ARTIGO 2


EM BUSCA DA PALAVRA CONECTADA, IN-CORPORADA: A INSERÇÃO DA PSICOTERAPIA CORPORAL NO CAMPO PSICOLÓGICO DOS ANOS 80
IN SEARCH OF THE EMBODIED WORD: THE INSERTION OF THE BODY PSYCOTHERAPY IN THE PSYCHOLOGICAL FIELD OF THE 80’S

Carlos Eduardo Melo Oliveira*

RESUMO

Dentre as abordagens da psicologia clínica, a psicoterapia corporal teve uma rápida e significativa expansão no decorrer dos anos 80, nos grandes centros urbanos brasileiros. Essa difusão deu-se nas brechas criadas pelo boom psicanalítico que, desde os anos 70, criava espaços para a formação de uma cultura psicológica entre as camadas médias de nossa sociedade.

Com base em O corpo contra a palavra, tese de Jane Russo (1991), busco traçar um breve histórico da constituição da psicologia clínica no Brasil e sua consideração inicial em torno da psicanálise, que ingressava no país através da psiquiatria, configurando o contexto de inserção da psicoterapia corporal nos anos 80 no Rio de Janeiro. A partir daí, descrevo brevemente a difusão das principais vertentes dessa abordagem (orgonomia, vegetoterapia, análise bioenergética, biossíntese, biodinâmica, psicologia formativa, análise psico-orgânica).

PALAVRAS-CHAVE:
Psicoterapia corporal; história da Psicologia

A psicoterapia corporal expandiu-se nos grandes centros urbanos brasileiros (particularmente no Rio de Janeiro e em São Paulo) ao final da década de 70, tendo rápida e significativa expansão no decorrer dos anos 80. Era, de certa forma, a expressão, dentro do campo psi, da difusão de uma série de práticas “alternativas” que atualizavam alguns dos anseios das expressões contraculturais dos anos 60.(1)

No rastro da difusão psicanalítica, os anos 80 assistiram à proliferação do que Robert Castel chama de ‘terapias pós-analíticas’, também conhecidas como terapias alternativas, dentre as quais se incluem as chamadas terapias corporais, derivadas em maior ou menor grau da teoria reichiana. Como o nome indica, são terapias psicológicas que têm como característica a inter- venção primordial sobre o corpo (...) o surgimento e a difusão das terapias corporais são, não exatamente uma decorrência do processo de difusão da psicanálise, mas um segundo momento do mesmo (...) a era ‘pós-psicanalítica’ marca não o fim da psicanálise, mas o fim do controle pela psicanálise do processo de difusão da cultura psicológica na sociedade (Russo, 1991,p. 5).

BREVE HISTÓRIA DA ARTICULAÇÃO DA PSICOLOGIA CLÍNICA COM A PSICANÁLISE NO BRASIL

A ARTICULAÇÃO DINÂMICA ENTRE A PSIQUIATRIA E A PSICANÁLISE DO INÍCIO DO SÉCULO XIX AOS ANOS 60 DO SÉCULO XX

Em 1832, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, capital do Império, surgiu a primeira cadeira destinada ao estudo dos “alienados”. Em 1841, foi fundado o primeiro hospício – o Pedro II, inaugurado por esse imperador em 1852 – com a intenção de separar os loucos e psicopatas dos demais doentes, antes reunidos na Santa Casa da Misericórdia. As freiras desta instituição continuariam na administração e no cuidado dos internos do hospício, com os médicos intervindo apenas esporadicamente, de acordo com a necessidade (Russo, 1991). Paulatinamente, houve um processo de medicalização da loucura. Em 1881, foi criada a cadeira de psiquiatria, desde o início em forte tensão com a de neurologia, devido às diferentes concepções e métodos de tratamento. As duas constituíam modelos incompatíveis da doença mental: de um lado, a psiquiatria remetia a uma “psicopatologia das paixões” e a um “terreno social patogênico”; de outro, a neurologia, que remetia ao organicismo que supunha a existência de uma lesão neurológica como base do distúrbio (Russo, 1991, p.71).

A psiquiatria lutava por afirmar-se, de modo a não ser englobada pela neurologia. É neste contexto que se insere a psicanálise no país, como teoria psíquica alternativa ao organicismo neurológico, e como mais um dentre os instrumentos da prática psiquiátrica: “os precursores da psiquiatria e da psicanálise se confundem” (Russo, 1991, p.74). Na psiquiatria, a psicanálise refletia o despontar da vertente alemã, de raízes mais filosóficas, em detrimento da doutrina francesa, mais organicista, que influenciara o primeiro catedrático brasileiro de psiquiatria. Evidencia-se, nesse primeiro momento, uma leitura particular da psicanálise, utilizada para a psiquiatria afirmar-se perante a neurologia.

