ARTIGO 4


VELHICE E SUAS REPRESENTAÇÕES: IMPLICAÇÕES PARA UMA INTERVENÇÃO PSICANALÍTICA
AGING AND ITS REPRESENTATIONS: IMPLICATIONS FOR PSYCHOANALITIC INTERVENTIONS


Márcia Dourado*
Annette Leibing**

RESUMO
A cultura contemporânea conceitua representações específicas de velhice, de forma a tentar solucionar o problema social em que esta se transformou. Objetiva-se, aqui, pensar de que forma a clínica psicanalítica se inclui na reverberação causada no sujeito pelas representações culturais, sua imagem e seus ideais.

PALAVRAS-CHAVE
Velhice; cultura; psicanálise.

Um dia a senhora NTS se viu no espelho e se assustou. A mulher do espelho não era ela. Era outra mulher. Por um instante pensou que fosse uma brincadeira do espelho, porém descartou esta idéia e correu a se olhar no grande espelho da sala. Nada. A mesma senhora. Foi no banheiro, no corredor, nos pequenos espelhinhos que carregava na sua bolsa, e nada. Aquela mesma senhora desconhecida estava lá. Decidiu sentar e fechar os olhos. Sentia vontade de fugir para um lugar bem longe onde não pudesse se encontrar com aquela pessoa. Porém era mais prudente ficar por perto, não deixá-la sozinha. Observá-la.

Parou para refletir: quem poderia ser essa senhora? Talvez a que morou antes de mim neste apartamento? Talvez a que morará aqui quando eu sair? Ou, quem sabe, a mulher que eu mesma seria se minha mãe tivesse casado com seu primeiro namorado? Ou, quem sabe, a mulher que eu mesma teria gostado de ser?

Lancei uma rápida olhada no espelho e decidi que não. De jeito nenhum eu teria gostado de ser essa senhora. Depois de pensar muito tempo, a senhora NTS chegou à conclusão de que todos os espelhos da casa tinham enlouquecido, agiam como atacados por uma doença misteriosa. Tentei aceitar a situação, não me preocupar mais, e simplesmente parar de me olhar no espelho. A gente pode viver muito bem sem se olhar no espelho. Guardei os pequenos espelhos de bolsa para tempos melhores e cobri com panos os maiores. Um belo dia, quando, por força do hábito, estava me penteando frente ao espelho do armário, o pano caiu, e ali estava a outra me olhando, aquela desconhecida. Desconhecida? Parece-me que já não tanto assim. Contemplo-a durante longos minutos. Começo a achar que tem um certo ar de família. Talvez esta dama compreenda minha situação e por pura bondade tente se adaptar a mim, a minha imagem que por tanto tempo habitou meus espelhos. Desde então olho-me ao espelho todos os dias, a toda hora. A outra, não tenho dúvidas, se parece cada vez mais comigo. Ou eu com ela?
Frenk-Westheim, 1992

Caso pudesse o sujeito admitir a transitoriedade das coisas, o envelhecimento haveria de se aliar não com a inquietude, o desalento, a dor e o medo, mas sim com a alegria do novo e com a afirmação do múltiplo. A velhice, talvez em função da sua inexorabilidade e uma pretensa intimidade com a morte, só pode ser pensada a partir do momento em que o “problema dos velhos” apresentou-se como não mais passível de esquecimento. No Brasil, quase nada foi feito com um interesse exclusivo na velhice, de forma que apenas muito recentemente os velhos passaram a existir, ou melhor, tornaram-se visíveis como representantes de uma “catástrofe demográfica” que se anuncia. Sabemos que diversas formas de categorização – sociais, culturais, psicológicas – definem os limites entre as idades, mas nenhuma delas é capaz de descrever o experienciar a velhice, tornando-se meras generalizações.

Podemos afirmar que as categorias da velhice mudaram nos últimos 30 anos significativamente. Mas se estas mudanças, geralmente consideradas como um empowerment desta população, são boas para todo mundo, é questionável. A psicanálise como método de se pensar a velhice oferece um contraponto à naturalização do “novo envelhecimento”. Por refletir sobre o sofrimento não apenas como algo intrapsíquico, mas considerando a pessoa como situada em um determinado mundo com suas ideologias, valores e ordens, a psicanálise pode ajudar a entender a velhice.

VELHICE: UM MAL-ESTAR NA CULTURA?

