ARTIGO 6


AS NOVAS FRONTEIRAS DA VIOLÊNCIA
THE NEW FRONTIERS OF VIOLENCE

Adriano Duarte Rodrigues*

RESUMO
Considerando que a cada etapa da evolução técnica parece corresponder uma modalidade específica de violência, o autor, partindo de uma referência ao atentado de 11 de setembro de 2001, procura demonstrar que os mais recentes dispositivos técnicos alteram as fronteiras que delimitam a experiência da violência. A imprevisibilidade da eclosão da violência, a sideração dissuasora, o devir acidental e a internalização da violência, o retorno e a atualização das formas arcaicas da barbárie, a instrumentalização do mundo vivido pelo mundo sistêmico, são alguns dos efeitos mais importantes destas alterações das fronteiras da experiência provocadas pelas redes mediáticas da informação. O autor termina formulando a exigência de uma nova ética que permita uma contaminação do mundo sistêmico, instrumental e calculista, pelo mundo vivido.

PALAVRAS-CHAVE
Violência; mídia, globalização; solidariedade.

A cada etapa da evolução técnica parece corresponder uma modalidade específica de violência. Mas, ao contrário do que somos levados a pensar, não são só de natureza quantitativa os efeitos que a evolução técnica provoca no domínio da violência, não é apenas a um aumento da violência que assistimos nas sociedades como a nossa, em que a técnica atinge um nível considerável de desenvolvimento.

Tendemos a pensar que sobretudo o aumento incomensurável da capacidade destruidora caracteriza os novos dispositivos bélicos. Esta visão parte de uma imagem redutora, de uma concepção incompleta da tecnicidade e da sua evolução, segundo a qual os dispositivos técnicos seriam meros instrumentos que, ao longo das etapas da sua evolução, iriam adquirindo cada vez maior precisão e performatividade. É porque os objetos técnicos não são meramente instrumentos ao serviço dos nossos projetos, a sua evolução não é de natureza meramente quantitativa e os seus efeitos não consistem apenas no aumento da precisão e da força da ação humana.

Aquilo que a evolução técnica provoca é também, e talvez de maneira mais fundamental, uma alteração das fronteiras do mundo, com uma conseqüente repercussão sobre domínios da experiência que pareciam escapar à sua intervenção, criando, deste modo, novos quadros do sentido.

EVOLUÇÃO TÉCNICA E VIOLÊNCIA

O atentado de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, contra as torres gêmeas do Manhattan Center, é uma das manifestações mais evidentes das mudanças e dos efeitos que a mais recente evolução técnica provoca na nossa experiência do mundo. Tomando como referência este acontecimento trágico, é possível discernir alguns dos efeitos mais importantes que a mais recente evolução técnica provoca na nossa experiência da violência.

A ALTERAÇÃO DAS FRONTEIRAS DOS QUADROS DO SENTIDO DA VIOLÊNCIA

O efeito mais notável dos novos dispositivos técnicos é a alteração das fronteiras que delimitam os quadros em que situamos a nossa experiência do mundo e lhe damos sentido.

O atentado de 11 de setembro, apesar de ter provocado muito menos vítimas do que muitas guerras do passado, só foi possível porque, ao longo das últimas décadas, assistimos à consumação de uma importante mudança na lógica da violência. O atentado veio demonstrar com toda a clareza a face letal dos efeitos desta viragem. Os bombardeios às montanhas do Afeganistão, a que assistimos nos meses seguintes, tiveram, evidentemente, uma capacidade destruidora muito mais vasta e intensa do que os aviões que, na manhã de 11 de setembro, se chocaram, em Nova Iorque, contra as torres gêmeas de Manhattan. Mas a lógica dos bombardeios situava-se dentro de quadros da experiência ou de fronteiras conhecidas. Os bombardeios não eram determinados por uma verdadeira mudança do quadro delimitador das fronteiras da experiência do mundo, como ocorreu com o ataque às torres. É por se situarem nos quadros de sentido delimitadores das fronteiras nacionais, por não serem determinados pela mesma lógica do atentado de Nova Iorque, que os bombardeios ao Afeganistão por parte das tropas regulares nunca poderão representar uma resposta ao 11 de setembro. Nesta medida, além de ter sido um acontecimento de uma violência monstruosa, mais do que uma máquina de guerra, foi um dispositivo de produção de sentido que nos envolveu a todos nas suas malhas. Ou, dito de outro modo, é porque foi um dispositivo de produção de sentido, de delimitação de novas fronteiras da experiência, que o atentado do 11 de setembro foi uma monstruosa máquina de guerra.

