICHARDSON; HEGARTY; PROVENZA, 1999). Entretanto, pouca literatura tem se dedicado à direção percebida, com uma maioria de trabalhos focalizando a distância percebida. A seguinte análise crítica se concentra na literatura disponível para direção percebida em relação aos sistemas de referência.

SISTEMAS DE REFERÊNCIA EGOCÊNTRICOS
Montello e seus associados (1999) avaliaram a percepção de direção egocêntrica através de dois métodos de respostas: o rumo (heading) e dial. O rumo se define como a direção da linha de visão do observador, ou seja, é independente da direção de deslocamento. Na tarefa de rumo, os observadores deveriam rotacionar seus corpos de forma que suas faces estivessem apontando na direção do alvo. Na verdade, esta não é uma tarefa simples de rumo, onde a face deve apontar para um alvo. Nesta tarefa, está implícito que o observador seja capaz de realizar rotações corporais acuradas para um desempenho adequado. Esta tarefa ligeiramente mais complexa é função da localização dos alvos ao redor do observador, alguns inclusive atrás dele, o que impediria um simples rumo de cabeça, obrigando o observador a produzir rumos de corpo. O dial era composto de uma seta móvel disposta sobre uma placa circular que marcava a direção dos alvos. As medidas eram aferidas na parte inferior do dial que possuía marcos a cada grau.

Além dessa manipulação, duas condições de visualização foram introduzidas. Em uma das condições, foi impedida qualquer forma de visualização durante as estimativas, e em outra, apenas a visualização frontal fora impedida, sendo permitido ao observador que olhasse diretamente o solo logo abaixo de seus pés (embora não houvesse fontes de informação de posição angular fornecidas pelo piso).

No primeiro experimento, dez alvos deveriam ter suas direções apontadas, quatro destes situados fora do laboratório, e mais dois pontos cardeais (os quais eram previamente indicados ainda do lado de fora do ambiente experimental), além de quatro alvos situados dentro do laboratório. Os resultados apontaram erros de considerável magnitude entre 13º e 23º.

Um efeito que foi destacado pelos pesquisadores na verdade se constituía como um descuido, pois a tarefa imprescindia de uma capacidade de memória visoespacial que excedia às habilidades normais de uma pessoa. Este efeito foi relatado como uma maior magnitude de erros para os alvos externos e para os pontos cardeais. Estes alvos foram previamente indicados aos observadores, e, apesar da reapresentação destes alvos caso os participantes relatassem que haviam se esquecido de suas localizações quando chegavam ao laboratório, constituíam-se como uma sobrecarga na memória visoespacial. É sabido que tarefas espaciais ou que envolvam movimentos corporais interferem na capacidade da memória visoespacial, especialmente para itens de conteúdo espacial (BADDELEY, 1986; LOGIE, 1995). Então, a tarefa de Montello e associados (1999) de rumo ou de manipulação do dial se constituía numa tarefa concorrente à memória visoespacial, que produz deterioração da recuperação da informação processada, devido a uma sobrecarga no módulo de processamento de informação visoespacial da memória de trabalho. Este efeito se dá, principalmente, no subcomponente espacial, que também é responsável pela codificação e monitoração de movimentos corporais, voluntários ou involuntários (LOGIE, 1995).

Este tipo de erro também prejudicou outro trabalho em que se utilizava tarefas de apontamento com um dial para indicar a orientação dentro de uma edificação. Lawton (1996) apresentou quatro localizações até que houvesse a memorização destas, e, durante o percurso até o ambiente em que seriam feitas as estimativas de direção, introduziu uma tarefa interveniente de contagem regressiva de três em três para metade da amostra. Esta tarefa é comumente utilizada para sobrecarregar o executivo central que coordena os processamentos da memória de trabalho, e que perturbaria fortemente a recuperação da informação armazenada na memória de trabalho visoespacial. Entretanto, ela não analisa esta manipulação, apenas fornece os erros angulares das amostras agrupadas em função das outras variáveis entregrupos. Estes resultados apontam para erros angulares de grande magnitude entre 45,76º e 62,12º. Estes grandes erros angulares podem refletir a interferência da tarefa interveniente nos desempenhos, que, como já dito, não foi analisada pela autora.