Em 1927, foi fundada a Sociedade Brasileira de Psicanálise em São Paulo e posteriormente, no Rio de Janeiro, sendo ambas reconhecidas provisoriamente pela International Psycoanalysis Association (IPA) em 1929. A formação era restrita aos médicos psiquiatras, precursores e pioneiros da psicanálise no país.

Já nesse momento inicial de inserção, a psicanálise exercia um certo fascínio entre o público leigo, fazendo com que as palestras nas sociedades se tornassem verdadeiros acontecimentos sociais e uma das fontes inspiradoras do movimento modernista.

Começou a haver um questionamento do tipo de utilização da psicanálise por parte de alguns dos psiquiatras pioneiros, que justificavam uma intervenção moralizante sobre o comportamento de seus pacientes.

Freud vai desarticular a loucura do campo médico (...) devolve ao louco sua palavra (...) é preciso que ele fale para que se possa recuperar seu sentido. Para a psiquiatria, o delírio deve ser calado, silenciado, excluído da mente, porque é algo sem lógica e sem sentido. Para a psicanálise (...) é preciso que o indivíduo apreenda o sentido de seus sintomas para que ele o compreenda dentro da sua história. (...) É uma outra lógica que rege a psicanálise e que a tira do campo da patologia psiquiátrica e da medicina. (Nunes, apud Russo, 1991, p. 75).

Nas décadas de 40 (em São Paulo) e 50 (no Rio), se acirrou o debate em torno dos limites e demarcações que caracterizavam a prática da psicanálise e das condições que autorizavam seu praticante.

Uma cisão na sociedade carioca gerou a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), em 1955, e a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), em 1957, permanecendo ambas responsáveis pela quase totalidade da formação de novos psicanalistas na cidade até o final dos anos 60, aceitando ainda apenas candidatos médicos.

A psicanálise enquanto profissão não almejava tornar-se independente da medicina mas sim, fazendo parte da psiquiatria, dominá-la enquanto teoria (...) os psicanalistas ao se constituírem enquanto corpo, passam a pressionar a psiquiatria para que a mesma funcione como campo. As coisas porém não se passam necessariamente como desejariam os psiquiatras-psicanalistas. (Russo, 1991, p.80).

Como exceção na época, mas apontando um caminho que se descortinava, em 1953, uma psicanalista com formação nos Estados Unidos, Iracy Doyle, funda, no Rio de Janeiro, o Instituto de Medicina Psicológica, de linha culturalista, que passa a aceitar não-médicos em seu processo de seleção.

Em 1969, a partir de uma cisão na SPRJ, fundou-se o Instituto Brasileiro de Psicanálise (hoje, Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, sendo que, em 1978, uma nova cisão gerou o Círculo Brasileiro de Psicanálise). Aceitando não-médicos entre seus membros, esta instituição filiou-se à International Federation of Psychoanalitical Society (IFPS) – uma congregação de sociedades, fundada nos Estados Unidos em 1962, alternativa à IPA.

A EMERGÊNCIA DOS PSICÓLOGOS CLÍNICOS COMO PSICANALISTAS EM FINS DOS ANOS 60 E 70

Com a psicanálise ainda restrita aos médicos, assistiu-se na década de 60, a uma disputa pela hegemonia no interior da psiquiatria, entre psicanalistas e organicistas. Se, nos primórdios, a psicanálise foi utilizada pela psiquiatria em seu confronto com a neurologia, no início da década de 1970, a ocupação de posições de prestígio em instituições psiquiátricas por psicanalistas permitiu um reconhecimento cada vez maior da autonomia da psicanálise como um campo de saber específico. Esse reconhecimento permitiu uma reformulação gradativa do tratamento manicomial, contribuindo para experiências pioneiras como a das comunidades terapêuticas dos anos 70.

Um dos fatores de sustentação da hegemonia dos psicanalistas médicos nas instituições psiquiátricas era, justamente, a difusão da psicanálise aos não-médicos (sobretudo psicólogos, mas também assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e musicoterapeutas), levando alguns destes a desejarem ser psicanalistas.

O ensino universitário de psicologia começara, no Rio de Janeiro, em 1953, com um curso noturno na Santa Casa de Misericórdia em convênio com a PUC. Em 1956 passa a ser ministrado naquela universidade, com forte influência da psicanálise. Em 1962, é regulamentada a profissão. Nesta década ainda seriam criados os cursos na UFRJ e UERJ (1964), Gama Filho (1967) e Santa Úrsula (1968).