O DEVIR IMPREVISÍVEL DA VIOLÊNCIA

O atentado de 11 de setembro não se esgotou no sofrimento infligido às suas vítimas diretas, aos seus familiares e amigos. Os media propagaram as suas ondas de choque, provocando a destruição de todas as trincheiras e de todas as defesas que a instituição militar tinha erguido para responder a uma invasão externa. A paralisação, a reação de incredulidade, a impressão generalizada de extrema vulnerabilidade, sentimentos que se apoderaram de toda a humanidade indefesa, refletiram a impotência, tanto das instituições nacionais como das instituições internacionais, perante a emergência de uma violência imprevisível e incontrolável.

Até aquele momento, a natureza imprevisível da violência estava associada à eclosão das forças físicas indomáveis da natureza, dos terremotos, dos cataclismos, das inundações, dos fenômenos naturais que ultrapassam a nossa capacidade de previsão e de controle. Desde o atentado de 11 de setembro, passou a pairar sobre as nossas cabeças a ameaça de um novo tipo de violência imprevisível, da eclosão de uma modalidade de violência inesperada, planejada e realizada com os recursos técnicos sofisticados das sociedades modernas. Já não é destinada a um inimigo previamente declarado, mas a uma projeção planetária contra alvos inocentes e indefesos. O atentado adquiriu, por isso, o efeito letal performativo de gestação e de eclosão de novas fronteiras da experiência do mundo.

O EFEITO DE SIDERAÇÃO DISSUASORA

É que não foi apenas a um espetáculo que assistimos ao vivo nos nossos televisores. Foi também à realização de uma espécie de curto circuito entre as forças antagônicas que constituem a modernidade. O atentado veio revelar que somos todos, ao mesmo tempo, espectadores e vítimas indefesas deste confronto.

Durante dias, semanas, meses, as televisões, os jornais do mundo inteiro, os meios de comunicação ficaram reféns das imagens do embate dos aviões contra as torres gêmeas, assim como da nuvem de poeira que se levantou do solo e perseguiu os sobreviventes nas ruas de Manhattan. A repetição compulsiva destas imagens, ao longo dos meses, representou a realização gigantesca da antonomásia do holocausto, do day after. Foi como se, por um momento, fôssemos todos levados a viver uma experiência limite, o ponto de mudança de direção que nos levaria para além do tempo, a passagem para uma dimensão incomensurável da experiência, experiência limite de que não sabemos ainda hoje se há regresso possível. Continuamos a levar a nossa vida cotidiana habitual, mas a normalidade passou a ter o sentido ilusório da hecatombe de um holocausto anunciado.

É a coalizão entre a realidade e o imaginário, provocada pelo destino mediático de toda a realidade, o fato de toda a realidade estar doravante destinada à sua representação e visibilidade mediática, que atinge hoje toda a experiência, convertendo-a em experiência limite. A realidade tende, por isso, a esfumar-se, adquirindo a existência de uma representação reticular imaginária, nos ecrãs dos televisores e nas bases de dados digitalizados, disponíveis nas redes da informação mediática.

É à experiência deste mundo sideral, a que Jean Baudrillard (1988) deu o nome de exorbitante, por ser um mundo abstrato, que gravita fora da órbita do nosso mundo vivido, de um mundo cada vez mais dissuadido, que pretende devolver-nos sob a forma imaginária a totalidade do mundo vivido, a que dou o nome de sideração. Trata-se de uma experiência paralisadora e vertiginosa, de um misto de atração e de repulsa, de terror e de fascínio, provocada pelo devir espetacular do confronto entre as forças contraditórias da totalidade e da fragmentação da tecnicidade mediática inventada pela nossa modernidade tardia.

