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Problemas de aquisição de leitura e escrita: Efeitos de déficit de discriminação fonológica, velocidade de processamento e memória fonológica

Reading and writing acquisition problems: Assessing the involvement of cognitive deficits pertaining to phonological discrimination, processing speed, and phonological memory


Fernando C. Capovilla*

Alessandra G. S. Capovilla**

 

Resumo

O sucesso na compreensão, avaliação e tratamento de distúrbios depende de modelos teóricos robustos, testados experimentalmente. Três modelos competem para explicar problemas cognitivos na aquisição de leitura-escrita, atribuindo-os a distúrbios de: discriminação fonológica, memória fonológica, ou velocidade de processamento. Neste estudo testou-se o efeito dos três fatores. Após avaliar habilidades de leitura de 103 escolares de 1a. e 2a. séries de ensino público, compararam-se 16 bons leitores (+1dp) e 16 maus (-1dp) em discriminação, memória e velocidade numa tarefa de julgar pares de sílabas ouvidas como iguais ou diferentes. Maus leitores de 1a. série apresentaram maior dificuldade em discriminar entre sílabas sutilmente diferentes (discriminação fonológica pobre), sendo a dificuldade maior com intervalos entre sílabas muito curtos (baixa velocidade de processamento) ou muito longos (memória fonológica pobre). Os resultados corroboram a Hipótese do Déficit Fonológico para explicar problemas de leitura-escrita, sugerindo eficácia de procedimentos educacionais e clínicos nela baseados.

Palavras-Chave:

Leitura, dislexia, fonologia

A natureza dos distúrbios subjacentes a problemas de leitura e escrita tem sido objeto de estudos de uma série de teorias, sendo a mais antiga delas a Hipótese do Déficit Visual (Ajuriaguerra, 1953, Orton, 1937), segundo a qual problemas de leitura e escrita devem-se a dificuldades com o processamento de padrões visuais. Tal hipótese dominou o cenário da Psicopedagogia nos 40 anos seguintes à sua formulação. Entretanto, a partir da década de 1970, evidências negativas com respeito à primazia do envolvimento do processamento visual começaram a acumular-se, ao mesmo tempo que uma nova série de estudos começou a revelar a importância do processamento fonológico para a aquisição da leitura e da escrita (e.g., Shankweiler & Liberman, 1972; Vellutino , Steger; Deseto, 1975; VELLUTINO ET AL. , 1977).

A década de 1970 marcou a substituição da Hipótese do Déficit Visual pela Hipótese do Déficit Fonológico, que foi corroborada por um crescente número de pesquisas demonstrando que dificuldades fonológicas (com a percepção e o processamento automáticos da fala) e metafonológicas (com a percepção e o processamento propositais da fala) são capazes de predizer dificuldades ulteriores na aprendizagem da leitura e escrita, e que procedimentos de intervenção voltados ao desenvolvimento de habilidades metafonológicas (especialmente procedimentos de treino de consciência fonológica) são capazes de produzir ganhos significativos importantes em leitura e escrita (Bradley ; Bryant, 1983; Byrne, Freebody, ; Gates, 1992; Capovilla ; Capovilla, 2000b; Cunningham, 1990; Elbro, Rasmussen, ; Spelling, 1996; Lie, 1991; Lundberg, Frost, ; Petersen, 1988; SchneiderET AL., 1997; Torgesen ; Davis, 1996, Vandervelden ; Siegel, 1995).

Ao final do século XX, o Brasil incorporou-se ao contexto internacional na área, a partir de uma série de estudos de intervenção voltados ao desenvolvimento da consciência fonológica e ao ensino das correspondências entre grafemas e fonemas que demonstraram grande sucesso em elevar significativamente os níveis de leitura e escrita de escolares do ensino fundamental privado (Capovilla & Capovilla, 1999) e público (Capovilla & Capovilla, 2000a) que apresentavam atrasos substanciais, sendo tal eficácia observada mesmo em se tratando de escolares com severos distúrbios motores e de fala, como na paralisia cerebral (Capovilla,ET AL. , 1998). Do ponto de vista teórico, tais estudos corroboraram a Hipótese do Déficit Fonológico no português brasileiro, ao mesmo tempo  que, do ponto de vista prático, apontaram um caminho certo para prevenir e tratar atrasos de leitura e escrita nos contextos educacional e clínico.

Numa perspectiva ampla, a nova hipótese sugeria o envolvimento desses distúrbios fonológicos numa série de dificuldades características dos maus leitores como, por exemplo, o rebaixamento de desempenho nos subtestes de Dígitos (Repetição de Números), Informação, Código e Aritmética do WISC (Wechsler, 1984). Tal perfil clássico, conhecido como DICA, já vinha sendo apontado como característico dos maus leitores (Kaufman, 1981, Sattler, 1988, Spafford, 1989), embora os processos subjacentes ainda fossem obscuros. De fato, segundo Nicolson ; Fawcett (1994), distúrbios fonológicos poderiam explicar o rebaixamento nos subtestes de Dígitos e de Informação. Enquanto o primeiro seria decorrente de um distúrbio no armazenamento fonológico devido a deficiências nas representações lexicais (Elbro, 1998), o segundo seria devido a baixo vocabulário e a dificuldades em extrair informações do texto. Porém, o rebaixamento nos subtestes de Código e Aritmética não poderiam ser bem explicados apenas pela Hipótese do Déficit Fonológico. Outros distúrbios parecem estar subjacentes a tais dificuldades. Miles (1983) relaciona o baixo desempenho em Aritmética a uma dificuldade em aprender associações (relacionar o número ao seu nome e valor, ou memorizar resultados de operações básicas). Já o subteste de Código estaria relacionado à velocidade de processamento não-lingüístico.

