EDITORIAL


A PLURALIDADE COMO EXPRESSÃO DE LIBERDADE

Eleonôra Torres Prestrelo
Ana Maria Jacó-Vilela
Ariane Patrícia Ewald
Deise Mancebo
Comissão Editorial

Quem sou eu?
Sei que sou muitos. Quem me ensinou isso foi um Demônio velho, o mesmo que ensinou psicologia a Jesus. Quando Jesus lhe perguntou ‘Qual é o teu nome?’, ele respondeu, numa mistura de verdade e gozação: ‘Meu nome é Legião porque somos’. Coisa maluca: o ‘eu’, singular na gramática, é plural na psicologia. Eu sou muitos. Tem-se a impressão de que se trata da mesma pessoa porque o corpo é o mesmo. De fato o corpo é um. Mas os ‘eus’ que moram nele são muitos.
Rubem Alves

Editar uma revista de Psicologia, de certa forma, é lidar com a perspectiva do “Demônio velho” apontada por Rubem Alves, escritor, intelectual, psicanalista e professor – expressões de seus muitos “eus”.
Editar, no caso, uma revista de Psicologia que se pretende veículo de reflexão dos dizeres e fazeres de uma psicologia contemporânea: plural, diversa em seu objeto de estudo, rica na profusão de olhares que se entrelaçam, opõem, repõem seu caráter originário – denominado por Garcia Roza (1977) de espaço de dispersão do saber. Caráter que nos aponta para o fato de não se poder delimitar um espaço nítido de domínio do que seja o saber psicológico, dado não se poder falar em uma psicologia, “um saber unitário”,tentativa constante de alguns, até os dias de hoje, acreditando, com isso, defender um espaço de representatividade dentro do campo das “ciências”.


Em consonância com algumas idéias apresentadas por Garcia Roza – que, vale ressaltar, continuam profundamente atuais – quanto ao surgimento e ao percurso histórico da Psicologia, acreditamos não podermos falar, nos dias atuais, de “uma” história da Psicologia, de uma abordagem clínica hegemônica, da delimitação clara de um campo de atuação da Psicologia.

O mundo contemporâneo nos mostra a diversidade, a convivência com a diferença, não mais como fenômeno de exclusão e sim como complementaridade.

E, no âmbito desse convívio, concordo com o autor citado, que defende “Que poderíamos escrever várias histórias da psicologia, tendo, cada uma delas, pleno direito à existência” (p.26).

Fazendo parte da construção de “uma história possível”, nós, editores desta revista, prezamos esse espaço como um dos lugares possíveis dessa construção, no respeito à interdisciplinaridade dos saberes aqui constituídos.

Assim, este volume de nossa revista se inicia com o artigo "Os Métodos de Pesquisa como Linguagem Social", em que Mary Jane Spink, partindo exatamente da diversidade teórica e metodológica, aqui restrita à Psicologia Social, discute suas possíveis contribuições (ou não) a atuações transigentes ou fundamentalistas – em ambos os casos com conseqüências sociais – para, em um segundo momento, analisar mais detalhadamente a contribuição do construcionismo social.

Os quatro artigos seguintes mantêm a perspectiva da diversidade, referida, no entanto, à intervenção clínica. Os dois primeiros, mais voltados para a contextualização de sua prática, como poderemos observar no artigo intitulado "Em Busca da Palavra Conectada, Encorporada: a inserção da psicoterapia corporal no campo psicológico dos anos 80", em que o autor, Carlos Eduardo Melo Oliveira, descreve o contexto do surgimento e difusão da psicoterapia corporal no Rio de Janeiro. No mapeamento do surgimento dessa abordagem clínica e suas ramificações dentro do campo psi, fornece uma análise da difusão das práticas chamadas alternativas como manifestações que se desenvolveram em torno da psicanálise nos anos 70.

No artigo seguinte, Família Nuclear e Terapia de Família: conexões entre duas histórias, Edna Lúcia Tinoco Ponciano mapeia a evolução da história da Terapia de Família, que analisa como atrelada à dos modelos de estrutura familiar. Enfoca, especialmente, a família nuclear e sua interdependência com a intervenção terapêutica, que consagra o modelo do especialista, como estruturas próprias da modernidade. Com base na identificação da incompletude desse modelo para a leitura das diversas formas de estruturação familiar na sociedade contemporânea, levanta questões, aponta limitações e abre para reflexões quanto ao futuro desse tipo de intervenção.