Daí a perplexidade perante os acontecimentos, a dissuasão de qualquer tipo de resposta a dar ao atentado, deixando os próprios responsáveis políticos e militares entregues a um estado generalizado de indecisão e paralisia, reféns da natureza imprevisível das conseqüências, tanto das ações de retaliação, como da não-retaliação, apanhados nas malhas do paradoxo de um double bind generalizado.

O DEVIR ACIDENTAL DA VIOLÊNCIA

Um dos efeitos mais evidentes deste devir paradoxal da experiência é a transformação de todo e qualquer ato de violência em acidente, em eclosão imprevisível dos efeitos destruidores e letais do próprio funcionamento dos dispositivos técnicos. O atentado do 11 de setembro começou por se confundir com o embate acidental de um avião das linhas regulares da American Airlines. É que, ao contrário dos conflitos bélicos do passado, as novas formas da violência emergem sem aviso prévio, sem declaração de guerra, sem abertura das hostilidades entre forças antagônicas e sem rosto concretamente identificado.

O acidente corresponde precisamente a esta nova figura da violência, da dissolução dos quadros concretamente instituídos da experiência do mundo. Quando a eclosão da violência adquire este sentido acidental, torna-se a imagem da barbárie, modalidade da violência que doravante espreita o destino de todos nós. Trata-se da figura da violência de um mundo que pretendeu substituir, pela performatividade racional, fria e calculista dos dispositivos técnicos, os quadros em que se produzem, alimentam e restabelecem os processos de reconhecimento mútuo e recíproco do outro como parceiro, os processos a que Marcel Mauss (1995) deu o nome de fenômenos sociais totais ou de troca generalizada.

Enquanto a declaração de guerra é um dos processos simbólicos que visam ao restabelecimento de relações entre atores que se reconhecem mutuamente como parceiros de troca simbólica, a eclosão imprevisível do atentado é a recusa de reconhecimento mútuo, de qualquer possibilidade de restabelecimento dos processos de troca simbólica.

Apanhados por esta lógica de recusa de reconhecimento do outro, promovida pelas fronteiras criadas pelo funcionamento meramente instrumental dos dispositivos do mundo sistêmico, estamos cada vez mais à mercê da irrupção imprevisível e acidental da barbárie, do retorno ao estádio selvagem, pré-social, da humanidade.

A INTERNALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA

A porosidade e a fluidez das fronteiras da experiência, a imprevisibilidade e o devir acidental da eclosão da violência são efeitos intimamente associados à internalização da violência.

Até há pouco tempo, era de fora, do inimigo externo, que se esperavam as declarações de hostilidade. As instituições herdadas do passado foram, aliás, pensadas para responderem ao espectro sempre presente desta eventualidade. Doravante, é de dentro que surgem as ameaças mais terríveis, os atentados à integridade individual e à identidade coletiva. O que torna o atentado de 11 de setembro um acontecimento significativo da nova experiência do mundo é o fato de os aparelhos que se chocaram contra as torres gêmeas do Manhatan Center serem aviões comerciais das linhas regulares americanas, que faziam a ligação entre Boston e Nova Iorque, de serem pilotados por cidadãos detentores de passaportes americanos, treinados em escolas de pilotagem americanas.

É esta internalização que torna hoje a eclosão da violência um processo particularmente temível. No limite, deixa de haver uma linha de demarcação entre amigo e inimigo, entre o que os romanos designavam por hospis, o hóspede, e o que designavam por hostis, o inimigo. O que torna esta indiferenciação particularmente inquietante é o fato de, doravante, todos passarem a ser potenciais suspeitos aos olhos de todos, levando a uma conversão em ordem militar da ordem policial. É do inimigo de dentro que esperamos, doravante, a eclosão mais temível da violência, violência contra a qual não há instituição de segurança permanente e possível.