Voltando ao experimento de Montello e seus associados (1999), no segundo experimento, eles corrigiram o problema da sobrecarga na memória de trabalho visoespacial se utilizando apenas de alvos dentro do laboratório. Os resultados apontaram para erros de direção percebida de magnitudes menores, entre 10º e 15º, com erros associados à rotação corporal menores do que os associados ao uso do dial. De forma similar, Foley e Held (1972) encontraram erros angulares de até 10º sob o uso de apontamento, sem a visão da mão, nas condições de visualização prévia com múltiplos indícios visuais, as quais seriam similares à condição de Montello e associados, já que eles não manipularam a quantidade de informação visual disponível ao observador. Erros angulares de mesma magnitude (9,4º) foram encontrados por Loomis, Da Silva, Fujita e Fukusima (1992) em uma tarefa de apontamento contínuo para um alvo previamente visualizado, sem o uso da visão durante a tarefa.

Montello e associados (1999) realizaram análises posteriores sobre os sistemas de estruturação, ou seja, investigaram a existência de alguma forma de estrutura de ancoragem das respostas, uma forma de viés que teria conduzido as respostas dos observadores. Para tal, os dados foram comparados com três tipos de sistemas de estruturação: um baseado em eixos ortogonais com o observador ao centro (eixos à frente, atrás, à direita e à esquerda); outro baseado no eixo sagital ao observador (eixos à frente e atrás); e outro baseado num plano sagital orientado somente à frente do observador (eixo à frente). Os resultados das análises apontaram para altas correlações das respostas de rotação corporal com o sistema de estruturação baseado nos eixos ortogonais (embora correlações com diferenças significativas pouco confiáveis, p < 0,05, tenham sido encontradas com os sistemas baseados no eixo sagital à frente). Em relação às respostas com o dial, encontraram correlações com o sistema de estruturação associado ao eixo sagital à frente (embora também tenham sido encontradas correlações pouco confiáveis com os sistemas baseados nos eixos ortogonais). Esta é uma conclusão sobre os dados estatísticos que os autores apresentaram, baseada somente nos resultados altamente significativos – p < 0,01 – descritos na tabela 2 (MONTELLO et al, p. 995), e não nos relatados pelos autores no corpo do texto, que procuraram relacionar este achado com o do Experimento I, o qual possui problemas relacionados não com a direção percebida, e sim com a memória de trabalho visoespacial.

Podemos verificar neste trabalho uma forte evidência de que um sistema de referência egocêntrico, baseado em eixos centrados no observador, fora utilizado para especificar as direções percebidas. A evidência ganha mais força com um comentário acerca da acurácia das respostas, no qual os autores indicam que quanto mais distante de um dos eixos centrados no observador, mais erros angulares foram associados às respostas de direção.

Então, o processo de codificação, ou o processo de produção da resposta, ou ambos, seriam enviesados por este sistema de referência. No caso do enviesamento do processo de codificação, a direção percebida seria determinada pelo afastamento da direção egocêntrica do alvo em relação a um destes eixos egocêntricos, de forma que a distância para este eixo seria comprimida, ou, então, a direção percebida seria atraída pelo eixo. No caso do enviesamento da produção da resposta, o traço de memória visoespacial teria ancoragens nos eixos egocêntricos. De forma que, quanto maior a distância a ser produzida em relação a algum dos eixos, maiores seriam os erros associados à esta resposta, devido à deterioração do traço de memória, ou à compressão do deslocamento angular percebido, seja ele corporal ou da seta no dial. No caso de uma dupla influência, tanto na codificação da direção quanto da produção da resposta, os erros seriam função tanto de uma compressão da direção percebida em relação aos eixos egocêntricos quanto da deterioração das respostas conforme o distanciamento em relação ao eixo.

Um fator que não fora analisado por Montello e associados (1999), e que tinha sido evidenciado no trabalho precursor de Foley e Held (1972), foi a possibilidade de que a interação da influência do membro preferido (comparação entre destros e canhotos) com a do olho dominante possam ter efeitos sobre as respostas de direção percebida. Esta sugestão partiu dos resultados de Foley e Held, que indicaram que, quando a mão preferida foi utilizada no apontamento, o erro direcional apontaria para o hemicampo visual contralateral ao olho dominante. Por exemplo, se o observador fosse destro e utilizasse a sua mão direita para apontar, e se seu olho dominante fosse o direito, os erros angulares seriam mais à esquerda do plano sagital ao observador. Se a mão não-preferida fosse utilizada, as respostas se enviesariam na direção oposta à mão utilizada. Por exemplo, se o observador fosse canhoto, e utilizasse a mão direita para realizar o apontamento, os erros angulares se dirigiriam para a esquerda.