Como um conceito inserido em um repertório cultural e historicamente delimitado, a velhice é desnaturalizada e pode atravessar do estatuto de um processo biológico para o de uma construção social.(1) Conseqüentemente, pensar na velhice em termos de identidade social possibilita percebê-la como uma classificação, uma vez que há uma atribuição por parte da sociedade e uma auto-atribuição concomitante da identidade etária, separando e arrumando os indivíduos em parâmetros de idade.

A transformação da velhice em problema social não pode ser encarada apenas como decorrente do aumento demográfico da população idosa. Para Remir Lenoir (1989), um problema social é uma construção social, fruto de um cruzamento de fatores muito mais complexo do que simplesmente o resultado do mau funcionamento da sociedade. Um problema social decorre de um trabalho de reconhecimento, mobilização e legitimação de uma questão particular.

Segundo Debert (1998), a transformação do envelhecimento em objeto de estudo relaciona-se a diversas dimensões que vão desde o desgaste fisiológico e do prolongamento da vida ao desequilíbrio demográfico e custo financeiro das políticas sociais. Assim, a compreensão da velhice na sociedade contemporânea implica o reconhecimento da sua dimensão histórica e social, de forma que a representação social da pessoa envelhecida modificou-se, ao longo do tempo, uma vez que as mudanças sociais reclamavam políticas sociais que pressionavam pela criação de categorias classificatórias, adaptadas às novas condições e ao objeto velho. Desta forma, na transformação do envelhecimento em problema social estão também envolvidas novas definições da velhice, como por exemplo, a “terceira idade”.

Através da “terceira idade” cria-se uma chance para um novo processo de envelhecimento através dos estereótipos de longa data. Trata-se de uma nova imagem para o envelhecimento, a partir da categorização e criação de um novo vocabulário, que se opõe ao antigo no tratamento dos mais velhos: “terceira idade” x velhice. Por meio da atribuição de novos significados aos estágios mais avançados da vida, estes passam a ser tratados como momentos privilegiados para novas conquistas guiadas pela busca do prazer, da satisfação e da realização pessoal. Teoricamente, as experiências vividas e os saberes acumulados seriam ganhos que propiciariam a oportunidade de explorar novas identidades, realizar projetos abandonados em outras etapas da vida, além de estabelecer relações mais profícuas com o mundo dos mais jovens e dos mais velhos. Estas são as imagens que acompanham a representação da “terceira idade” e que, atualmente, chega ao ponto de a identificarem como “melhor idade” em mais um estereótipo em que, “maniacamente”, se tenta negar o sofrimento da estigmatização da velhice como dor e perdas (Leibing, 2001; Laslett, 1991).

Ainda sobre a construção da representação de “terceira idade”, pode-se afirmar que o curso da vida contemporânea ou pós-moderna é marcado por comportamentos tidos como adequados às diferentes categorias de idade. Entretanto, o conceito de “terceira idade” implica, na verdade, a descronologização da vida, uma vez que a juventude deixa de fazer parte de um grupo etário específico, transformando-se em um bem a ser adquirido através de estilos de vida e formas de consumo adequadas.

Atualmente, os indivíduos são convencidos a assumir a responsabilidade pela sua própria aparência, comportamento e talvez, até mesmo, seu adoecimento. Isto porque envelhecer está normalmente conjugado com a impotência, declínio e morte e, assim, uma vez que a velhice é percebida como um estágio deprimente do desenvolvimento humano, então ser velho e acometido por doenças, como a demência, por exemplo, seria uma trapaça armada pelo destino que nos faria dar boas-vindas à morte e ao esquecimento.

A publicidade, os manuais de auto-ajuda e as receitas dos especialistas em saúde estão empenhados em mostrar que as imperfeições do corpo não são naturais nem imutáveis e, que, com esforço e disciplina, pode-se conquistar a aparência desejada, de forma que as rugas e a flacidez transformam-se em fraqueza moral e, portanto, devem ser combatidas através de cosméticos, ginástica, vitaminas, enfim, a parafernália da indústria do corpo e do prazer.(2) O fato de os idosos constituírem um novo grupo com disponibilidade para o consumo, bem como a relação existente com as concepções modernas sobre a conservação do corpo propiciam uma nova significação ao envelhecimento. O idoso já não se encontra mais ausente das diretrizes nacionais, das falas dos políticos, no entanto, ainda não existem iniciativas objetivas adequadas, nem tampouco a reformulação das representações apresentadas pelo discurso gerontológico.