AS NOVAS FRONTEIRAS DA EXPERIÊNCIA DO MUNDO

Os efeitos que o estádio mais recente da evolução técnica provoca no domínio da violência decorrem do fato de esta evolução técnica alterar as fronteiras da experiência do mundo. O atentado do 11 de setembro mostrou a consumação da fratura das fronteiras da experiência que, até há pouco tempo ainda, serviam de quadro de referência delimitador do território de funcionamento legítimo, tanto das instituições nacionais, como das instituições internacionais. Mostrou que está consumada a gênese de uma nova modalidade de experiência do mundo, para a qual ainda não conseguimos delimitar as fronteiras, as regras de circulação e de funcionamento legítimo dos seus dispositivos de defesa.

É porque nos demos conta dos efeitos letais da ausência das fronteiras e das regras de circulação nos novos territórios gerados pelos mais recentes dispositivos técnicos, dos efeitos da desregulação generalizada dos quadros em que passamos a situar a nossa experiência do mundo, que a imagem do embate dos dois aviões contra as torres gêmeas do Manhattan Center provocaram o referido efeito de sideração paralisante.

Antes do 11 de setembro, acreditávamos que a violência se exercia entre espaços territorialmente delimitados, entre comunidades que se confrontavam com vista à defesa de interesses nacionais e culturais enraizados nos territórios das comunidades nacionais. Tanto as instituições nacionais como as internacionais organizaram-se historicamente em função desta crença. O atentado de Nova York veio evidenciar a natureza arbitrária e porosa destas fronteiras nacionais e culturais que estiveram na origem da constituição dos Estados modernos e das instituições militares. Veio mostrar que doravante as novas fronteiras do mundo passam por linhas de fratura transversais aos espaços em que nos habituamos a investir o nosso destino individual e coletivo.

AS FIGURAS DO RETORNO E DA ATUALIZAÇÃO DO ARCAICO

Não é que, no passado, não tivessem já ocorrido sinais percursores da gestação destas novas linhas de fratura transversais aos territórios nacionais. Seria certamente esclarecedora uma indagação arqueológica que permitisse recuperar estes sinais precursores das atuais fronteiras transversais emergentes. Trabalho indispensável, não só para dar conta das rupturas, mas também para descobrir que, subjacente aos processos de ruptura em relação às modalidades sedentárias da experiência, subsistem linhas de continuidade que ascendem às modalidades nômades arcaicas. Veríamos assim como a atualidade se alimenta do retorno do arcaico, da reminiscência das experiências enterradas nas camadas mais profundas da experiência, retorno que os mais recentes dispositivos técnicos parecem tornar possível e consumar.

Não é, no entanto, a um mero retorno, mas a uma atualização do arcaico que assistimos em nossos dias. Atualização paradoxal. De fato, se as velhas identidades surgem das cinzas do sacrifício em que a era da modernidade as consumiu, é para assegurarem a visibilidade simbólica dos mundos vividos de que os próprios meios de comunicação modernos necessitam para se alimentarem, convertendo-se assim em instrumentos do próprio processo que as consumiu.

Os fundamentalismos de todo o gênero, quais fênix renascidas, adquirem o seu sentido mais autêntico, neste processo, como efeito de um retorno do arcaico. Encontramo-nos, assim, confrontados com a urgência de conter a barbárie das suas manifestações mais violentas, mas o sucesso deste empreendimento de contenção só poderá ser bem sucedido se forem adequadamente compreendidos, por um lado, os anseios de autenticidade de que a barbárie é portadora e, por outro lado, os valores de resistência a uma barbárie de sinal contrário promovida pela racionalidade instrumental que prossegue o aniquilamento das formas comunitárias de solidariedade.

O CONFRONTO ENTRE NOVAS FORMAS DE SOLIDARIEDADE

Nunca, como agora, se tornou tão evidente que as forças em presença se confrontam em novos territórios que não têm nada a ver com os espaços onde a modernidade procurou instaurar a nossa identidade e situar os nossos projetos. O 11 de setembro foi a realização hiperbólica da emergência do confronto imprevisível entre os territórios onde se investem e consolidam as novas formas de solidariedade e os novos territórios abstratos que escapam às fronteiras nacionais e culturais. O confronto entre as solidariedades geograficamente delimitadas pelas fronteiras nacionais e as novas formas de solidariedade provoca as linhas de fratura que fazem eclodir as novas formas imprevisíveis de violência.