De posse destes resultados e de suas análises, Foley e Held (1972) sustentaram que a direção percebida de um alvo seria sua direção percebida em relação ao olho dominante, como relatado anteriormente (OGLE, 1962; WALLS, 1951; RUBIN; WALLS, 1969; cf. FOLEY e HELD, 1972). Entretanto, este efeito do olho dominante não foi levado em conta por Montello e associados (1999), e poderia ter sido responsável por muito dos erros variáveis associados às performances nas tarefas, que tinham magnitudes entre 5º e 10º, ou seja, a variabilidade entre participantes seria função das diferentes direções percebidas do alvo moduladas pelos diferentes olhos dominantes de cada observador.

SISTEMAS DE REFERÊNCIA ALOCÊNTRICOS
Todas estas evidências do uso de sistemas de referência estão relacionadas com sistemas egocêntricos. Mas e quanto ao sistema de referência alocêntrico, este teria uma função em relação à direção percebida? Pela definição de sistemas de referência alocêntricos como um locus ou conjunto de loci relativos a um objeto em relação ao qual as localizações espaciais são definidas, um sistema de referência egocêntrico poderia ser considerado um simples caso especial, em que o objeto de referência é o próprio observador. Entretanto, há mais distinção entre eles do que uma simples subordinação por especificidade. Um sistema de referência egocêntrico tem pelo menos uma grande premissa que o diferencia de um caso de sistema de referência alocêntrico, o pressuposto de uma “imagem corporal”. Esta se constitui numa representação de longa duração das próprias dimensões corporais, que deve ser longa o suficiente para que seja somente alterada pelo crescimento do observador ou por eventos de vida críticos, como um grave acidente. Esta representação deve também conter uma representação dos movimentos possíveis para este observador naquele dado momento e situação ambiental, ou seja, deve se configurar como um monitoramento do status momentâneo da situação do corpo, por exemplo, tronco ereto, braço estendido junto ao corpo com uma articulação flexionada em ângulo reto à frente.

De forma distinta, o sistema de referência alocêntrico pode ser empregado não só para a determinação de localização de objetos e marcos no espaço, como para a determinação da posição relativa de partes de um mesmo objeto entre si. Ou seja, é fundamental para a construção de uma identidade de objeto que, por sua vez, é necessária para a própria noção de objeto. Um objeto é dependente causalmente de suas condições anteriores, de suas propriedades anteriores, ou seja, é dependente da integração interna de suas partes, das relações internas entre as suas partes, e não de uma continuidade espaço-temporal. Esta continuidade espaço-temporal é característica de um marco ambiental (landmark), pois este deve permanecer numa mesma localização no ambiente durante certo período de tempo.

Objetos e marcos ambientais podem ser os centros de pivotagem do sistema de referência alocêntrico, entretanto, suas funções diferem tanto quanto as suas definições e os seus pressupostos. Os marcos ambientais são fundamentalmente pontos de ancoragem destes sistemas de referência alocêntricos na determinação das localizações espaciais. Isto é devido à sua característica de continuidade espaço-temporal, que proporciona estabilidade e confiabilidade em sua localização para servir de base para as outras localizações espaciais. Os objetos podem funcionar também como marcos ambientais, embora para isso tenham de possuir estreita relação com o ambiente em que estão, além da estabilidade espaço-temporal, imprescindível para a sua confiabilidade enquanto referencial espacial.

Algumas evidências do uso de um sistema de referência alocêntrico podem ser encontradas no estudo preliminar de Amorim, Glasauer, Corpinot e Berthoz (1997). Neste experimento, que serviria de padrão para os desempenhos normais, as quais seriam utilizadas para verificar as respostas na fase experimental, Amorim e seus associados solicitaram aos observadores que estimassem a orientação de um objeto tridimensional previamente visualizado em ambientes reduzidos de fontes de informação (câmara escura), ajustando um objeto-teste de dimensões reduzidas em um quinto das do objeto-padrão.

Os resultados deste estudo preliminar indicaram um padrão de enviesamento perceptual das respostas diferente do experimento de Montello e associados (1999). Amorim e associados (1997) encontraram respostas enviesadas em direção aos eixos diagonais: 45º, 135º, 225º e 315º. Este resultado implicava que orientações menores do que um dos eixos, por exemplo, 45º, seriam superestimadas na direção deste eixo, assim como orientações maiores do que os eixos seriam subestimadas na direção deste eixo.