Atualmente há vastas evidências de que maus leitores têm desempenhos inferiores em memória de trabalho, consciência fonológica, discriminação de fonemas, velocidade e precisão de acesso léxico (Olson, 1992), e de que, além disso tudo, apresentam freqüentemente, ainda, baixa velocidade de processamento cognitivo geral. Diversos modelos teóricos têm buscado determinar os fatores que poderiam subjazer a tais dificuldades. Conforme a breve revisão a seguir, têm sido apontados principalmente os distúrbios em: a) problemas com a percepção da fala ou discriminação fonológica insuficiente; b) problemas no processamento seqüencial de estímulos apresentados rapidamente ou com curtos intervalos; c) problemas no processamento de informação sob alta demanda sobre a memória de trabalho; e d) problemas na memória de longo-prazo.

Na abordagem apontando problemas específicos com a percepção da fala ou discriminação fonológica insuficiente, uma série de estudos sugere uma dissociação entre as dificuldades fonológicas e as não-lingüísticas dos disléxicos. Por exemplo, Morais, Cluytens e Alegria (1984) demonstraram que disléxicos apresentam dificuldades em subtração fonêmica, mas não na subtração da primeira nota de uma série de notas musicais. Segundo Morais (no prelo), problemas de percepção da fala (discriminação fonológica) dificultariam o desenvolvimento da consciência fonêmica, acarretando problemas com a decodificação grafo-fonêmica e a codificação fono-grafêmica, que constituem a essência da leitura e da rescrita pela rota fonológica. Mody, Studdert-Kennedy e Brady (1997) também defendem a hipótese de um distúrbio de discriminação fonológica (de percepção da fala). Tais autores demonstraram que maus leitores têm desempenhos inferiores em discriminação e julgamento da ordem temporal de sílabas apresentadas quando essas sílabas são foneticamente semelhantes entre si e quando o intervalo entre elas é pequeno. Mais precisamente a importância de tal estudo consiste em demonstrar que a dificuldade dos maus leitores estaria na identificação de categorias de sons da fala foneticamente similares entre si, mais do que no julgamento da sua ordem temporal ou no processamento de breves mudanças acústicas.

Na abordagem apontando a lentidão de processamento cognitivo serial, Tallal, Miller ; Fitch (1993) sugerem que os maus leitores apresentam dificuldade com o processamento de estímulos apresentados em rápida sucessão, com curtos intervalos entre estímulos. Tal dificuldade não seria limitada ao processamento fonológico, já que inclui estímulos auditivos de dois tipos, tanto os lingüísticos quanto os não lingüísticos. Estudiosos como Nicolson ; Fawcett (1994) e Share (1995) corroboram tal hipótese e arrolam uma série de evidências de que disléxicos apresentam um processamento geral mais lento do que o de normoléxicos de mesma idade.

Na abordagem apontando a insuficiência na memória de trabalho, há evidência de que a maior lentidão de processamento dos disléxicos parece ocorrer apenas quando a sua memória de trabalho encontra-se sobrecarregada. Por exemplo, em seu estudo, Gerber (1996) demonstrou que bons leitores desempenham-se melhor que maus leitores na recuperação de itens fonologicamente similares, mas apenas quando os estímulos são em número suficientemente grande para sobrecarregar a memória de trabalho. Do mesmo modo, Swanson, Ashbaker; Lee (1996) demonstraram que maus leitores apresentam desempenhos lingüístico e visuo-espacial inferiores aos dos bons leitores, mas apenas desde que haja forte demanda sobre a sua memória. Tais resultados sugerem que as dificuldades dos maus leitores não são limitadas ao material lingüístico, mas também englobam material visuo-espacial sempre que uma alta demanda for colocada sobre a sua memória de trabalho.

Na abordagem apontando problemas com a memória de longo-prazo, as dificuldades dos maus leitores estariam no estabelecimento de representações fonológicas precisas na memória de longo prazo. Para Elbro (1998), tais representações das palavras ouvidas estariam armazenadas de forma pouco precisa na memória, de modo que uma representação acabaria sendo pouco distinta das representações fonemicamente semelhantes. Isto acarretaria dificuldades em uma série de habilidades, tais como as de discriminação, nomeação, memória de trabalho e consciência fonológica.

Portanto, há uma variedade de teorias que buscam explicar os problemas básicos dos maus leitores. Algumas enfatizam problemas com a percepção da fala (ou discriminação fonológica); outras enfatizam deficiências na velocidade de processamento serial de informação; outras, ainda, deficiências de processamento sob alta demanda sobre a memória de trabalho; e outras, finalmente, problemas na estocagem e recuperação de informação fonológica na memória de longo-prazo. Uma idéia importante e bastante difundida é a de que tais fatores não precisam ser mutuamente excludentes, mas podem encontrar-se combinados de um ou outro modo nos maus leitores. Assim, a causa subjacente às dificuldades dos maus leitores não precisaria ser um fator único, mas poderia ser um compósito de fatores, cuja articulação poderia ser responsável pelos atrasos e distúrbios observados no desempenho dos maus leitores. Experimentos críticos deveriam ser delineados para cruzar os diferentes fatores, de modo a permitir descobrir interações entre eles capazes de revelar efeitos interessantes, revelando sob que condições um fator seria efetivo ou deixaria de sê-lo.

