COMUNICAÇÃO DE TESE


HISTÓRIAS DA DIGESTÃO DO DISCURSO PSICANALÍTICO NO BRASIL-SAÚDE MENTAL E CULTURA

Cristiana Facchinetti*

Em minha tese, busquei puxar algumas linhas do novelo do discurso psicanalítico no momento de sua chegada no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, a fim de identificar os lugares a partir dos quais suas enunciações foram feitas e a história oficial da psicanálise, construída.

O primeiro fio representou a idéia de construção da memória nacional, forjada no século XIX por meio da elaboração da figura do índio como herói e mito de origem, da produção de documentos históricos e geográficos como provas de identidade e da valorização do exotismo da natureza, aos quais se aliaram os esforços anteriores de imposição de língua portuguesa e de absorção da erudição jesuítica (Cândido, 2000).

Tal imagem, criada pelos pensadores da cultura, em especial pelo homem de letras, tinha como propósito forjar a pátria através da construção de uma narrativa que privilegiava a unidade nacional e sua potência (Süssekind, 1993). Com este objetivo, buscou-se silenciar os movimentos de fragmentação e de resistência à unidade territorial, bem como afastar o perigo que os índios (tal como eles se apresentavam, e não seu modelo idealizado), os escravos africanos e seus descendentes representavam para a construção de uma nação nos moldes europeus.

Todavia, para que um discurso se constitua como discurso de filiação, é necessário que seja incorporado pela cultura na qual busca se inserir (Berger, 1980). No Brasil, o discurso da identidade nacional precisava superar alguns obstáculos para que pudesse ganhar representatividade e se estabelecer de fato: a presença maciça dos africanos e de sua cultura, a concepção de uma natureza do excesso sexual referida aos índios e aos negros, a concomitante oposição entre trabalho e sexualidade, bem como a mistura dos corpos que resultaram na miscigenação eram fortes demais para serem caladas, marcando um impasse em relação ao projeto nacional, tal como ele fora desenhado, a partir de um ideal que, ao final do século XIX, apontava para a eugenia, a ordem e a civilização européia como referências exclusivas (Rago, 1998). Para superar tal estorvo, era necessário mais que silenciar as resistências políticas, civis e militares à unidade nacional e dizimar as tribos indígenas e os quilombos. Sem este a-mais, o projeto de constituição da identidade nacional não teria forças para concretizar-se, porque a parte do povo excluída do projeto resistia, inviabilizando a efetivação da crença na unidade nacional.

A busca por dar credibilidade ao projeto identitário, conjunta à entrada dos discursos modernizantes, representa o segundo fio da meada deslindada. O impasse enfrentado por esse projeto civilizatório e o empuxo modernizador geraram a busca de novas formas de domesticação daquilo que não se deixava docilizar (Fry, 1982); de fato, no início do século XX, vislumbramos o fortalecimento do discurso higienista, colorido de tons favoráveis ao embranquecimento da raça e à homogeneização das massas.

Para os higienistas e outros grupos afins, a busca de definição do Brasil continuava a ser marcada pela exigência, advinda do século XIX, da modificação do padrão racial e da aculturação do brasileiro ao modelo de cultura ocidental (Costa, 1989). O diálogo construído por intermédio de Monteiro Lobato com o Jeca-Tatu (1959) assinala a compreensão das elites do Brasil a respeito do que é a nação e de seus anseios reformistas que, incessantemente, buscaram salvar o Brasil, isto é, refazer o homem e a nação brasileira pela ação histórica da purgação dos vestígios dos jecas-tatus.

Como contraponto, em meio à busca ideológica de constituir o brasileiro, surgiu, no início do século XX uma consciência estética crítica que romperia com a história nacional tornada oficial e buscaria sua reformulação de modo a incluir o que vinha sendo excluído desde o século XIX; tal movimento abriria fendas nos ideais, tornando possível ao pensamento sobre a cultura dialetizar com o Outro europeu, numa apropriação feita a partir de seus próprios significados, estabelecendo identidades e diferenças (Andrade, M., 1925).

É nesse caldo efervescente que a psicanálise surge como nova possibilidade de instrumento diagnóstico e terapêutico. O terceiro fio puxado do novelo se liga àquilo que costuma permanecer fora do campo da história oficial da psicanálise no/do Brasil; fragmentos, imagens, que podem viabilizar a construção de novas trilhas para a psicanálise no país.

Ao contrário da tendência mundial de dependência de imigrantes europeus para a implantação da psicanálise nos mais diversos países, durante um longo período, a psicanálise no Brasil contou apenas com as fontes locais para seu conhecimento e transmissão, quer por situações políticas e sociais, quer por resistências à psicanálise por parte do establishment neuropsiquiátrico (Rocha, 1989). Entretanto, desde a segunda metade da década de 1910, a psicanálise conseguiu despertar um especial interesse no meio cultural da época.

Como resultado desse encantamento, a psicanálise passou a transitar por textos, atravessando encontros futuristas, dadaístas e, mais ainda, manifestos. Mário de Andrade (1928), Oswald de Andrade (1928), Manuel Bandeira (1981), Drummond (1964) – poetas, escritores, críticos de arte, aproximaram-se profundamente da psicanálise, indo buscar nela não apenas conteúdo para sua escrita e crítica literária, mas a própria (des)estruturação de seu texto (Lopez, 1972).