Concomitantemente à institucionalização dos cursos universitários de psicologia, os psicólogos, sem acesso às sociedades vinculadas à IPA, passam a fazer análise e grupos de estudo e supervisão com psicanalistas. Na década de 70, dois espaços institucionais dirigidos por psicanalistas associados à SPRJ concentravam um grande número de psicólogos: o Centro de Estudos de Antropologia Clínica (Cesac) e a Associação de Psicologia e Psiquiatria da Infância e Adolescência (Appia), (Russo, 1991, p.84).

Em meados dos anos 70, com o golpe militar na Argentina, vários profissionais da área psi vieram se exilar em nosso país. A maioria dos psicanalistas argentinos chegou propondo formas alternativas de trabalho e de inserção social: atendimento a famílias, comunidades, instituições, grupos sociais. Os psicólogos começaram a vislumbrar e delinear a possibilidade de se tornarem psicanalistas ou psicoterapeutas.(2) Assim, a formação psicanalítica, antes restrita aos médicos, estendeu-se aos psicólogos.

A CULTURA PSICOLÓGICA DOS ANOS 70

A cultura psicológica que se formou nos anos 70 propiciou à psicanálise um lugar que ultrapassava, em muito, o de uma simples abordagem terapêutica. Ela constituía um modus vivendi, tornando-se um dos fatores de identificação entre pessoas que começavam a valorizar e enfatizar noções como as de individualidade, autoconhecimento, criatividade, mudança (Russo, 1991, p.17 e 19).

Segundo Sérvulo Figueira, a expansão de práticas e saberes psi corresponde ao processo de esfacelamento da família extensa, tradicional, e ao desmapeamento daí resultante. Processo que expressa, no espaço familiar, as transformações pelas quais a sociedade brasileira vinha atravessando, no sentido de sua modernização, bem como a culminância desse processo e crise a partir da década de 70. “É da modernização acelerada da família e da sociedade brasileiras que surge uma demanda de mapa, de mapeamento que vem sendo suprida pelo psicologismo.” (Figueira apud Russo, 1991, p.33). Pelo lado das demandas da sociedade, havia uma solicitação, por parte de setores das camadas médias urbanas, de respostas a questões que, ou nem sabiam formular, ou não sabiam mais a partir de que referenciais respondê-las.

Assim, produz-se um desmapeamento no interior da família, onde tipicamente não se sabe (e mesmo não se deseja saber) o que é permitido/ proibido, certo/errado, bom/mau, os sujeitos tentando operar com base em princípios pessoais que dizem respeito à ordem do desejo, da fantasia, do impulso e do momento (Figueira apud Russo, 1991, p.32).

O desnorteamento gerado pela modernização foi radicalizado pela repressão política, acentuando, entre as camadas médias urbanas, o processo de individualização e a conseqüente psicologização que ela permite. Essa tendência à psicologização traduz o grande paradoxo da modernidade: a produção social da idiossincrasia e da individualidade como pilares básicos do mundo social.

(...) exatamente por ‘desfazer a ilusão individualista’ a psicanálise só é possível num universo que tenha seu valor central na categoria de indivíduo, pois só é aplicável em (ou mesmo objeto de demanda de) sujeitos que se constituíram a partir desta ‘ilusão’. (Russo, 1991, p.24).

Assim, o golpe militar de 64 acelerou o processo de transformação da família brasileira, no sentido de seu isolamento, pautado pelos sonhos de consumo particulares, “devido ao ‘milagre’ que abriu espaços de ascensão social nunca antes experimentados” (Russo, 1991, p.32). Os jovens da época, que desfrutavam passivamente do acesso aos bens de consumo decorrentes do “milagre” econômico, têm a possibilidade de perceber que falta algo nesse processo (...) Alguém que já nasceu assim – que se define não por um ter mas um ser. É nessa falha, tão estrutural quanto estruturante, que segundo nosso ponto de vista, uma ‘cultura psicológica’ encontra solo fértil para se desenvolver. (Russo, 1991, p.60)

Autenticidade, espontaneidade, autoconhecimento, liberação tornam-se os termos mais valorizados nesta “viagem ao centro de si mesmo” (Russo, 1991, p.64).


A DIFUSÃO LACANIANA E SUA TRANSMISSÃO RESTRITIVA NOS ANOS 80

No final dos anos 70, houve o surgimento de uma série de instituições de formação psicanalítica, não vinculadas à IPA, cuja clientela eram, basicamente, psicólogos.