Buscaram-se testar, aqui, em um único delineamento, três das hipóteses explanatórias dos distúrbios de leitura e escrita: A de que derivam de distúrbios de discriminação fonológica (percepção da fala), de problemas de memória de trabalho fonológica, ou de um retardamento na velocidade de processamento de informações (no presente caso, de processamento fonológico). O estudo implementou uma tarefa de julgamento de identidade ou de diferença entre sílabas ouvidas, manipulando o tipo de diferença entre as sílabas e a duração do intervalo entre elas. Escolares de 1a. e 2a. série ouviam pares de sílabas ora iguais (uma mesma sílaba), ora diferentes ( duas sílabas), e sua tarefa era discriminar se as sílabas do par eram iguais ou diferentes. O objetivo era verificar a existência de diferenças entre bons e maus leitores no julgamento dos pares ( se a percepção da fala dos maus leitores seria inferior à dos bons leitores), se tais diferenças interagem com o tipo de par apresentado (se a desvantagem dos maus leitores seria maior quando houvesse pouca diferenciação fonética entre as sílabas), e se tais diferenças interagem com a duração do Intervalo Entre Estímulos IEE (se a desvantagem dos maus leitores seria maior quando as sílabas fossem apresentadas com IEEs suficientemente curtos para sobrecarregar a velocidade de processamento fonológico, ou suficientemente longos para sobrecarregar a memória de trabalho fonológica).

A ausência de interação entre o nível de leitura (, bons e maus leitores) e a duração dos IEEs (curtos, médios, longos) sugeriria que a dificuldade dos maus leitores seria apenas de discriminação fonológica (a percepção da fala). Neste caso de ausência de interação, seria esperado que a percepção da fala pelos maus leitores fosse sempre inferior à dos bons leitores, independentemente da velocidade de processamento em IEEs muito curtos, ou da memória fonológica em IEEs muito longos. Porém, se o nível de leitura interagisse com a duração do IEE, isto sugeriria a presença de envolvimento dos fatores adicionais de velocidade de processamento (neste caso, seria esperada uma queda de desempenho em julgamentos com IEEs muito curtos) ou de memória fonológica (neste caso, seria esperada uma queda de desempenho em julgamentos com IEEs muito longos). Assim, havendo interação entre nível de leitura e duração de IEE, se os maus leitores fossem pior em IEEs muito curtos, isto sugeriria que sua dificuldade está relacionada à sobrecarga de velocidade de processamento de informação (i.e., informação seqüencial rápida, com IEEs curtos). Já se os maus leitores fossem pior em IEEs muito longos, isto sugeriria que sua dificuldade está relacionada à sobrecarga da memória de trabalho.

Método

Participantes

Participaram do estudo 103 crianças de 1a. e 2a. séries do ensino fundamental público da cidade de Marília, SP.

Materiais

Foram empregados o Teste de Competência de Leitura Silenciosa (Capovilla, Capovilla, Macedo ; Duduchi, 2000b; Capovilla, et al, 1998) e o Teste de Discriminação Fonológica Computadorizado (Capovilla & Capovilla, no prelo), implementado em microcomputador notebook Pentium 100 MHz.

O Teste de Competência de Leitura Silenciosa é inspirado no paradigma geral esboçado por Khomsi (1997) e aperfeiçoado por Braibant (1997). Trata-se de um instrumento psicométrico que, acompanhado de tabelas de normatização, permite avaliar o grau de desvio de cada criança em relação às normas de seu grupo de referência, em relação à idade e à escolaridade. Trata-se também de um instrumento neuropsicológico cognitivo que permite interpretar os dados da criança em termos de modelos do desenvolvimento de leitura e escrita (Capovilla ; Capovilla, 2000b), e inferir a fase de desenvolvimento em que ela se encontra e as estratégias de leitura que prevalecem em seu desempenho. Consiste em oito itens de treino e 70 itens de teste, cada qual composto de uma palavra ou pseudopalavra escrita logo abaixo de uma figura (par figura-escrita). A escrita aparece em letras maiúsculas para permitir manipular o efeito de similaridade visual. A tarefa da criança é marcar com um X os pares figura-escrita incorretos. Há sete tipos de pares figura-escrita, dois tipos corretos e cinco tipos  incorretos, todos distribuídos aleatoriamente ao longo das tentativas, com dez pares de teste para cada tipo. São eles:

1) Palavras corretas grafofonemicamente regulares como, por exemplo, a palavra escrita fada sob a figura de uma fada. Outros exemplos: batata, tomada, buzina, mapa, pijama, maiô, boné, menina, pipa;

2) Palavras corretas grafofonemicamente irregulares, como a palavra táxi sob a figura de um táxi. Outros exemplos: xadrez, calças, agasalho, tesoura, pincel, exército, princesa, exercício, bruxa;

3) Palavras incorretas semanticamente, como a palavra trem sob a figura de um ônibus. Outros exemplos: cachorro (sob figura de camundongo), rosa (sob árvore), sofá (casa), cobra (peixe), rádio (telefone), avião (águia), maçã (morango), chinelo (sapato), sorvete (bombom);