Neste experimento, podemos verificar o efeito de um sistema de referência alocêntrico na determinação das relações espaciais significativas para a dada tarefa. Esta evidência aponta para uma diferença fundamental na organização dos sistemas de referência egocêntrico e alocêntrico. Os eixos empregados para a codificação da informação espacial diferem nestes dois sistemas. Enquanto que no sistema de referência egocêntrico imperariam eixos ortogonais, incluídos os eixos sagital e horizontal, no sistema de referência alocêntrico, os eixos diagonais parecem ser mais importantes. Entretanto, a evidência do trabalho de Amorim e associados (1997) não pode ser tomada como definitiva, devido ao fato de que não houve uma investigação sistemática da escala visual de orientações alocêntricas, pois eles empregaram somente orientações diagonais, o que pode ter enviesado as respostas nesta direção.

Quanto ao efeito do uso de um sistema de referência alocêntrico sobre as estimativas de direção percebida, podemos verificá-lo no Experimento 2 deste mesmo trabalho de Amorim e associados (1997). Os observadores deveriam observar a orientação do mesmo objeto do estudo preliminar, caminhar sem visão num percurso em forma de L, e, em certos pontos determinados, produzir um rumo de corpo e a orientação atualizada do objeto. Neste estudo, dois grupos experimentais foram definidos em função de tarefas intervenientes. Uma delas poderia ser considerada uma tarefa que emprega o uso de um sistema de referência egocêntrico, visto que o observador deveria se concentrar na trajetória percorrida e nos movimentos que realizava. Para isso, ele deveria contar seus passos e indicar qualquer rotação corporal que fosse realizada, e, somente ao final da trajetória, ainda deveria atualizar a localização e orientação do objeto. Na outra, podemos considerar que há um enfoque em uma estratégia mais centrada no objeto, pois o observador deveria continuamente atualizar a orientação do objeto conforme caminhava. Os pesquisadores apontaram que esta tarefa implicava em maior sobrecarga na memória de trabalho, pois que não só a trajetória tinha de ser monitorada continuamente, como a localização e a orientação do objeto também deveriam ser atualizadas constantemente.

Entretanto, a despeito dessa maior carga sobre a memória de trabalho, o emprego de sistemas de referência alocêntricos não interferiu nas respostas de direção percebida. Segundo os autores, os erros angulares nas respostas produzidas de direção percebida do alvo por rumos de corpo eram função não de erros nos julgamentos de direção propriamente, mas sim função da subestimativa da distância caminhada. Os erros associados a sistemas de referência alocêntricos, isto é, da tarefa centrada no objeto, que apareceram neste experimento, eram da mesma ordem dos erros encontrados para respostas baseadas em sistemas de referência egocêntricos, aumentando de erros desprezíveis de 3° até erros de 25°, sempre em função do aumento da distância caminhada.

Uma provável fonte de erro na estimativa da distância caminhada que produziu os grandes erros angulares dos rumos foi atribuída à velocidade de caminhada. Segundo o estudo de Rieser, Ashmead, Talor e Youngquist (1990), a velocidade da caminhada influi na estimativa de distância produzida, de forma que, quanto mais rápida for a caminhada (aproximadamente 2,1m/s), maior a tendência para superestimativa, e quanto mais lenta ela for (aproximadamente 1,3m/s), maior a tendência para subestimativa. As velocidades das caminhadas do experimento de Amorim e associados (1997) alcançaram aproximadamente, em média, 0,4m/s, velocidades muito inferiores à do experimento de Rieser e colaboradores, o que pode ter ampliado a subestimativa da distância caminhada de forma mais pronunciada. Isto significa que os observadores não estavam produzindo erros de direção dos alvos, eles estavam apontando seus rumos adequadamente para o alvo, apenas estavam em localizações subestimadas para realizar a tarefa acuradamente.

Então, o emprego de sistemas de referência alocêntricos não prejudicou a direção percebida e não produziu erros angulares diferenciados. Entretanto, não se pode supor o emprego de sistemas de referência alocêntricos isoladamente nas condições de tarefas centradas no objeto (AMORIM et al, 1997). Provavelmente, os dois sistemas de referência foram utilizados, como fora suposto pelos autores ao indicarem que a tarefa centrada no objeto introduziria uma carga cognitiva maior à tarefa. Mas ao menos podemos considerar que foi empregado um sistema de referência alocêntrico durante a tarefa centrada no objeto, pois, como previsto, a velocidade de caminhada foi menor nesta tarefa do que na centrada na trajetória.