“Mais do que a invasão argentina, a invasão francesa (lacaniana) instrumentalizou a ruptura do monopólio médico e da IPA do controle e transmissão do título de psicanalista.” (Russo, 1991, p.88). O início dos anos 80 foi o momento de maior proliferação: para se ter uma idéia, de 74 a 89, dezesseis sociedades foram criadas no Rio de Janeiro, quatro ligadas à corrente argentina, e dez à lacaniana (Russo, 1991, p.86). Esta difusão ocorreu no Brasil como um todo, mas o Rio de Janeiro destacava-se como, nas palavras de Joel Birman, “a capital do movimento psicanalítico da América Latina” (apud Russo, 1991, p.106).

A intensa difusão da psicanálise no meio não-médico e no público em geral, gerou, concomitantemente à ampliação do mercado, uma pressão sobre os psicanalistas-psiquiatras, que constituíam um corpo institucional restrito, para que funcionassem como um campo, em uma variedade de corpos.

Pierre Bourdieu define as noções de corpo e de campo, que caracteriza potencialmente todo agrupamento profissional (Russo, 1991). O campo é marcado pela dispersão, reunindo contradições internas e pode se organizar, dividindo-se em corpos que buscam limitar os conflitos em seu interior, guardando uma unidade de princípios e práticas que os diferenciam do exterior. Na constituição de um corpo, há a definição das regras de entrada e pertencimento.

Em geral, aqueles que resistem a faire corps exercem uma pressão para manter o campo. Na história das profissões psi no Brasil, há ciclos periódicos de delimitações de campo em corpos, rearticulações de campos e recriação de outros corpos.

Com a concorrência institucional, as sociedades vinculadas à IPA passam a admitir, em 1980, candidatos não médicos ao seu processo de formação. Só então começa a haver uma predominância feminina entre seus membros.

Por sua vez, o movimento lacaniano, ao mesmo tempo que confere uma consistente legitimação aos psicólogos, afirmando que “qualquer um pode ser psicanalista”, acirra as barreiras à difusão da psicanálise, contra-argumentando que, na realidade, “muitos poucos o sejam” (Russo, 1991, p.90).

Lacan propusera uma releitura do texto freudiano, enfatizando a análise pessoal no interior do processo formativo, definido como um processo de transmissão, inesgotável, valorizando uma forma de apreensão iniciática, que não facilita a difusão, antes pelo contrário, delimita-a: “A produção do analista não é, então, uma questão de vocação, nem de formação universitária, mas sim de análise.” (folheto de divulgação de escola lacaniana, apud Russo, 1991, p. 98 e 99).

A démarche lacaniana “democratizou” o acesso à formação de psicanalistas, cancelando a delimitação profissional imposta à pergunta: “quem pode ser psicanalista?”. Porém, circunscreveu-a àqueles que atravessavam seu percurso iniciático. Criou-se assim uma resposta à intensa difusão psicanalítica dos anos 70, contrapondo-se à popularização e vulgarização desta: “Só se entende e se fala de Lacan sendo lacaniano” (Russo, 1991, p.112).

Depois da ampliação do acesso profissional ao campo psicanalítico, restringiu-se a entrada e a permanência no corpo lacaniano, através da exigência do rigor, da erudição, do estudo e da produção teórica inter pares.

Um dos alvos preferidos da crítica lacaniana era a preocupação terapêutica da “psicanálise adaptativa”, referindo-se basicamente às influências da psicologia do ego americana. Liberando a psicanálise de qualquer concepção pragmático-funcional de tratamento, a “cura” remete somente ao interior do campo psicanalítico.

O lacanismo foi um dos caminhos pelo qual enveredaram os profissionais ‘psi’ a partir da ‘explosão psi’ dos anos 70 (...) visando substituir a popularização da psicanálise por uma difusão mais seletiva, através de canais legitimados pelo campo intelectual (...) passa a exigir um grau de sofisticação e requinte dos que querem praticar a psicanálise (como paciente, mas especialmente como analista) que afasta os ‘recém-chegados’ ao campo e tem como intenção evidente atrair os mais bem dotados em termos de capital cultural. É nesse momento (e nessa brecha) que se expandem e difundem as terapias corporais (Russo, 1991, p.65).