4) Pseudopalavras (incorretas) com trocas visuais, como caebça sob a figura de uma cabeça. Outros exemplos: gaio (gato), fêra (pêra), crianqas (crianças), teieuisão (televisão), cainelo (chinelo), jacapé (jacaré), paroue (parque), esterla (estrela), cadepmo (caderno);

5) Pseudopalavras (incorretas) com trocas fonológicas, como cancuru sob a figura de um canguru. Outros exemplos: faca (vaca), hapelha (abelha), máchico (mágico), apatar (apagar), pipota (pipoca), relóchio (relógio), ofelha (ovelha), poneca (boneca), juveiro (chuveiro);

6) Pseudopalavras (incorretas) homófonas, como bóquisse sob a figura de uma luta de boxe. Outros exemplos: páçaru (pássaro), cinau (sinal), jêlu (gelo), aumossu (almoço), xapel (chapéu), hospitau (hospital), mininu (menino), tácsi (táxi), ómi (homem);

7) Pseudopalavras (incorretas) estranhas, como rassuno sob a figura de uma mão. Outros exemplos: pazido (xarope), aspelo (coelho), mitu (óculos), dilha (pião), meloce (palhaço), fotis (meia), jamelo (tigre), socati (urso), catudo (tênis).

A Figura 1 ilustra exemplos dos sete tipos de pares figura-escrita do Teste de Competência de Leitura Silenciosa.

FADA

BRUXA

RÁDIO

TEIEUISÃO

MÁCHICO

MININU

TÁCSI

MELOCE

Figura 1. Podem –se observar exemplos de cada um dos sete tipos de pares figura-escrita do Teste de Competência de Leitura Silenciosa.

Duas palavras corretas, uma regular (fada) e uma irregular (bruxa); uma palavra com incorreção semântica (rádio); uma pseudopalavra com troca visual (teieuisão) e uma com troca fonológica (máchico); duas pseudopalavras homófonas (mininu, tácsi) e uma estranha (meloce).

Os pares figura-escrita compostos de palavras corretas grafofonemicamente regulares (tipo 1) e grafofonemicamente irregulares (tipo 2) devem ser aceitos; ao passo que aqueles compostos de palavras com incorreção semântica (tipo 3) ou de pseudopalavras (tipos 4, 5, 6, e 7) devem ser rejeitados. Assim, neste teste, os erros consistem em rejeitar (deixar de aceitar) os pares de tipo 1 e 2, ou em aceitar (deixar de rejeitar) os pares de tipo 3, 4, 5, 6, e 7. O padrão de distribuição dos tipos de erros tem um valor informativo importante na caracterização da natureza específica da dificuldade de leitura de uma dada criança.

O insucesso na aceitação de palavras corretas grafofonemicamente irregulares (tipo 2) pode indicar dificuldade com o processamento lexical, ou falta dele. Do mesmo modo, o insucesso na rejeição de pseudopalavras homófonas (tipo 6) pode indicar a mesma dificuldade com o processamento lexical (ou falta dele) num nível ainda mais acentuado, com uma leitura mais limitada à decodificação fonológica. Quando uma criança já tem pelo menos nove anos de idade e já foi bastante exposta a textos, se ela deixar de rejeitar pseudopalavras homófonas, isto indica que ela está lendo pela rota fonológica, por decodificação grafofonêmica estrita, sem fazer recurso à rota lexical. Se ela fizesse recurso ao léxico ortográfico e encontrasse nele as palavras-alvo (e.g., pássaro, sinal, gelo, táxi, menino, hospital, homem, boxe, almoço), iria rejeitar as pseudopalavras homófonas. A falha em rejeitá-las sugere falta de representação apropriada no léxico ortográfico. Um pouco mais sério é o insucesso na rejeição de pseudopalavras com trocas fonológicas (tipo 5), que poderia indicar a mesma falta de recurso ao léxico, mas com o agravante de dificuldades adicionais no próprio processamento fonológico em si. Já o insucesso na rejeição de palavras semanticamente incorretas (tipo 3) poderia indicar falta de acesso ao léxico semântico. Ainda mais sério, o insucesso na rejeição de pseudopalavras com trocas visuais (tipo 4) poderia indicar dificuldade com o processamento fonológico, e recurso à estratégia de leitura logográfica. Finalmente, o insucesso na rejeição de pseudopalavras estranhas (tipo 7) poderia indicar sérios problemas de leitura, com ausência de processamento lexical, fonológico e, mesmo, logográfico.

Além do Teste de Competência de Leitura Silenciosa, foi empregado o Teste de Discriminação Fonológica Computadorizado (Capovilla ; Capovilla, no prelo), implementado em microcomputador notebook Pentium 100 MHz. O Teste de Discriminação Fonológica Computadorizado é composto de cinco tipos de pares de sílabas, sendo cada uma das sílabas composta de uma consoante, seguida da vogal /a/. Nos cinco pares de sílabas, as consoantes podem ser:

1)                 iguais ( /za/-/za/, /sa/-/sa/);

2)                 diferentes quanto ao modo de articulação (/za/-/la/, /ja/-/lha/);

3)                 diferentes quanto à sonorização (/fa/-/va/; /ga/-/ca/);

4)                 diferentes quanto ao ponto de articulação (/ba/-/da/, /ta/-/pa/);

5)                 diferentes quanto aos três fatores (/sa/-/ma/, /cha/-/Ra/).