Os modernistas acreditavam que uma civilização não dependia apenas da saúde dos habitantes e da sua docilidade para submeter-se às práticas disciplinares e costumes europeus. Antes, era premente encontrar um pensamento, uma cultura independente. Tal viés buscou respostas na psicanálise, impondo um modo próprio de interpretação do discurso psicanalítico que acabou por produzir efeitos significativos no que se refere à implantação do saber psicanalítico no país e nas repercussões que teria no imaginário social. Isso porque, já nessa época, não somente eles deslocaram esse saber do domínio médico, como introduziram a psicanálise no universo cultural e pelo viés do pensamento social.(1)

Assim, uma parte dos intelectuais das décadas de 1920 e 1930 apropriou- se dos conceitos de primitivo, inconsciente, divisão subjetiva e pulsão como lugares centrais de regulação do sentido. Na proposta modernista, os conceitos psicanalíticos foram apreendidos como instrumento para a revolução subjetiva e social, desempenhando um papel bastante distinto daquele relacionado ao discurso construído pelos higienistas. Em vez de reformar, embranquecer, formatar e sujeitar-se à ordem, desejava-se a possibilidade de criar algo novo a partir do diálogo com as singularidades culturais colocadas no campo da alteridade. Como conseqüência da introdução da psicanálise, a intelectualidade brasileira passou a operar a partir de novos enunciados na busca de compreensão e, principalmente, de soluções para o país (Facchinetti, 2002).

No início dos anos 30, muitos eram aqueles que realmente já se interessavam pela psicanálise. Há que se considerar, porém, que eles conformam dois grupos diferenciados de intelectuais. Quer sejam educadores, jornalistas, médicos, sanitaristas, escritores, todos almejavam soluções para o país. Entretanto, há um claro choque entre as concepções, o que ecoa na apreensão do novo saber no país. O embate produz grupos conflitantes, disputas acadêmicas (Figueira, 1980), mas também alguns personagens que representam a junção das concepções aparentemente tão opostas.

Talvez a figura mais paradigmática deste embate seja Durval Bellegarde Marcondes, que, aos 20 anos, quando ainda era aluno de medicina, descobriu a psicanálise. Além do contato com Franco da Rocha, através de conhecimentos familiares, ele havia chegado ao novo saber através do movimento modernista. Era amigo de Oswald e de Mário de Andrade e participou da Semana de Arte Moderna, tendo publicado na revista Klaxon (“Symphonia em preto e branco”, (1), 1922), além de escrever alguns ensaios e crítica literária de inspiração psicanalítica (1926).

Um entusiasta da psicanálise, e não conseguindo expandi-la e divulgá-la pelo meio institucional ou acadêmico, Durval resolveu instituir uma sociedade psicanalítica (a primeira da América do Sul) multidisciplinar, com o objetivo de trocar conhecimentos e ampliar os debates sobre a psicanálise. Tal sociedade foi constituída por poetas, pedagogos, filósofos, médicos, e funcionou por alguns anos. (Facchinetti, 2000). Na década de 1930, porém, Durval cada vez mais se afastou do viés estético e social da psicanálise, interessado em adequá-la aos Institutos de Higiene Mental e de se adequar ao padrão de formação da Associação Internacional de Psicanálise (IPA) (Marcondes, 1936; Sagawa, 1994).

O percurso histórico nos faz testemunhas de que o discurso da psicanálise no Brasil não aponta para uma unidade coesa, origem única ou objetivos idênticos. O acompanhamento da inserção da psicanálise pelas vias do modernismo e do higienismo torna claro o embate entre os dois discursos pela hegemonia de suas verdades e, paulatinamente, pela definição dos rumos que desembocariam nas instituições psicanalíticas no país, tal como as conhecemos atualmente. Freud atraiu o interesse nesse campo discursivo de modos opostos: como instrumento para a crítica à civilização – realizada nos moldes europeus – e para a valorização de culturas periféricas, como a brasileira; ao mesmo tempo, serviu como justificativa para a manutenção, pelo modelo conservador, de controles sociais há muito estabelecidos, ainda que sob nova roupagem.

A construção da psicanálise pela via da IPA e sua proximidade com o higienismo representou o fim da participação do modernismo na psicanálise (Andrade, M. 1983). A instituição psicanalítica, tal como mantida pela memória oficial, é tributária esta configuração, que se estruturou a partir do Estado Novo. Assim, com a hegemonia do discurso tecnicista, a atitude estética proposta por parte dos grupos modernistas foi paulatinamente submetida a um trabalho de descrédito e desautorização, que afastou com desdém aqueles que tentaram insistir em mantê-la como meio de acesso à verdade (Corrêa, 1981).

Deste modo, a importância do movimento modernista para a difusão da psicanálise na cultura seria esquecida daí em diante, passando-se a apostar em um viés da psicanálise, que a tornara uma prática científica da área da saúde, cujo objetivo último era a cura das doenças. Tal crença, sobretudo, desviou o olhar psicanalítico da ética e da estética, operação esta que a retira de sua dimensão de abertura de possibilidades, experimentação e constituição subjetiva e, conseqüentemente, de sua dimensão política (Birman, 1989).

NOTAS
* Psicanalista, Pesquisadora-Visitante da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz; Professora da Pós-Graduação em História das Clínicas da Saúde - COC/Fiocruz.
1 Tese defendida em março de 2001 na Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, no Instituto de Psicologia da UFRJ sob o título: Deglutindo Freud: histórias da digestão do discurso psicanalítico no Brasil - 1920 a 1940.
2 Os exemplos são muitos; para o leitor interessado neste tema, as revistas modernistas são bastante exemplares: Klaxon (1, 1922, 8-9, 1923), Terra Roxa e outras Terras (2, 1926), Estética (1924), Revista de Antropofagia, 1ª e 2ª dentições (1926, 1927), entre outras.

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Recebido em: 22/10/02
Aceito para publicação em: 05/11/02
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