EVIDÊNCIAS NEUROLÓGICAS E CONHECIMENTO ESPACIAL: SUPORTE PARA A INTERAÇÃO
Segundo as evidências levantadas dos estudos neuropsicológicos de Goodale e Haffenden (1998), o sistema de referência egocêntrico teria sua função predominantemente vinculada a um monitoramento contínuo do status espacial dos objetos e do observador, enquanto que o sistema de referência alocêntrico poderia envolver processos mnemônicos. Verificou-se esta hipótese com ações visualmente dirigidas, realizadas após uma visualização prévia, sem monitoramento ininterrupto da posição do objeto, como, por exemplo, tarefas de preensão manual simuladas para alvos previamente visualizados que não estão mais presentes. Estas tarefas envolvem obviamente recursos mnemônicos, de forma que os comportamentos diferenciados entre as situações de preensão manual real e a simulada, assim como os padrões de erros distintos, evidenciam que diferentes processos estão ocorrendo para as tarefas. Podemos considerar que, pelo fato da tarefa simulada lidar com uma representação perceptual do objeto que dure alguns segundos, ela deva estar ligada a um sistema de referência alocêntrico, centrado no objeto. Devido ao fato de que a tarefa simulada apresenta maiores erros e variabilidade do que a tarefa real, e de que outras evidências relatadas pelos autores mostram muita precisão e acurácia das respostas motoras (no caso, a preensão manual real), podemos inferir que a produção de respostas baseadas em representações perceptuais (no caso, a memória da localização, o tamanho e a orientação dos objetos) envolvem sistemas de referência alocêntricos, e não egocêntricos.

Deste modo, todas as tarefas que impedem a visão dos alvos cujas direções deveriam ser indicadas, na verdade, estariam envolvidas com sistemas de referência alocêntricos. A despeito da interação entre os dois sistemas de referência (GOODALE; HAFFENDEN, 1998), estas tarefas envolveriam primordialmente processamento de informação visual em sistemas de referência egocêntricos, mas, no caso, levam em conta alguma informação processada em um sistema de referência alocêntrico, devido ao suporte dos processos de memória necessário à realização da tarefa. Goodale e Haffenden (1998) relataram a favor da interação entre os sistemas de referência, por exemplo, que o conhecimento das características duradouras dos objetos (rigidez, composição material, orientação, textura, função, fragilidade) altera o padrão comportamental de tarefas dirigidas a alvos visíveis.

Esta hipótese de uma intensa interação entre os sistemas de referência alocêntrico e egocêntrico foi apresentada por Easton e Sholl (1995). Numa série de experimentos com julgamentos sem visão de direção egocêntrica de alvos previamente visualizados e memorizados, os pesquisadores objetivaram estudar sistematicamente o efeito do arranjo de objetos, dos sistemas de referência centrados no objeto ou no observador, e do tamanho da escala visual sobre a recuperação do conhecimento espacial (no caso, julgamentos de direção egocêntrica percebida). Arranjos de objetos com formato circular, quadrangular ou irregular foram utilizados para o estudo de seus efeitos. Dois tamanhos de escalas visuais foram utilizados: uma escala pequena com distâncias egocêntricas de até seis metros e outra maior com distâncias egocêntricas de 70 a 300 m. Os sistemas de referência foram manipulados pelas instruções dadas para a realização da tarefa. Duas instruções foram dadas, uma de rotação e outra de translação. Na tarefa de rotação, após a memorização da localização dos alvos, os observadores eram instruídos a indicar a direção de um dado alvo A enquanto estiverem de frente para um outro dado objeto B, ou seja, como se tivessem rotacionado seu corpo até que estivessem com sua face encarando o objeto B. Na tarefa de translação, de mesma forma, após a memorização da localização dos alvos, as instruções que eram dadas diziam para que indicassem a direção de um dado objeto A caso estivessem na mesma localização de um dado objeto B, ou seja, é como se o ponto de observação tivesse sido deslocado para o ponto no qual o objeto B estava localizado. Estas tarefas eram realizadas com recursos da imaginação, pois os observadores realizavam-na com a visão oclusa.

