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O Desenvolvimento Infantil no Contexto das Práticas Profissionais de Saúde: um estudo de representações sociais1

The child development and the  health professional pratices: a study of social representations


Denize Cristina de Oliveira*

Augusta Thereza de Alvarenga**

Resumo

  Este trabalho analisa as representações sociais e sua interface com as práticas profissionais dirigidas à promoção do desenvolvimento infantil. Foram realizadas 24 entrevistas semi-estruturadas, com profissionais de dois serviços de saúde, situados em São Paulo. Utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, através da qual buscou-se reconstruir os contextos institucional e político nos quais as representações e as práticas se constituem. Os resultados apresentam dados sobre o exercício da “violência simbólica” no cotidiano dos profissionais. Discutem-se, também, as relações estabelecidas entre práticas e representações, resultando daí a caracterização de posições institucionais, delimitando uma “geografia” das relações entre equipes de trabalho. Conclui-se que o estudo das práticas profissionais voltadas à saúde da criança pode ser proveitosamente realizado utilizando-se a teoria de representações sociais, uma vez que esse objeto de estudo não se esgota na análise do processo saúde-doença, mas exige novas definições paradigmáticas que efetivem o conceito de “promoção da saúde”.

Palavras-Chave

Representações sociais; desenvolvimento infantil; Práticas profissionais em saúde; Saúde e sociedade.

 
 
 
Introdução

A prioridade que o setor saúde passa a dar à questão do crescimento e do desenvolvimento da criança pressupõe as possibilidades objetivas desse campo em responsabilizar-se por medidas de promoção da saúde que contribuam para a melhoria da qualidade de vida, sobretudo das crianças pertencentes às camadas populares. O crescimento e o desenvolvimento da criança se apresentariam como indicadores positivos de saúde, contrariamente aos coeficientes de mortalidade considerados como indicadores negativos.

No entanto, a questão vai mais além, isso porque a forma pela qual a criança nasce, cresce e se desenvolve está relacionada não somente com as condições familiares a que é submetida, por pertencer a determinada classe social, mas também em função de como é simbolizada, representada e tratada em nível das práticas institucionais (como a saúde e a educação), em que as questões do crescimento e do desenvolvimento se colocam como objeto de trabalho (Alvarenga, 1986; Carugatti; Emiliano & Molinari , 1990, 1992; Mugny & Carugatti, 1985)

Discutindo as implicações que a abordagem conceptual do processo de crescimento e desenvolvimento encerra, Alvarenga (1986) assinala que, do ponto de vista do conhecimento, a despeito de os estudos da área médica sobre o crescimento e desenvolvimento buscarem tratá-los como fenômenos diferenciados, acabam na realidade, reduzindo-os a um mesmo parâmetro genético e orgânico em termos de sua expressão final.

Em relação ao campo da Psicologia, o fato a considerar são as diferentes dimensões do processo de desenvolvimento da criança que têm sido objeto de estudos específicos. Se, por um lado, estes representam um avanço na constituição do conhecimento, implicam, por outro, numa atomização do objeto, na medida que, em sua maioria, compartimentalizam o fenômeno, reduzindo-o a dimensões, sejam elas cognitiva, afetiva ou social.

Algumas tentativas de abordagem integradora do desenvolvimento infantil têm sido empreendidas na área da Psicologia, a partir de conceitos que buscam a articulação das várias dimensões que o desenvolvimento psicológico assume. Como um dos representantes dessa tendência, Spitz (1979, p.24) afirma que:

o processo de diferenciação da criança a partir da totalidade do nascimento se dá por dois processos: maturação, ou seja, o desdobramento de funções filogeneticamente desenvolvidas e portanto, funções inatas das espécies, que emergem no curso do desenvolvimento embrionário ou aparecem após o nascimento como anlagen (tendências) e se tornam manifestas nos estágios posteriores de vida; e o desenvolvimento, ou seja, a emergência de formas, de função e de comportamentos que constituem o resultado de interações entre o organismo, de um lado, e o ambiente interno e externo de outro.

A despeito dessas tendências, o que se observa, em nível mais geral da Psicologia, são as dificuldades colocadas pelo objeto, em função da sua natureza multidimensional. Nesse sentido, a busca de um conhecimento integrado da criança, coloca-se ainda como um desafio, não só teórico, mas metodológico e técnico, que a área deve enfrentar. 

Em função das peculiaridades do campo da Saúde Coletiva, a complexidade assumida pelo fenômeno amplia-se, na medida em que resgatar o desenvolvimento da criança em sua integralidade envolve não somente a retenção do seu caráter multidimensional (do ponto de vista cognitivo, afetivo e social), mas também do seu caráter fisiológico. Envolve ainda a forma como o mesmo passa a se constituir enquanto fenômeno coletivo, em uma manifestação concreta das condições sociais da saúde da criança.

Assim, pode-se afirmar que a preocupação com o desenvolvimento humano na prática de saúde envolve a própria produção do conhecimento existente na área, mas especialmente a maneira como esse conhecimento é reproduzido e representado na formação profissional, e no processo de transformação de representações em práticas. Desse modo, para refletir sobre a assistência à saúde da criança a partir de um enfoque holístico, considera-se importante conhecer o sentido que embasa essa prática profissional, ou seja, as próprias representações sociais que o grupo de profissionais tem do desenvolvimento e que é impressa nos processos de intervenção.