O software apresenta cada um dos cinco tipos de pares de sílabas em cada uma de 20 durações de (IEEs), que variam entre zero e 60 segundos crescendo inicialmente numa escala de milissegundos e, em seguida, de segundos (0 ms, 20 ms, 40 ms, 60 ms, 80 ms, 100 ms, 150 ms, 200 ms, 250 ms, 300 ms, 350 ms, 400 ms, 450 ms, 500 ms, 1 s, 2.5 s, 5 s, 15 s, 30 s, 60 s).

A tarefa do examinando consiste em julgar se as sílabas ouvidas são iguais ou diferentes. As sílabas digitalizadas são apresentadas com voz digitalizada pelo computador. Após cada apresentação de pares de sílabas, aparecem na tela os sinais igual e diferente, e o examinando deve selecionar com o mouse um dos sinais.

Procedimento

Inicialmente, as 103 crianças de 1a. e 2a. séries foram expostas ao Teste de Competência de Leitura Silenciosa. A partir dos desempenhos, selecionaram-se dois grupos: maus leitores (aqueles cuja média era igual ou inferior a um desvio-padrão em relação à média,  -1 dp) e bons leitores ( aqueles cuja média era igual ou superior a um desvio-padrão em relação à média, i.e., +1 dp). A partir de tal critério, foram selecionadas 32 das 103 crianças, sendo oito bons leitores e oito maus leitores da 1a série, e oito bons leitores e oito maus leitores da 2a série.

As 32 crianças foram, então, expostas ao Teste de Discriminação Fonológica Computadorizado (Capovilla ; Capovilla, no prelo), que apresentava com voz digitalizada cinco tipos de pares de sílabas, cada uma das quais com 20 (IEEs) diferentes, sendo que tais intervalos variavam de 0 s a 60 s. A tarefa da criança era julgar se as sílabas ouvidas eram iguais ou diferentes. Após cada apresentação de pares de sílabas, apareciam na tela os sinais igual e diferente, e a criança devia selecionar com o mouse um deles.

Assim, o delineamento manipulou duas variáveis independentes intra-sujeitos: tipo de pares de sílabas em cinco níveis (iguais, diferentes quanto ao modo de articulação, quanto à sonorização, quanto ao ponto de articulação, ou quanto aos três fatores) e duração de IEE em 20 níveis (0 ms, 20 ms, 40 ms, 60 ms, 80 ms, 100 ms, 150 ms, 200 ms, 250 ms, 300 ms, 350 ms, 400 ms, 450 ms, 500 ms, 1 s, 2.5 s, 5 s, 15 s, 30 s, 60 s), e duas variáveis inter-sujeitos: nível de leitura em dois níveis (bons leitores e maus leitores) e série escolar em dois níveis (1a. e 2a.)

Resultados

ANOVA tetrafatorial com duas variáveis inter-sujeitos (nível de leitura e série) e duas intra-sujeitos (tipo de sílabas e duração do IEE) revelou efeito de nível de leitura, F (1, 28) = 9,52, p = 0,005), tipo de sílabas, F (4, 112) = 5,72, p = 0,000), e duração de IEE, F (19, 532) = 2,69, p = 0,000), bem como de interação entre tipo de sílabas, série e nível de leitura, F (4, 112) = 4,52, p = 0,002). No Gráfico 1 representa-se a proporção de acerto como função do nível de leitura das crianças (bons leitores versus maus leitores). Conforme o gráfico, os bons leitores apresentaram proporção de acerto significativamente maior do que a dos maus leitores.

Gráfico 1. Proporção de acerto como função do nível de leitura das crianças.

No Gráfico 2, pode-se verificar a proporção de acerto como função do tipo de par de sílabas (iguais, diferentes somente quanto ao modo de articulação, diferentes somente quanto ao ponto de articulação, diferentes somente quando à sonorização, e diferentes quanto aos três fatores). Conforme a figura, os pares de sílabas diferentes quanto à sonorização e quanto ao ponto de articulação tiveram as menores proporções de acerto. Assim, tais tipos de diferenças foram de mais difícil discriminação. Os pares de sílabas diferentes quanto à sonorização tiveram as menores freqüências de acertos, estatisticamente inferiores às dos pares de sílabas iguais (p = 0,038), às dos pares de sílabas diferentes quanto ao modo de articulação (p = 0,005) e às dos pares de sílabas diferentes quanto aos três fatores (p < 0,000). Os pares de sílabas diferentes quanto ao ponto de articulação também tiveram freqüências de acerto inferiores às dos pares de sílabas diferentes quanto ao modo de articulação (p = 0,046) e às dos pares de sílabas diferentes quanto aos três fatores (p = 0,004). Ou seja, de modo geral, as diferenças entre os pares de sílabas que diferiam apenas quanto à sonorização e apenas quanto ao ponto de articulação foram mais dificilmente discriminadas do que aquelas dos demais tipos de pares.

Gráfico 2. Proporção de acerto como função do tipo de par de sílabas.