A INSERÇÃO DAS ABORDAGENS DA PSICOTERAPIA CORPORAL NO CAMPO PSICOLÓGICO DOS ANOS 80

BREVE APRESENTAÇÃO DA PSICOTERAPIA CORPORAL E SUAS ABORDAGENS(3)

Nos 18 anos de vivência, formação e prática clínica na área da psicoterapia corporal, não me deparei com uma postura contrária ao “verbo”. Havia uma reação a um tipo de discurso que corria o risco de propiciar uma racionalização excessiva, um intelectualismo dissociado e defensivo. Buscava-se redirecionar a palavra a partir do contato com as próprias percepções e sensações, afetos e sentimentos. Com a proposta de trabalhar a partir da unidade psicossomática, a psicoterapia corporal integra à palavra uma outra via de acesso às expressões do inconsciente e das experiências arcaicas do infantil humano. Muitas dessas experiências não podem ser expressas através da linguagem, por serem préverbais, algumas permanecendo não-verbais. A oposição que Russo estabelece em O corpo contra a palavra não me parece, assim, apropriada. A autora ressalta:

o anti-intelectualismo leva-os a privilegiar a emoção, a sensação e a intuição. Se o lacanismo se caracteriza por sua ênfase no texto, na palavra, os "alternativos"vão buscar no corpo seu ponto de inflexão. (Russo, 1991, p.114).

As terapias corporais surgem como parte do “complexo alternativo” dos anos 70, cujas raízes remontam aos movimentos contraculturais da década de 60. No interior deste “complexo”, há um entrecruzamento de domínios, uma certa indeterminação de fronteiras, uma vez que se defende uma abordagem mais integral do ser humano, em contraposição ao radical dualismo racionalista cartesiano que criou as bases da modernidade ocidental, ora em crise.

Dentro do “complexo alternativo” (incluindo, por exemplo, práticas como homeopatia, acupuntura, astrologia, alimentação natural etc.), podemos destacar o conjunto de técnicas de terapia corporal. Interessa-nos focar, dentre estas, as abordagens propriamente psicoterapêuticas:

estamos lidando com terapias psicológicas, isto é, terapias que fazem parte do campo psi e que constituem o que Castel denomina ‘ a pós-psicanálise’ (...)

A negação da dualidade corpo/mente (...) torna corporais terapias psicológicas (...)

Fronteiras tradicionais (tanto para a medicina quanto para a psicologia ‘Oficiais’) entre corpo e mente deixam de nortear o trabalho terapêutico. (Russo, 1991, p.122).

No campo da psicoterapia corporal, Wilhelm Reich é a referência fundadora. Psicanalista da Sociedade de Viena desde 1919, coordenou os seminários de terapia psicanalítica entre 1924 e 1930. Inovava como Ferenczi por dirigir sua atenção aos fracassos terapêuticos, casos que propunha estudar (Reich, 1972). Em 1928, tornou-se membro do Partido Comunista, sendo expulso deste em 1933, e no ano seguinte, da IPA. Duas razões são apontadas para estes episódios. De um lado, o não interesse em associar a psicanálise ao comunismo, em um momento em que se assistia à ascensão do nazi-fascismo. De outro, as divergências teóricas de Reich em relação ao, desde então, polêmico conceito freudiano de pulsão de morte.

Desde a década de 20, a ênfase dada por Reich (1983) à função do orgasmo
como elemento de “regulação bioenergética” e na técnica da análise do caráter encontrava discordâncias entre seus colegas psicanalistas. A ruptura definitiva eclodiu quando afirmou a identidade funcional entre psiquê e soma, assinalando a correspondência entre a couraça caracterial psíquica e a couraça muscular somática.

Afastando-se cada vez mais da psicanálise, fez um périplo pelos países nórdicos (Dinamarca, Suécia, Noruega), até chegar aos Estados Unidos, onde desenvolveu sua concepção energética e elaborou a orgonoterapia.

Após sua morte, Reich teve sua obra retomada, particularmente seu trabalho
clínico, pela geração de 68. A energia, à qual dedicou tantos estudos, torna-se “uma espécie de passe par tout da weltanschauung alternativa”. (Russo, 1991, p.133).

As abordagens da psicoterapia corporal tiveram intensa difusão na Europa Ocidental ao longo dos anos 70 e 80, tendo a técnica de Reich mais como referência inspiradora do que um modelo a seguir. Foi criada uma série de abordagens neo-reichianas, tendo em comum a crença básica de que a história da pessoa está inscrita em seu corpo, que seus conflitos psíquicos são expressos através da diversidade das manifestações somáticas. Há uma idéia recorrente sobre a necessidade de liberação da energia retida, reprimida.

A abordagem neo-reichiana que em um primeiro momento mais se difundiu foi a análise bioenergética de Alexander Lowen (1982). Antigo cliente e aluno de Reich, Lowen adotou uma postura independente, discordando da ênfase reichiana na obtenção do reflexo do orgasmo. Achava exagerado o foco extremamente direcionado à sexualidade e propunha um reencontro prazeroso e proveitoso com o próprio corpo, numa aventura em direção à percepção, consciência, e expressão de si.