Em "Velhice e suas Representações: implicações para uma intervenção
psicanalítica"
, Márcia Dourado e Annette Leibing já tratam mais diretamente das implicações das representações sociais na clínica. Refletem sobre a inserção da clínica psicanalítica nas múltiplas formas culturais de imagens e práticas em relação ao que hoje se denomina “terceira idade”.


Em outra perspectiva teórica, mas também anunciando um novo campo de intervenção, Áderson Luiz da Costa Jr. explora as possibilidades de manipulação do repertório comportamental, em situação de atendimento odontológico, enfatizando a formação do psicólogo para a atenção em saúde no artigo "Psicologia Aplicada à Odontopediatria".


Dando continuidade à construção de uma visão plural, mencionada inicialmente, apresenta-se a seguir o artigo bastante atual de Adriano Duarte Rodrigues," As Novas Fronteiras da Violência", em que o autor, partindo de uma referência ao atentado de 11 de setembro de 2001, em Nova York, reflete sobre as implicações da evolução tecnológica na experiência da violência, sua internalização e fronteiras do vivido, questões que certamente podem servir de suporte e referência à violência experienciada no cotidiano por todos nós.

A importância de se pensar sobre a violência reflete-se ainda no artigo de Neuza Maria de Fátima Guareschi,"A Rua, a Casa e a Escola: a construção da identidade de meninos e meninas", onde fica claro que o espaço da rua, longe de ser o espaço público da cidadania, torna-se o do perigo, do risco, e que, contrariamente à percepção comum, a casa, por sua vez, não recebe uma significação positiva, valoração esta reservada à escola. A autora ressalta a implicação desses outros sentidos na construção das identidades de gênero, o que nos remete à estruturação de um novo campo do saber e de intervenção psicológica.

Dando seguimento à reflexão sobre questões relativas à atuação profissional, temos o artigo de Fátima Araújo de Carvalho sobre A Exaustão Docente: subsídios para novas pesquisas sobre a síndrome de burnout em professores, em que, através de um estudo bibliográfico, nos apresenta a importância de olharmos o fenômeno da exaustão ocupacional, especialmente na carreira docente, através do construto da síndrome de burnout, a fim de buscar novas estratégias de enfrentamento, e até mesmo de caráter preventivo.

A questão referente a um novo campo de atuação apresenta-se ainda, neste número, na comunicação de tese Que Lugar é Esse? Sobre psicólogos nas Varas de Família, de Leila Maria Torraca de Brito e colaboradores, onde se podem conhecer algumas das dificuldades vividas por psicólogos nesse novo campo de atuação, desde as relacionadas ao espaço físico para o exercício de sua função, até a compreensão/delimitação de suas reais atribuições, condições essenciais à conquista de uma autonomia profissional. Podemos contar, ainda neste número, com a comunicação da tese Histórias da Digestão do Discurso Psicanalítico no Brasil – saúde mental e cultura, de Cristina Fachineti, em que a autora procura destrinchar algumas linhas que permearam o discurso psicanalítico desde sua chegada ao Brasil, no início do século XX.

Para isto, lança mão tanto do eixo da identidade nacional – questão candente para os intelectuais da época porque, para construí-la, era necessário poder explicar o papel de negros e índios no processo de transformação de um povo selvagem em uma nação civilizada – quanto do discurso higienista chamado em seu apoio, apontando, finalmente, para uma aparição da psicanálise através de literatos, principalmente os modernistas. Fundamental, também, para a boa qualidade deste volume, é o belo trabalho de Marisa Lopes da Rocha, resenhando um livro instigante organizado por Bader Sawaia: As artimanhas da exclusão – análise psicossocial e ética da desigualdade social. Aqui, aponta-se novo caminho para o atuar do psicólogo, uma nova dispersão, no sentido indicado por Garcia Roza, em direção àquela parte da população brasileira que tem sido sistematicamente destinada a um outro lugar em nossa sociedade, o lugar da falta, da carência dos bens mínimos.

Atualizamos, portanto, neste número, a esperança de, como psicólogos, podermos expressar livremente nossos muitos "eus", representados na pluralidade de abordagens e métodos que caracterizam nosso ciência e profissão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, R. Concerto para corpo e alma. Campinas: Papirus, 1998. 160p.
GARCIA-ROZA, L.. A. Psicologia: um espaço de dispersão do saber. Rádice,
1(4) , p.20-26, 1977.