Até há pouco tempo, a experiência era determinada por modalidades totais de solidariedade, que envolviam o conjunto das dimensões da experiência e determinavam, tanto as formas de organização, como as fronteiras da experiência. A modernidade instaurou formas de solidariedade parcelares, de natureza fragmentária, fluida e efêmera.

A modernidade pretendeu substituir as formas totais de solidariedade, por considerar que a sua lógica e as suas normas eram autoritárias, obscurantistas, contrárias aos valores de emancipação e de autonomia individuais. Em lugar das solidariedades totais, a modernidade procurou instaurar formas parcelares de solidariedade, originariamente fundadas na complementaridade e na livre escolha dos indivíduos, mas que depressa derraparam para a constituição de um mundo sistêmico, determinado por uma racionalidade instrumental, fria, calculista. Aquilo que está em jogo, neste processo, é o confronto entre modalidades da experiência opostas, definidas por Tönnies (1987), como Gemeinschaft e Gesellschaft, como formas comunitárias e formas societárias de organização social, que correspondem, segundo os termos de Durkheim (1991), às sociedades mecânicas e às sociedades orgânicas.

Ao contrário do que muitos pensam, a modernidade não conseguiu destruir as formas de solidariedades totais, em nome da racionalidade instrumental, nem substituí-las completamente por formas parcelares de solidariedade. As solidariedades comunitárias totais continuam ainda hoje a regular dimensões fundamentais da existência e a definir os quadros da nossa identidade individual e coletiva. As próprias solidariedades fragmentárias, instauradas pela racionalidade moderna, só se impuseram na medida em que utilizaram as formas simbólicas de visibilidade herdadas das antigas solidariedades comunitárias.

Para a exacerbação do confronto entre a modalidade total e as modalidades fragmentárias de solidariedade contribui, de maneira significativa, o próprio processo que pretende destruir as formas de solidariedade totais, enraizadas na experiência comunitária, prosseguido pela consumação da modernidade. Não admira por isso que, com a atual aceleração dos processos de racionalização do mundo da vida, à sua instrumentalização por parte do mundo sistêmico, assistamos à exacerbação do confronto entre as duas lógicas, as suas normas e as suas modalidades específicas da experiência.

A exacerbação deste confronto não se exprime apenas nas atuais lutas contra a globalização da lógica instrumental das solidariedades parcelares que atinge as mais diversas dimensões da experiência. Eclode igualmente no recrudescimento das lutas pelo reconhecimento das mais arcaicas formas de expressão comunitária que, apesar de parecer há muito tempo terem desaparecido, sobrevivem enterradas na memória ancestral. O surgimento de antigas nações no leste europeu, que pareciam desde há muito destruídas, é um dos sintomas mais evidentes deste confronto. Descobrimos, assim, que as formas de solidariedade comunitárias, enraizadas em territórios nacionais geograficamente delimitados, não desapareceram. Parecem, antes, manter-se intactas e revigoradas pelo próprio processo de destruição de que foram alvo, emergindo de debaixo das cinzas da modernidade, desenvolvendo-se e restaurando-se com tanto mais violência quanto mais atingidas pela fúria destruidora da racionalidade moderna.

É, por conseguinte, a eclosão do conflito entre a lógica da solidariedade total, enraizada no conforto das comunidades de pertença, e a lógica das solidariedades fragmentárias, transversais aos territórios nacionais, que parece determinar as novas fronteiras da violência. O fundamentalismo islâmico, que esteve envolvido na realização do atentado do 11 de setembro, é apenas uma das manifestações de um confronto muito mais generalizado, de que somos, ao mesmo tempo, autores e vítimas, que dilacera a nossa própria experiência moderna.

Duas modalidades de território parecem assim determinar hoje as fronteiras da nossa experiência: as que são formadas por solidariedades parcelares e instrumentais, transversais aos territórios nacionais, e as que estão enraizadas em comunidades de vida ancestrais, que foram objeto de tentativas de destruição, em nome da racionalidade instrumental. O atentado do 11 de setembro só foi possível porque estas duas territorialidades coexistem hoje e entram em competição pela mobilização da nossa experiência.