Os resultados indicaram que a recuperação do conhecimento espacial é uma função conjunta da estrutura dos arranjos de objetos e do grau de alinhamento entre os eixos corporais e os eixos de recuperação. Na condição de rotação, os eixos corporais são imaginados rotacionando até que a porção positiva do eixo y corporal esteja apontando para o objeto-teste, pois não há modo de coincidência entre os espaços vetoriais observador-a-objeto e objeto-a-objeto. Na condição de translação, há a possibilidade desta coincidência através de uma transformação discreta da origem dos eixos corporais para a origem do vetor objeto-referência-a-objeto-teste, de forma que realizada esta transformação a direção pode ser computada como coordenadas corporais. O emprego do espaço vetorial objeto-a-objeto, em tarefas em que a coincidência deste espaço com o espaço vetorial observador-a-objeto não pode ocorrer, é verificado somente em configurações coesas e bem organizadas, que permitem coincidências parciais entre os eixos corporais e os diâmetros e diagonais das configurações.

Então, nesta série de experimentos, Easton e Sholl (1995) mostraram que sistemas de referência alocêntricos (denominados pelos autores de espaço vetorial objeto-a-objeto) e egocêntricos (denominados de espaço vetorial observador-a-objeto) podem interagir na recuperação do conhecimento espacial de direções percebidas de alvos previamente visualizados e memorizados. Entretanto, pode-se argumentar que estes tipos de tarefas de imaginar deslocamentos de pontos-de-vista não são tarefas habituais e naturais, seriam caprichos dos procedimentos experimentais do estudo. Um contra-argumento seria a noção de planejamento de programas motores para ações visualmente dirigidas a configurações familiares. Por exemplo, uma pessoa que deseja ir até a sua cozinha no meio da noite e não quer acender a luz para tal. Esta pessoa deve então planejar ações para uma configuração familiar, a sua casa, e deve empregar a codificação de direções em função de espaços vetoriais objeto-a-objeto, entre objetos de sua casa, uma mesa, uma parede, o corredor, a porta de entrada, etc.

CONCLUSÕES
Pode-se extrair algumas considerações sobre como os seres humanos codificam, manipulam e produzem conhecimento espacial a partir de direção percebida e sua determinação por sistemas de referência alocêntrico e egocêntricos. Os sistemas de referência egocêntricos são codificados em função dos eixos corporais, sagital (ordenada, y) e horizontal (abscissa, x), principalmente a porção positiva do eixo y (MONTELLO et al., 1999). O emprego de sistemas de referência alocêntricos não altera o padrão de respostas de direção egocêntrica (AMORIM e cols., 1997), mas, para a recuperação do conhecimento espacial, estes sistemas de referência têm maior utilidade quando são relativos a configurações regulares, familiares ou bem-organizadas, de forma que pode haver coincidência entre os eixos dos sistemas de referência alocêntricos com os eixos dos sistemas de referência egocêntricos, facilitando as transformações discretas destes espaços vetoriais observador-a-objeto (EASTON; SHOLL, 1995). Por outro lado, a codificação em sistemas de referência das localizações espaciais em qualquer tarefa mediada por processos mnemônicos, ou seja, que não sejam dirigidas aos alvos presentes no momento da tarefa, aparentemente envolvem processamento neural das projeções ventrais, que são mais dedicadas à identificação de objetos, ou seja, à codificação de características duradouras dos objetos, relativas a sistemas de referência alocêntricos (GOODALE; HAFFENDEN, 1998). Este fato implica que haja uma maior interação entre os sistemas de referência alocêntricos e egocêntricos, de forma que as transformações de espaços vetoriais objeto-a-objeto em observador-a-objeto devem ser mais freqüentes do que o previsto por Easton e Sholl devido às evidências do uso de sistemas de referência egocêntricos na codificação de direção percebida para alvos previamente visualizados.

 

NOTAS
* Professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (Laboratório de Psicofísica e Percepção) da Universidade de São Paulo
** Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

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ABSTRACT
Frame of reference is a locus or a set of loci in relation to which spatial locations are determined. Egocentrical frames of reference define spatial locations in relation to observer; in allocentrical frames of reference, spatial locations are determined in relation to external loci. Several evidences of usefulness of frames of references to human visual system are analysed, to perceptual tasks as well as navigational tasks. Neuropsychological studies provided empirical support to hypothesis on dissociation of visual system as a function of frames of reference. The whole of experimental evidence indicates an effective interaction between codings in egocentrical and allocentrical frames of reference, thus visual and visuomotor systems introduce transformations on coordinates of a frame on another, adjusting information to different tasks requirements.

KEYWORDS:
Frame of reference; Perception; AcZtion; Heading; Walking; Distance.

Recebido em: 06/10/2002
Aceito para publicação em: 13/08/2003
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