Segundo Debert (1998), a velhice como construção social cria subdivisões, de forma que, por exemplo, a categoria “velho”, na percepção dos “envelhecidos” das camadas médias e superiores está associada à pobreza, à dependência e à incapacidade, o que implica que o velho é sempre o outro. Já a noção de “terceira idade” torna-se sinônimo dos “jovens velhos”, os aposentados dinâmicos que se inserem em atividades sociais, culturais e esportivas. Idoso, por sua vez, é a designação dos “velhos respeitados”. A expressão “idoso” designa uma categoria social, no sentido de uma corporação, o que implica o desaparecimento do sujeito, sua história pessoal e suas particularidades. Além disso, uma vez que é considerado apenas como categoria social “o idoso é alguém que existiu no passado, que realizou o seu percurso psicossocial e que apenas espera o momento fatídico para sair inteiramente da cena do mundo” (Birman, 1995, p.23).

Mas o que é ser velho, ou melhor, quando se fica velho?

Havia enunciado o louco desejo de conservar-se jovem, enquanto envelhecesse o quadro... Ah! se sua beleza não devesse fenecer e fosse permitido ao retrato, pintado nessa tela, carregar o peso de suas paixões, de seus pecados! A pintura não poderia, pois, ficar assinalada pelas linhas de sofrimento e dúvida enquanto ele conservasse o desabrochar delicado e a lindeza de sua adolescência?
Oscar Wilde, 1993.

Tal qual Dorian Gray, o mal-estar causado pela brusca percepção da deterioração do corpo associa o velho à incapacidade, à mudez, à cegueira e à surdez, que produzem paralisação, restando-lhe as faltas: falta de saúde, falta de trabalho, falta de atividade, falta de companhia e, principalmente, falta de desejo. Todas estas faltas evidenciadas em um corpo, que é o limite e a extensão do contato/relação com o mundo, de maneira que corpo e tempo se entrecruzam no envelhecimento e, das formas decorrentes desse entrecruzamento, nascerão múltiplas velhices.

Através da experiência analítica, apreende-se que o corpo não é apenas um estado de saúde, cuja norma reside no seu bom funcionamento, mas sim, que pensamos com o corpo, que carrega um sentido próprio. Borges (1995) indica que existe uma especificidade tanto da relação saúde/doença, bem como do corpo, que se encontra intimamente associada à experiência individual, que não pode estar submetida ao social e ao mal-estar do cultural, mas sim ao pensamento freudiano. O encontro de Freud com a histeria e seus sintomas é o momento de ruptura com a objetividade médica, uma vez que ultrapassa o biológico do corpo, lançando luz à verdade do sofrimento, ao valor simbólico dos sintomas e introduzindo a questão da subjetividade. Através dos processos psíquicos, o corpo adquire dupla valência: alvo da somatização, de processos orgânicos e terreno da subjetividade, passando a adquirir status de corpo libidinal, pulsional, trabalhando em busca do próprio destino.

Atualmente, criou-se, para fins de consumo, uma supervalorização do belo, de forma que o culto ao belo estético transcende a temporalidade, rebelando-se contra os ataques da deterioração, decadência e morte (Medeiros, 1981). A feiúra torna-se assustadora e a repelimos. A tentativa de afastamento do que é vivido como sofrimento caminha ao lado da procura de uma satisfação inalcançável, de forma que vivemos em um momento social em que a bela aparência é cultivada às últimas conseqüências: a beleza torna-se sinônimo do bom e a feiúra do mau. Não devemos nos esquecer de que, em O mal-estar na civilização (1930[1929]), ao pensar sobre as três fontes de sofrimento permanente para os homens, Freud afirma que

o sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente de nossos relacionamentos com os outros homens. (Freud, 1930 [1929], p.95)

Portanto, uma vez que os corpos a nós apresentados são aqueles sem forma, caídos, enrugados e flácidos, não nos esqueçamos, também, do quanto somos nosso corpo e do quanto nossos processos psíquicos encontram-se atrelados às intercorrências a que este corpo está submetido, pois o inconsciente é uma memória cujas lembranças não se atualizam na consciência, mas nos nossos atos, nossos sonhos ou nosso corpo, sem que o saibamos.