Representa-se, no Gráfico 3, a proporção de acerto como função da duração do IEE (em milissegundos) para as crianças de modo geral, considerando a amostra como um todo (i.e., incluindo bons e maus leitores). A distribuição da proporção de acerto como função da duração do IEE mostra que o acerto foi maior nos intervalos intermediários e menor nos extremos. Tal achado era esperado, já que IEEs mais curtos demandam maior velocidade de processamento fonológico, e os IEEs mais longos, maior memória de trabalho fonológica. Análises de contraste mostraram que a freqüência de acerto com IEE de 0 ms foi significativamente menor que com IEEs de 200 ms (p = 0,029), 450 ms (p = 0,03) e 2,5 s (p = 0,006); com IEE de 20 ms foi menor que com IEEs de 200 ms (p = 0,044), 300 ms (p = 0,019), 400 ms (p = 0,013), 450 ms (p = 0,016), 500 ms (p = 0,013), 2,5 s (p = 0,003) e 15 s (p = 0,043); com IEEs de 2,5 s foi maior que com IEEs de 0 ms (p = 0,006), 20 ms (p = 0,003), 150 ms (p = 0,01), 200 ms (p = 0,022), 250 ms (p = 0,019), 350 ms (p = 0,049), 1 s (p = 0,046), 5 s (p = 0,038), 30 s (p = 0,003) e 60 s (p = 0,002); e, finalmente, com IEE de 60 s foi menor que com IEEs de 200 ms (p = 0,012), 300 ms (p = 0,035), 450 ms (p = 0,038) e 15 s (p = .049). Assim, a proporção de acertos com o IEE de 2,5 s foi superior às demais, indicando que este é o intervalo ideal para que a discriminação ocorra com maior probabilidade de sucesso. Houve, portanto, uma tendência à diminuição da proporção de acerto nos IEEs extremos para as crianças de modo geral, considerando a amostra como um todo, incluindo bons e maus leitores.

Gráfico 3. Proporção de acerto como função da duração do intervalo entre estímulos (IEE).

Representa-se, no Gráfico 4, a interação tripla entre série, nível de leitura e tipo de sílaba. Como se pode observar, de modo geral os bons leitores tiveram maiores proporções de acerto que os maus leitores. Na 1a série, os bons leitores sempre discriminaram melhor que os maus leitores nos cinco tipos de pares de sílabas. Tal superioridade dos bons leitores em relação aos maus leitores foi maior quando as diferenças entre as sílabas eram sutis (quando diferiam em relação a apenas um fator, especialmente a sonorização, do que quando diferiam em relação aos três fatores). Já na 2a série verificou-se uma diferença entre bons e maus leitores apenas nos pares diferentes quanto ao modo de articulação, sendo que, neste caso, novamente bons leitores discriminaram melhor que os maus. Assim, a relação entre atraso de leitura e dificuldade de discriminação fonológica parece ser mais efetiva na 1a. série, ano em que as crianças da escola pública são alfabetizadas.

Portanto, os bons leitores tiveram desempenhos superiores aos dos maus leitores, os IEEs medianos promoveram maiores proporções de acerto que os IEEs extremos, e a diferença entre bons e maus leitores foi maior para a 1a série que para a 2a, e maior para as sílabas foneticamente semelhantes do que para aquelas mais distintas.

Em uma primeira análise de interação, não houve evidência de interação significativa entre IEE, tipo de sílabas e nível de leitura. Como o número de valores de IEE era muito grande, de modo a facilitar a análise da presença de problemas de velocidade de processamento e de memória de trabalho, os IEEs foram agrupados em seis faixas de duração: 1 (entre 0 e 0,02 s, ou seja, entre 0 e 20 ms), 2 (entre 0,04 e 0,15 s, ou seja, entre 40 e 150 ms), 3 (entre 0,2 e 1 s, ou seja, entre 200 ms e 1s), 4 (2,5 s), 5 (entre 5 e 15 s), e 6 (entre 30 e 60 s). Reconduziram-se as análises com este menor número de níveis. Além disso, como as maiores diferenças haviam sido encontradas para a 1a série, as análises limitaram-se a ela.

No gráfico 5, pode-se observar a proporção de acerto como função da faixa de duração de IEEs para a 1a. série considerando todos os cinco tipos de pares de sílabas (sílabas iguais, diferentes quanto à sonorização, ao ponto de articulação, ao modo de articulação e quanto aos três fatores). Conforme a figura, enquanto o desempenho dos bons leitores foi razoavelmente estável em todas as faixas de IEEs, o desempenho dos maus leitores mostrou-se bastante afetado nos extremos da distribuição dos IEEs. O IEE que produziu maior proporção de acerto foi o de 2,5 segundos, sendo que neste ponto o desempenho dos maus leitores foi apenas levemente inferior ao dos bons leitores. Já, à medida que os IEES se distanciavam dessa duração de intervalo ideal, quer diminuindo ou aumentando, o desempenho dos maus leitores tornou-se cada vez pior. Portanto, pode-se dizer que os maus leitores demonstraram problemas velocidade de processamento fonológico e de memória de trabalho fonológica.

Considerando as crianças de 1a. série, ANOVA da proporção de acerto como função do nível de leitura e da faixa de IEEs revelou efeito significativo do nível de leitura, F (1, 14) = 8,86, p = 0,01, e da faixa de duração dos IEEs, F (5, 70) = 4,71, p = 0,001. A proporção de acerto mostrou-se uma função quadrática da faixa de IEE, F (1, 14) = 13,18, p = 0,003. Ou seja, a proporção de acerto foi maior nos intervalos mediais, e menor nos intervalos extremos. A inferioridade dos maus leitores em relação aos bons leitores aumentou nos IEEs extremos, sugerindo que os problemas fonológicos dos maus leitores estão relacionados à velocidade de processamento, bem como à memória de trabalho.

