COMENTÁRIO SOBRE O TEXTO “LE SUJET ET LES FRONTIÈRES DE LA PSYCHOLOGIE, XIIIe –XXe SIÉCLE”, DE FERNANDO VIDAL


Arthur Arruda Leal Ferreira *

O texto de Fernando Vidal, escrito em francês, não deve inibir os leitores. Em primeiro lugar, por sua clareza e facilidade na leitura, mesmo para os que possuem rudimentos da língua francesa. E em segundo lugar, por sua importância, ancorada em duas razões: a originalidade da abordagem histórica utilizada e a novidade temática introduzida. A originalidade metodológica se manifesta ao se desviar tanto do caminho da história das idéias, em geral devotado em buscar precursores nos grandes pensadores do passado, quanto o de uma história da Psicologia que reifica a concepção atual deste saber, descartando todo um “longo passado pré-experimental”. Explorando nomes quase desconhecidos do grande público, como Charles Bonnet e Christian Wolff (ao contrário dos grandes homens da história das idéias), e recusando a identificação da Psicologia a uma ciência autoproclamada experimental no século XIX, Fernando Vidal faz emergir uma Psicologia empírica em pleno século XVIII, enquanto disciplina governada pelos mesmos princípios materiais que guiavam os saberes da época. Eis a novidade temática produzida pelo autor: o aparecimento da Psicologia positiva, que não possui a palidez de uma idéia psicológica, nem é a imagem refletida pelo presente de uma Psicologia que busca ostentar a sua cientificidade. E muito menos esta Psicologia positiva se assemelha à “psicologização do século XVIII” realçada por autores como Isaiah Berlin ou Ernest Cassirer: “discurso abstrato sobre questões cognitivas, autobiografia e literatura romanceada, visando conhecer o coração humano, visando descrever o registro da sensibilidade, da simpatia, das emoções e da experiência cotidiana”.** Nada disso descreve a psicologia empírica enquanto ciência positiva do homem.

A novidade deste trabalho, contudo, vai mais além do que se imagina: muito além de uma história das idéias, da ciência ou da cultura, ele põe em questão também abordagens críticas no campo histórico como a arqueologia de Michel Foucault. Em seu texto clássico “As Palavras e as Coisas”, publicado em 1966, o historiador e filósofo francês afirmava não haver ciência humana e, conseqüentemente, Psicologia antes do século XIX. Pois Fernando Vidal nos mostra que há uma ciência sobre o homem em pleno século XVIII, ainda que esta pouco se pareça com a ciência humana desenvolvida a partir do século XIX, ciosa de uma base experimental, principalmente graças às críticas de Imannuel Kant e Augusto Comte, e receosa de ser assimilada às “vãs metafísicas”.

Nem idéias psicológicas, nem ausência da psicologia científica, ou mesmo inexistência do homem: o autor nos recorta um saber plenamente reconhecido no campo das disciplinas acadêmicas. Do que trata esta psicologia empírica? Ela trata da alma racional humana, mas deve-se destacar que esta abordagem em nada se refere à enunciação de um princípio último; trata-se da consideração de sua relação com o corpo, notadamente o cérebro. Ela se busca empírica, material, mas sem recusar uma antropologia cristã. A novidade desta antropologia é que ela não estaria mais calcada no modelo aristotélico, próprio das primeiras definições da psicologia no século XVII. Ao invés de conceber uma relação pontual entre a alma e o corpo, estas abordagens anteriores tomavam a alma “como a forma de um corpo natural tomando a vida em potência”. Neste contexto, a identidade de um indivíduo se daria na união da alma com o corpo inteiro. Com a superação deste modelo aristotélico, e a proposição de um modelo corpuscular da matéria (em que o corpo perde a sua potência e singularidade), a nossa identidade vai ser buscada na alma em conluio com o cérebro. E é aqui que o autor encontrará uma filiação entre a psicologia empírica do século XVIII e a Psicologia contemporânea: ambas repousariam em uma versão da nossa identidade restrita a uma pequena região dos nossos corpos, o cérebro. É desta forma, ao destacar este córtico-centrismo, que persiste numa longa duração histórica, que Vidal efetivamente faz uma “história dos sujeitos que nós somos e das fronteiras existenciais que se tornam as nossas”.

Endereço: arleal@antares.com.br

* Professor Adjunto II do NESC/IP-UERJ e doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Pesquisador financiado pela FAPERJ e pela FUJB.

** As citações aqui apresentadas foram retiradas do texto de Fernando Vidal, publicado nesta revista.