Lidar com a velhice e o corpo torna-se difícil porque, tanto o próprio velho como os outros estigmatizam, rejeitam e isolam. Deste modo, o contato que o velho tem com o seu corpo é medroso e cheio de vergonha,(3) porque este corpo denuncia sua condição de mortal, o limite, restando perguntar com perplexidade e estranheza sobre quem é este outro parecido comigo, mais velho que um ideal conservado na lembrança?

Ao passo que a criança se rejubila antecipando sua unidade corporal, o velho se aflige ao antecipar um corpo fragmentado, arrebentado, um corpo de morte (Dourado, 2000). Lembramos de Freud ao relatar sua estranheza ao, na velhice, defrontar-se com a própria imagem:

Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo, e um senhor de idade de roupão e boné de viagem, entrou. Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência. (Freud, 1919, p.309)

Sendo, então, o corpo veículo da denúncia dos limites, ele dói e isto é mais forte que a angústia. No entanto, a dor que denuncia as imperfeições insiste e ocupa um lugar privilegiado na imagem que o velho tem de si mesmo, pois falar de dor é discurso socialmente aceito. Falar de angústia de morte é profanar a vida. Como Dorian Gray, assistimos impotentes ao envelhecer de nossa imagem sem, contudo, sentir realmente os efeitos do envelhecimento. O velho é sempre o outro em quem não nos reconhecemos.

A imagem da velhice parece estar fora e, ainda que saibamos que é a nossa imagem, nos produz uma impressão de estranheza, é “a outra”. Entretanto, não podemos deixar de pensar que, na realidade, a velhice surge como um mero pano de fundo ou um cenário para uma peça que se desenvolve ao longo da vida. Incredulamente, em alguns momentos é difícil escapar da percepção de que o velho que seremos já nos habita desde sempre, silenciosamente, ou seja, o que somos hoje não difere do velho que seremos amanhã.

O envelhecimento do corpo biológico, aquele sobre o qual não há palavra que imponha ordem, nos mostra uma imagem não mais condizente com o ideal que guardamos. A imagem do espelho não corresponde à imagem da memória, pois antecipa ou confirma a velhice, ao passo que a imagem da memória quer ser uma imagem idealizada que remeta a um mesmo Eu.

No entanto, será que ser velho é ficar paralisado em um tempo passado de realizações e perdas, fazendo com que o futuro se torne apenas um borrão indefinido, morrendo-se um pouco a cada dia para despistar a morte? Bobbio (1997) afirma que, na velhice, não se consegue escapar à tentação de refletir sobre o próprio passado, que existe com o peso das recordações surgidas após anos de desaparecimento. O presente é fugidio e o futuro pertence à imaginação, reduzindo-se até o completo desaparecimento. É a certeza de habitar um único corpo, quaisquer que sejam suas modificações, que nos garante uma identidade e permanência (Aulagnier, 1989). Para tanto, cabe ao sujeito dar o mesmo sentido relacional a uma série de experiências, embora tenham acontecido em tempos diferentes, uma vez que a história do sujeito é a história das marcas relacionais de dor e emoção em seu corpo; esta é sua identidade. A história que ele escreve, atribuindo sentidos a estas marcas, é uma história que jamais se completa.

O sujeito velho nos fala de uma consciência de finitude e de um corpo imaginário que se nega a envelhecer e que não se reconhece no espelho. A velhice é ainda representada como um tempo que traz medo e ansiedade, e os sintomas decorrentes destes sentimentos são a negação e a repressão do envelhecer. Em nossa cultura, ser velho é visto de forma negativa, o que exerce enorme impacto sobre as ansiedades pessoais. Para Woodward (1991), a idade seria mensurada a partir de um cálculo subjetivo, resultante da diferença entre o próprio corpo e o do outro. Entretanto, estes corpos seriam reflexos do prisma constituído tanto pelas próprias fantasias como pelas representações socioculturais. Conseqüentemente, o corpo envelhecido, tal como imaginado e experienciado, e aquele com uma estrutura representada, seriam uma reverberação infinita. Assim sendo, podemos afirmar que a velhice, apesar de alguns discursos contrários, ainda é encarada como um dos mal-estares da nossa cultura. O corpo envelhecido, marcado pela passagem do tempo, poderia representar uma ferida narcísica, incontinente e em declínio, totalmente compatível com a noção cultural de corpo como significante da velhice.