Entre nós, além da orgonomia e a vegetoterapia-caracteroanalítica reichianas, e a bioenergética, difundiram-se a biodinâmica de Gerda Boyesen (1986) e a biossíntese de David Boadella (1992). Mais recentemente, já na década de 90, introduziu-se a psicologia formativa de Stanley Keleman (1992, 1994) e, nos últimos anos, a análise psico-orgânica de Paul Boyesen (1986).

TRÊS MOMENTOS DA DIFUSÃO DAS PRINCIPAIS VERTENTES DA PSICOTERAPIA CORPORAL NO RIO DE JANEIRO

Assim, a psicoterapia corporal, que emerge no rastro da difusão psicanalítica
dos anos 70, participa deste processo introduzindo uma diversificação ainda maior. Seu surgimento se dá, no país, nos dois principais centros urbanos. Em São Paulo, nos anos de 1975 e 76, através de José Ângelo Gaiarsa e de Roberto Freire. No Rio de Janeiro, forma-se um primeiro núcleo de pioneiros, em 1977 e 78, em torno de David Boadella, que vem à cidade coordenar um workshop.

A partir deste núcleo, aglutinam-se, inicialmente, três grupos principais: um, mais voltado para o trabalho reichiano propriamente dito, se reuniria no Centro de Investigação Orgonômica (CIO); outro formado por Eliane Siqueira e Sandra Guimarães, se associaria à análise bioenergética e um terceiro, coordenado por Esther Frankel e Vânia Didier, se vincularia à biossíntese.(4)

Este primeiro momento, entre o final dos anos 70 e o início dos 80, pode ser caracterizado como de um “ecletismo inclusivo”, conforme denomina Jane Russo, em que a dispersão e a fluidez convivem com uma tolerância mútua, com definições precárias, até mesmo desnecessárias, uma vez que havia espaço para todos (Russo, 1991, p.144).

Desde o início, havia uma grande valorização da prática em relação à teoria, acentuando o aspecto experiencial da transmissão do conhecimento. Os treinamentos, primando pelo ecletismo, baseavam-se mais na relação pessoal com os pioneiros, tendo na empatia o principal fator de escolha mútua entre candidatos e coordenadores.

Destacava-se, também, naquele momento, a convivência pacífica, às vezes estreita, com a psicanálise, na medida em que vários psicanalistas tornaram-se clientes do grupo de pioneiros.

Em um segundo momento, ocorreu um movimento preliminar de institucionalização e de delimitação, um pouco mais clara, entre as distintas abordagens.

Em 1983, surge a primeira instituição reichiana, o Centro de Investigação Orgonômica (CIO), com um programa de treinamento definido nos moldes das sociedades psicanalíticas (curso de formação, psicoterapia e supervisão), modelo que, na verdade, espalhou-se por toda a área psicoterapêutica.

Os dois outros grupos, se ainda não se institucionalizaram nesse momento, tornaram-se mais visíveis e diferenciados, enfatizando as articulações com os institutos internacionais da bioenergética e da biossíntese, promovendo workshops com seus didatas, valorizando suas qualidades particulares mais do que a fluidez anterior.

Começou a se esboçar a transformação do campo difuso em corpos mais definidos. Pouco a pouco, foi-se abandonando a ênfase na complementariedade entre as abordagens, para acentuarem-se as diferenças, na defesa de suas especificidades.

Embora diminuindo-se os fluxos entre os distintos grupos, um grupo independente permaneceu mantendo articulações entre os corpos institucionais em formação no campo da psicoterapia corporal.

As novas abordagens despertavam a curiosidade de todos. Por exemplo, embora a biodinâmica de Gerda Boyesen seja uma das influências da biossíntese, neste período, a vinda de um membro do instituto inglês atrai alguns profissionais ligados aos distintos grupos. Algumas novas técnicas vão sendo incorporadas, sem no entanto afetarem as dinâmicas de institucionalização desses grupos.

Bem diferente foi o impacto da chegada do psiquiatra italiano Federico Navarro, que vinha introduzir a vegetoterapia caractero-analítica, uma abordagem reichiana, sistematizada por Ola Raknes e formalizada pelo próprio Navarro (1993).

Chegando em um momento de crise entre as coordenadoras do grupo associado à bioenergética, que acabam por tomar rumos distintos (no grupo da biossíntese ocorreria o mesmo, as coordenadoras separando-se, uma mantendo-se no caminho institucional e outra, independente), Navarro consegue aglutinar em torno de si um significativo número de terapeutas, fundando o Instituto de Orgonomia Ola Raknes. Seu prestígio, como expoente do pensamento reichiano, e seu discurso cientificista tinham forte poder de atração, enquanto sua agressividade em relação às demais correntes impulsionava um movimento de defesa e diferenciação explícitas.