Gráfico 5. Proporção de acerto como função do intervalo entre estímulos (IEE) para 1a. série considerando todos os cinco tipos de pares de sílabas.

Para as sílabas diferentes quanto ao modo de articulação, ANOVA da proporção de acerto como função do nível de leitura e da faixa de IEEs revelou efeito significativo de nível de leitura, F (1, 14) = 5,81, p = 0,03. Apesar de não ter havido efeito significativo de IEE ou interação significativa entre IEE e nível de leitura, pode ser observado pelo Gráfico 6, que, para os maus leitores, a proporção de acerto foi maior nos intervalos mediais e menor nos intervalos extremos. Já, para os bons leitores, a proporção de acerto manteve-se razoavelmente estável, independentemente do IEE. Tal fato sugere que, quando comparados aos bons leitores, na tarefa de discriminar entre sílabas diferentes apenas quanto ao modo de articulação, os maus leitores tendem a apresentar dificuldades de percepção fonológica e de memória de trabalho.

Gráfico 6. Proporção de acerto como função do intervalo entre estímulos (IEE) para 1a. série considerando apenas as sílabas diferentes quanto ao modo de articulação.

Como se pode observar apartir do Gráfico 7, para as sílabas diferentes quanto à sonorização, ANOVA da proporção de acerto como função do nível de leitura e da faixa de IEEs revelou efeito significativo de nível de leitura, F (1, 14) = 18,09, p = 0,001, e da faixa de IEEs, F (5, 70) = 2,97, p = 0,017. A proporção de acerto mostrou-se uma função quadrática da faixa de IEE, F (1, 14) = 7,44, p = 0,016. Ou seja, de modo geral a proporção de acerto foi maior nos intervalos mediais e menor nos intervalos extremos. Quando comparados aos bons leitores, os maus leitores tiveram uma dificuldade relativamente maior nos intervalos extremos, o que novamente sugere o envolvimento de dificuldades de velocidade de processamento e de memória de trabalho em tarefas de discriminação fonológica sutil (discriminação de pares de sílabas diferentes somente quanto à sonorização).

Gráfico 7 - Proporção de acerto como função do intervalo entre estímulos (IEE) para 1a. série considerando apenas as sílabas diferentes quanto à sonorização.

Para as sílabas diferentes quanto ao ponto de articulação, ANOVA da proporção de acerto como função do nível de leitura e da faixa de IEEs falhou em revelar efeitos significativos. Apesar disso, pode-se observar no gráfico 8, que, para os maus leitores, a proporção de acerto tendeu a ser menor nos intervalos curtos. Porém, não houve diferenças entre bons e maus leitores nos intervalos medianos e longos. Isto sugere que os maus leitores tendem a ser inferiores aos bons leitores na percepção fonológica de sílabas diferentes somente quanto ao ponto de articulação quando os intervalos entre as sílabas são muito curtos ( sob alta demanda de velocidade de processamento).

Gráfico 8. Proporção de acerto como função do intervalo entre estímulos (IEE) para 1a. série considerando apenas as sílabas diferentes quanto ao ponto de articulação.

Para as sílabas diferentes quanto aos três fatores, ANOVA da proporção de acerto como função do nível de leitura e da faixa de IEEs falhou em revelar efeitos significativos. Entranto, pode observar, no Gráfico 9, que o desempenho dos maus leitores tendeu a ser inferior ao dos bons leitores, sendo que tal inferioridade tendeu a aumentar levemente nos IEEs extremos. Porém, comparando tais resultados aos anteriores, observa-se que a discrepância entre bons e maus leitores nos intervalos extremos foi maior quando as sílabas eram foneticamente semelhantes (diferentes apenas quanto a um dos três fatores) do que quanto elas eram bastante diferentes (diferentes quanto aos três fatores). Ou seja, a inferioridade dos maus leitores foi observada principalmente quando a tarefa envolvia maior dificuldade de discriminação fonológica (quando as sílabas eram foneticamente similares, diferindo apenas em relação a um dos três fatores: sonorização, modo ou ponto de articulação), e quando sobrecarregava a velocidade de processamento fonológico (em IEEs muito curtos, de 1 s decrescendo até 20 ms) ou a memória de trabalho fonológica ( em IEEs muito longos, de 5 s crescendo até 60 s). Em situações ideais (em sílabas diferentes quanto aos três fatores) com IEEs medianos ( 2,5 s), não houve diferença de desempenho entre bons e mais leitores.

Gráfico 9.. Proporção de acerto como função do intervalo entre estímulos (IEE) para 1a. série considerando apenas as sílabas diferentes quanto aos três fatores (sonorização, modo e ponto de articulação).

Análises por item

Em estudos que apresentam uma amostra de estímulos como representativa de uma categoria, deve ser conduzida a análise por item, conforme recomendado por Clark (1973). Tal análise assegura que os efeitos obtidos não são devidos à amostra específica do estudo, mas são generalizáveis. No presente estudo, dois pares de sílabas eram usados para representar cada nível da variável independente tipo de sílaba. Fez-se necessário, portanto, conduzir análises por item, em que as porcentagens de acertos dos sujeitos são agrupadas para cada par de sílaba em cada uma das condições.