Uma questão importante reside em até que ponto poderiam ser alteradas estas experiências. Sharon Kaufman (1986, 1994), em seu estudo fenomenológico sobre idosos norte-americanos, afirma que uma escuta atenta do idoso revela que muitos mantêm efetivamente uma auto-imagem jovem e idealizada, que diverge do corpo envelhecido no espelho, the ageless self. Mais diferenciada é a análise de Featherstone e Hepworth (1991) que vêm a “traição” do corpo não como escondendo o verdadeiro eu, mas como sinais culturais que escondem a riqueza e grande heterogeneidade da experiência de ser velho.

Porém, se pode pensar que a contestação desta leitura reducionista e geralmente negativa do corpo velho, através do movimento da terceira idade, gerou novos estereótipos, com novas formas de sofrimento, às quais a psicanálise, ou qualquer outra forma de intervenção “psi”, precisam estar atentas.

Assim sendo, pensar a velhice como um constante e sempre inacabado processo de subjetivação é uma direção. Ainda atualmente, encontramos em grande parte dos psicanalistas a noção de que não vale a pena trabalhar com pacientes idosos, pois não há muito o que fazer por eles. Em parte, este pensamento encontra fundamentação no próprio Freud, para quem um tratamento psicanalítico não era recomendável para pessoas com idade acima de 50 anos (Freud, 1905[1904]). Ao longo do tempo, foram feitas diversas tentativas de adaptação das teorias psicanalíticas existentes, de forma a que pudessem vir a aliviar o sofrimento psíquico do sujeito velho, mas ainda é clara a necessidade de a psicanálise avançar em suas pesquisas, uma vez que a velhice como construção social está associada a um grande espectro de problemas, pois estabelece direitos, deveres e possibilidades com os quais o sujeito se identifica. Como conseqüência, se estabelece uma norma que passa a impor e regular os atos destes sujeitos, além do fato do termo velhice engendrar um tipo específico de subjetividade, uma vez que o grande drama dos velhos não se refere apenas à velhice propriamente dita, mas sim, às relações mantidas entre o velho, sua imagem e seus ideais (Goldfarb, 1998).

Para a psicanálise, o velho não deve ser pensado apenas como produto da responsabilidade individual ou da deformação decorrente do desgaste do corpo, já que precisam ser consideradas as implicações que os fatores físicos, sociais, culturais e psicológicos engendram. A associação destes fatores nos confronta com os diversos mitos sob os quais o velho se apresenta na clínica: a velhice como o estranho, a velhice como doença, a velhice das manias e enrijecimento, a velhice sábia e boa, a velhice liberta das paixões da alma e das exigências da carne, a velhice como sinônimo da morte.

Portanto, uma intervenção psicanalítica com velhos implica a percepção de que faz parte da aventura de todo bom viajante ampliar um tanto mais sua bagagem, na medida em que isso se revele enriquecedor, utilizando todos os recursos que possam auxiliar em um trabalho de desmonte das resistências causadas pelos mitos associados à velhice, assim como o tratamento de conflitos existentes desde sempre, além da realização de um inventário onde se procura elaborar pendências, lutos e ganhos, ressignificando, na medida do possível, as formas de ser.

NOTAS
* Coordenadora Psicologia do Centro para Doença de Alzheimer - IPUB/UFRJ e Doutoranda Programa de Pós Graduação em Psiquiatria e Saúde Menta IPUB/UFRJ.
** Antropóloga, PhD, Professora do Instituto de Psiquiatria/UFRJ e professora visitante da Universidade Mc Gill, Montreal,Canadá.
1 Usamos o termo “construção social” como um ato de conscientização. Este separa idéias de objetos, ou seja, não nega, no nosso caso, o processo biológico heterogêneo do envelhecimento, mas tenta localizar as idéias sobre o envelhecimento dentro do espaço e do tempo (cf. Hacking, 1999).
2 Lembramos a discussão em torno da Miss Brasil 2002, que com 22 anos, teve 19 intervenções cirúrgicas antes da eleição para "modelar" o seu corpo. Esta plasticidade da imagem pode ser também percebida pelo consumo de "remédios de estilo de vida" como Prozac, Viagra ou Botox.
3 A corporalidade do idoso também é influenciada pelo gênero, idade, formação e até mesmo a religião.

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ABSTRACT
The contemporary culture considers specific representations of age, in a way to solve the social problem in that this changed. This article aims to think the inclusion of the psychoanalytic clinic in the reverberation caused by the cultural representations, the image and the ideals.

KEYWORDS
Aging; Culture; Psychoanalysis
Recebido em: 08/06/02
Aceito para publicação em: 26/09/02
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