O impacto de sua chegada e os rearranjos que provocou marcaram, assim, um terceiro momento na dinâmica deste campo, de ampla institucionalização e acirramento das diferenças.

Por ocasião da visita de Alexander Lowen ao Brasil, em novembro de 1989, Navarro promoveu uma palestra com o intuito de explicitar as divergências entre a sua abordagem e a bioenergética. Carlos Ralph, um dos principais divulgadores das terapias corporais e das abordagens reichianas no país, responsável pela publicação da revista Rádice (um marco no meio psi dos anos 70) e organizador dos concorridos Ciclos Reich, escreveu uma carta aberta em resposta, divulgando-a entre todos os grupos. Exemplo de profissional que se manteve ao largo do processo de institucionalização (defendendo a manutenção do campo, diante da demarcação dos corpos), afirmava que o Brasil situava-se entre os países onde as técnicas das terapias de base corporal são mais estudadas e difundidas. Valorizando a capacidade de aglutinação e miscigenação de nossa cultura, defendia a utilização integrada e não ortodoxa de recursos da vegetoterapia, da bioenergética, da cultura hindu (o yoga e a teoria dos chakras), da chinesa (o tai-chi-chuen e os meridianos da acupuntura), da tibetana (o kum nye e a meditação).

Essa manifestação talvez tenha sido, no alvorecer da década de 90, o último momento do canto da tolerância e da conciliação das diferenças, pelo menos durante alguns anos. Incentivados pela atração gerada pela sistematização metodológica da vegetoterapia – em contraposição ao “trabalho a partir do emergente”, com ênfase na relação terapêutica característica das demais, todas as abordagens criaram instituições representativas de sua concepção e forma de trabalhar, associadas a instituições internacionais.

O grupo associado às pioneiras que haviam se vinculado à análise bioenergética – o qual acompanhei mais de perto – sofreu uma dispersão pela separação das duas coordenadoras. Estas acabaram se aproximando de práticas corporais oriundas direta ou indiretamente do Oriente, com ênfase nos aspectos meditativos, e sua inserção no setting psicoterapêutico. Tal percurso foi acompanhado por parte deste grupo, agregando as experiências do healing e do kum nye, ao trabalho que já desenvolviam. Outros evadiram-se para a vegetoterapia.

Doze profissionais deste grupo manteviveram o processo de institucionalização, que vinha em andamento, formalizando-se, em 1992, a Sociedade de Análise Bioenergética do Rio de Janeiro (Saberj), filiada ao International Institute of Bioenergetic Analysis (IIBA), com sede em Nova York. Um fator de aglutinação da Saberj foi a inauguração de sua clínica social em 1996, oferecendo atendimentos de acordo com a capacidade de pagamento e propiciando supervisão gratuita aos terapeutas.

Antes desta, o Projeto Ponte do Quiron – Centro de Estudos e Práticas Transsomáticas – tinha atuado de forma similar. O Quiron formou-se a partir de integrantes do grupo associado à biossíntese que se desligariam do caminho de vinculação internacional, formalizado com a criação do Instituto Brasileiro de Biossíntese. As duas pioneiras dividiram-se entre estes dois caminhos, cada qual seguindo um deles.

Em meados dos anos 90, novos movimentos. O Instituto de Navarro dividiu-se e, posteriormente, o grupo fundador da Saberj também. Paralelamente, foi inaugurado o Centro de Psicologia Formativa, abordagem desenvolvida por Stanley Keleman, sob coordenação de Leila Kohn, e o de Análise Psico-orgânica, de Paul Boyesen, coordenado por Silvana Sacharny.

A partir desse período, pode-se perceber um contingente significativo de psicoterapeutas corporais provenientes de distintas formações resgatarem, na psicanálise, um espaço de reflexão, análise (buscando um espaço de tratamento menos contaminado pelos relacionamentos interpares), ou supervisão, enfatizando os aspectos psicodinâmicos.

Um destes espaços de articulação que surgiu foi o Centro de Estudos de Psicanálise e Técnicas Reichianas, criado por Giovani Gangemi, em meados da década. Psiquiatra, Giovani fora membro do Círculo Psicanalítico, participara do grupo associado à bioenergética (co participando da coordenação no momento da ruptura entre as pioneiras), formara-se e lecionara no instituto de Navarro. Era portanto, uma referência no campo. Diante do risco de excessiva ênfase na técnica que a vegetoterapia trouxera, propunha uma retomada da psicodinâmica, através dos estudos de psicanalistas como Klein, Winnicott, Fairbain, além do próprio Freud.