Os dados foram, portanto, colapsados entre sujeitos, e as análises foram novamente conduzidas. Como o objetivo da análise de item era verificar a generalizabilidade especificamente dos tipos de sílaba, e não dos IEEs, os dados entre os diferentes IEEs foram colapsados e foram reanalisados os efeitos de nível de leitura, série e tipo de sílaba. As análises por item revelaram efeitos significativos do nível de leitura, F (1, 4) = 40,20, p = .003; da série, F (1, 4) = 17,33, p = 0,014, e do tipo de sílaba, F (4, 16) = 5,47, p = 0,006, bem como interação entre nível de leitura e série, F (1, 4) = 17,33, p = 0,014. Assim, os efeitos de tipo de sílaba obtidos nas análises anteriores por sujeito foram confirmados nas análises por item. Portanto, ficou demonstrado que as diferenças de desempenho como função do tipo de sílaba não foram devidas às diferenças apenas do subconjunto de sílabas apresentadas no presente estudo, mas que têm generalidade suficiente

Discussão

Conforme abordado na introdução, diversas teorias apontam para diferentes fatores causais possivelmente subjacentes aos distúrbios de leitura e escrita. Este estudo procurou determinar, dentre os diferentes aspectos do processamento fonológico, quais poderiam estar prejudicados nos maus leitores. Os resultados sugerem que diferentes distúrbios podem estar presentes conjuntamente, como:

1) problemas de percepção da fala, ou discriminação fonológica, já que os maus leitores tiveram desempenhos inferiores ao dos bons leitores em todos os IEEs quando as diferenças entre as sílabas eram foneticamente sutis;

2) problemas relacionados à velocidade de processamento de informação apresentada seqüencialmente com curtos IEEs, já que o desempenho dos maus leitores foi rebaixado em relação ao dos bons nos IEEs muito curtos; e

3) problemas relacionados ao processamento de informação sob alta demanda sobre a memória de trabalho, visto que o desempenho dos maus leitores foi rebaixado em relação ao dos bons leitores nos IEEs longos.

Assim, os resultados corroboram a hipótese de que diferentes dístúrbios de processamento fonológico podem estar conjuntamente subjacentes às dificuldades de leitura e escrita. Parece não haver uma causa única mas, sim, uma combinação de várias dificuldades. Tais dificuldades podem estar funcionalmente relacionadas umas às outras ou podem meramente co-ocorrerer nos maus leitores. Tal noção é importante tanto para estudos futuros quanto para a prática de intervenção.

Visando ao aprimoramento do modelo da Hipótese do Déficit Fonológico, aqui corroborada, pesquisas ulteriores devem buscar aprofundar a investigação das relações entre todas estas habilidades de processamento fonológico e as habilidades de leitura e escrita, com o objetivo de verificar quais relações são causais e quais são meramente correlacionais.

Há vastas evidências, por exemplo, de que as habilidades de leitura e escrita são função da consciência fonêmica. Tal fato foi estabelecido por meio de estudos correlacionais demonstrando forte correlação positiva entre elas, bem como por estudos de intervenção, demonstrando que procedimentos voltados ao desenvolvimento da consciência fonológica são capazes de melhorar substancialmente a competência de leitura e escrita (Capovilla ; Capovilla, 1999, 2000a, 2000b). Há evidências de que 40% das crianças com dificuldades de leitura e escrita apresentam também um distúrbio de déficit de atenção, sendo que ambos os problemas (o fonológico e o de atenção) são funcionalmente independentes um do outro, e apenas co-ocorrem com alta freqüência (Shaywitz, Fletcher, & Shaywitz, 1994). Ao determinar as relações causais entre diferentes habilidades, o diagnóstico e as intervenções em problemas de leitura e escrita poderão ser realizados de modo mais preciso, válido, confiável e eficaz. E o presente estudo deu um passo importante neste sentido.

Notas:

* Ph.D em Psicologia Experimental pela Temple University 1989 e Livre Docente em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo; Professor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

**  Doutora e Pós Doutora pela Universidade de São Paulo, Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e do Mestrado em Psicopedagogia da Universidade de Santo Amaro, Pesquisadora associada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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Abstract

The degree of success in the explanation, assessment and treatment of deficits depends on the existence of robust and experimentally tested theoretical models. In trying to explain cognitive problems pertaining to reading-writing acquisition, three theoretical models compete attributing them to deficits of speech perception, phonological memory, or cognitive processing speed. After assessing reading skills of 103 public-school first and second graders, this study compared good readers (+1sd) and poor readers (-1sd) in their discrimination, memory and processing speed during a task of judging pairs of spoken syllables as being equal or different. First-grade poor readers presented greater difficulty in discriminating between syllables having subtle differences (poor phonological discrimination). Their difficulty was greater when the inter-syllabic interval was very short (low processing speed) or very long (poor phonological memory). Results corroborate the Phonological Deficit Hypothesis in explaining reading-writing acquisition problems, thus suggesting the effectiveness of educational and clinical procedures based on it.

Keywords

Reading; dyslexia; phonology

 

Recebido em:  18/07/01

Aceito para publicação em: 07/12/01