Aquilo que esta competição parece configurar é, portanto, a de um confronto entre duas lógicas que não sabemos ainda bem como conciliar e que parecem confrontar-se em um conflito insanável.

A EXIGÊNCIA DE UMA DIFÍCIL CONCILIAÇÃO ENTRE O UNIVERSALISMO E OS PARTICULARISMOS

Há uma concepção da modernidade que pretende definir e impor uma forma de racionalidade que considera como universais os seus próprios valores e as suas normas de comportamento, considerando como anacrônicos e irracionais os particularismos comunitários, as formas de solidariedade que abarcam a totalidade das dimensões da experiência. É esta visão desencarnada da racionalidade moderna que condena os que pretendem preservar as suas diferenças culturais particulares e mantê-las ao abrigo da racionalidade instrumental, dos valores e das normas impostas, a escolher entre duas formas antagônicas de sobrevivência, entre o isolamento, a fuga do mundo, e a violência letal como forma de resistência autodestruidora.

É, por conseguinte, a uma composição entre as exigências contraditórias de duas formas de barbárie de sinal contrário que estamos hoje convidados. Entre, por um lado, as exigências de uma racionalidade abstrata e fria, que arregimenta tudo e todos em ordem à sua instrumentalidade, e, por outro lado, as exigências de formas razoáveis de solidariedade comunitária, enraizadas na memória ancestral. Anthony Giddens fala sobre uma agenda da política da vida que reponha “no papel de protagonista as questões morais e existenciais reprimidas pelas instituições centrais da modernidade” (1997, p.206).

Se pretendermos sobreviver à hecatombe provocada pela barbárie que se alimenta das fraturas da modernidade, a nova agenda política da vida não poderá deixar de incluir processos de contaminação do mundo sistêmico, fragmentado, frio e calculista, pelo mundo vivido do reconhecimento mútuo e recíproco do outro como parceiro de troca simbólica. Da nova agenda política não poderá deixar de constar o reconhecimento efetivo de todos e de cada um como parceiros dotados dos mesmos direitos à partilha eqüitativa dos recursos materiais disponíveis e dos meios indispensáveis à construção do destino individual e coletivo.

 

NOTAS
* Professor Catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de Louvain (Bélgica). Autor de vários livros, entre os quais A partitura invisível (2001), Estratégias de Comunicação (2001), Comunicação e Cultura (1990).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDRILLARD, J. O Orbital. O Exorbital. Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa, Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, nº 6/7,p. 337-346, 1988.
DURKHEIM, E. De la division du travail social. 2. ed. Col. Quadrige. Paris : P.U.F., 1991.
GIDENS, A. Modernidade e identidade pessoal. Oeiras: Celta, 1997.
MAUSS, M. Essai sur le don. In: ______. Sociologie et anthropologie. Paris: P.U.F., 1995, p.143-279. (Quadrige)
RODRIGUES, A. D. O acidente. In: ______. O Campo dos media. Lisboa: Veja, s/d, p. 171-172.
TÖNNIES, F. Geminschaft und gesellschaft. Abhandlung des Communismus und des Socialismus als Empirische Culturformen. Leipzig: Reisland, 1987.

ABSTRACT

Whereas to each stage of thecnical evolution it seems to corespond a particular kind of violence, the author, starting from mentioning the September 11, 2001 outrage, attempts to show tha the most recent technical devices or dispositions alter the borders delimiting the undergoing of violence. The unforseeableness of vilence eclosion, the dissuading sideration, the accidental series of transformations and the internalization of violence, the return and modernization of the world where the systemic world lives are some of the most important effects of these changes of experience forntiers brought about by the media information network. The author finishes by stating the need for a new ethics permitting the contamination of such na instrumental and cautious systemic world by an experienced world.

KEYWORDS
Violence, midia, globalization.

Recebido em: 18/05/02
Aceito para publicação em: 08/07/02
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