Outros espaços de articulação apontavam para o estudo de outros autores clínicos da psicanálise tais como: Ferenczi, Winnicott, Dolto, Tustin, Haag, Kristeva.

Entre estes grupos e transmutações de campo em corpos, que geram novos corpos, que rearticulam o campo, permanece um contigente de psicoterapeutas independentes, que buscam o conhecimento que lhes parece relevante, alguns alheios a instituições, outros no interior destas, mas próximos àqueles, numa abertura ao diferente, buscando conciliar consistência teórica com a atualização de sua prática clínica.

FINALIZANDO

Nesse breve percurso histórico, procurei contextualizar a inserção da psicoterapia corrporal no campo psicológico dos anos 80 e o processo de difusão de suas diferentes abordagens ao longo dos anos 90.

Contrariamente à tese de Jane Russo (1991), não compartilho a idéia de caracterizar a psicoterapia corporal pela oposição entre corpo e palavra. Destaco, sim, a valorização da vivência experiencial na constituição dos alicerces para uma nova perspectiva da inter-relação entre corpos e mentes, permeados de afetos, que se comunicam através de linguagens verbais e não verbais. Atualmente procuro aprofundar essas articulações no projeto de doutorado “Psicorporeidade e intersubjetividade: mudanças paradigmáticas no campo da cultura e da clínica”, em desenvolvimento no IMS/UERJ.

NOTAS
* Doutorando do Instituto de Medicina Social da UERJ, Mestre em Clínicas pela COPPE/ UFRJ, Psicólogo clínico, Psicoterapeuta corporal e em EMDR, com estudos em psicanálise.
1 Sobre a contracultura recomendo: Roszak, 1972; Pereira, 1981; Coehn-Bendit, 1987; Ventura, 1988.
2 Podemos observar essa influência argentina também em algumas expressões do "movimento pelo potencial humano" e das terapias corporais. Por exemplo a associação, em 1978, do Grupo Coringa (coordenado pela dançarina e coreógrafa Graciela Figueroa, uruguaia) com o Instituto Río Abierto para el desarollo del hombre, fundado e dirigido pela psicóloga argentina Maria Adela Pálcos de Plante.
3 Aprofundo esta apresentação em Oliveira, 2003 (no prelo).
4 A descrição a seguir está delimitada pela experiência pessoal do autor. Outros estudos complementares podem aprofundar a análise das instituições mencionadas, bem como a contribuição de vários atores fundamentais na consolidação desse campo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOADELLA, D. Correntes da vida. São Paulo: Summus, 1992.
BOYESEN, G. Entre psiquê e soma: introdução à psicologia biodinâmica. São Paulo: Summus, 1986.
COEHN-BENDIT, D. Nós que amávamos tanto a revolução. São Paulo: Brasiliense, 1987.
KELEMAN, S. Realidade somática, experiência corporal e verdade emocional. São Paulo: Summus, 1994.
LOWEN, A. Bioenergética. São Paulo: Summus, 1982.
NAVARRO, F. Metodología de la vegetoterapia-caracteroanalítica. Valencia: Publicaciones Orgón, 1993.
PEREIRA, C. A. M. Retrato de época: poesia marginal, anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.
REICH, W. A função do orgasmo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
ROSZAK, T. A contracultura. Petrópolis: Vozes, 1972.
RUSSO, J. A. O corpo contra a palavra: as terapias corporais no campo psicológico dos anos 80. Tese de doutorado em Antropologia Social, Rio de Janeiro, PPGAS-Museu Nacional/ UFRJ,UFRJ,1991.
VENTURA, Z. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

ABSTRACT

The body psycotherapy had significant expansion in the 80s in great brazilian urban centers. It was an expression, inside of the psycological field, of the diffusion of practical alternatives that brought up to date some contracultural manifestations from the 60`s. This diffusion took place besides the psychoanalytic boom of the 70`s, which permit the formation of a psychological culture in the middle class of society. Supported uppon O corpo contra a palavra (The body against the word), Jane Russo`s (1991) thesis, this article trace a historical briefing of the constitution of the clinical field of psychology. The diffusion of the psychoanalysis in the country configures the emergence of the body psycotherapy in the 80`s, in Rio de Janeiro. Based in my personal experience in this field, there is a briefly description of the diffusion of this psychotherapy approach in its main sources (orgonomy, vegetotherapy, bioenergetical analysis, biosynthesis, biodynamics, formative psychology).

KEYWORDS:
Body psychoterapy; Psychology history
Recebido em: 15/08/01
Aceito para publicação em: 03/06/02
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