A teoria de representações sociais, conforme definida pela psicologia social francesa (Moscovici, 1978, 1981, 1988; Jodelet, 1986; Sá, 1996; Wagner, 1998; Flament, 1987) apresenta-se como instrumental de escolha para a análise do tema, uma vez que possibilita a compreensão dos planos discutidos: os impasses colocados na relação teoria-prática; o processo de incorporação da informação produzida, bem como o reconhecimento e a superação das limitações conceituais específicas.

Metodologia de Estudo
Coleta de Dados

Apresenta-se aqui, a análise desenvolvida a partir de entrevistas realizadas com profissionais de saúde, distribuídos em 12 categorias funcionais distintas, e que desenvolviam ações dirigidas à promoção da saúde da criança, em duas unidades básicas de saúde, localizadas em São Paulo.

Foram realizadas 25 entrevistas semidiretivas, orientadas por um roteiro temático, com duração variável de 20 a 90 minutos, gravadas nos serviços e transcritas a posteriori.

A escolha das unidades de saúde foi feita de forma a representarem duas realidades diferenciadas no seu papel dentro do sistema primário de assistência à saúde, assim como no perfil da clientela atendida. Optou-se por duas unidades sanitárias com grau máximo de complexidade dentro do sistema de saúde (Centros de Saúde I). Uma delas está localizada em região periférica e parte integrante da rede básica de serviços de saúde da Grande São Paulo, e a outra, localizada em zona central da Cidade, caracterizada pelo desenvolvimento de ações voltadas ao ensino e pesquisa em saúde.

Análise de Dados

A análise do material discursivo foi efetuada através da análise de conteúdo clássica (Bardin, 2000), através da qual foram definidos os núcleos organizadores dos discursos, categorias e grupos temáticos.

A análise dos dados foi, primeiramente, processada em separado por serviço de saúde e categoria profissional. No entanto, as semelhanças encontradas justificaram a apresentação da análise em conjunto.

Ao esboçar o espaço do pensamento coletivo dos profissionais sobre o processo do desenvolvimento infantil, buscou-se definir um Sistema Articulado de Unidades de Sentido, que se decompõe em núcleos estruturadores dos discursos, categorias, sub-categorias e grupos temáticos. O que se pretende tratar no presente trabalho são os contornos desse sistema de significação. (Oliveira, 1991 a)

O desenvolvimento infantil nas representações dos profissionais de saúde

Definiram-se três núcleos estruturadores dos discursos, que representam os eixos temáticos em torno dos quais todos os depoimentos se agregam. São eles: Conceitualização do Desenvolvimento Infantil; Determinação do Desenvolvimento Infantil e Representações sobre o Acesso à Informação pelas Mães Usuárias dos Serviços de Saúde.

O Desenvolvimento Infantil Conceitualizado

Os sentidos atribuídos pelos profissionais ao desenvolvimento infantil diferenciam-se em quatro categorias, que guardam uma relação de inclusão entre si, partindo de um sentido mais específico para sentidos mais gerais e amplos.

As categorias destacadas neste núcleo organizador definem o desenvolvimento pela oposição conceptual. Na primeira categoria - desenvolvimento é Saúde - há predomínio do caráter biológico, como um processo físico, tais como ganho de peso e altura, crescimento de órgãos. Esta categoria também é representada por outro, como um processo neuromotor, ou seja, o desenvolvimento de condutas motoras tais como andar, sentar, engatinhar etc. A base para o desenvolvimento psicológico é atribuída às estruturas biológicas (orgânicas e neurológicas) e aos comportamentos motores. As estruturas biológicas, por sua vez, são determinadas pelo nível de saúde e alimentação da criança. Desenvolvimento, portanto, significa não ter doenças, crescer segundo os parâmetros de normalidade definidos com base na literatura especializada, ausência de conflitos nos relacionamentos interpessoais e ser inteligente.

A saúde, nesta concepção, é definida por parâmetros médios de adaptação sujeito-meio ambiente, estabelecidos socialmente.

A dimensão psicológica implícita nesse conceito toma a inteligência como seu atributo principal. Esta forma de representar o desenvolvimento infantil pressupõe linearidade do processo (não comporta conflito), bem como o predomínio das estruturas biológicas sobre as psicológicas e sociais.

A concepção discutida corresponde a uma postura técnica de intervenção em saúde pública, segundo a qual o desenvolvimento adequado ou padrão deve ser obtido a partir de medidas de intervenção pontuais assumidas pelos serviços de saúde.

Na segunda categoria - desenvolvimento são reações motoras e psicológicas - predominam as especificidades psicológica e afetiva e o desenvolvimento infantil é entendido como um processo não linear, em que as reações da criança frente ao meio físico e social constituem sua expressão concreta. A característica não linear atribuída ao desenvolvimento infantil implica compreendê-lo como um processo conflitivo, que não ocorre através de ganhos sucessivos mas de transformações permanentes, exigindo re-equilibrações internas da criança em função das relações que ela estabelece com o mundo. Este é concebido como um processo qualitativo, não incluindo o crescimento físico (aumento de tamanho), visto como processo quantitativo. As reações da criança são caracterizadas por comportamentos motores (movimentar-se, buscar, agir) e por comportamentos que espelham o desenvolvimento psicológico.

A dimensão psicológica refere-se ao plano cognitivo e afetivo e representa a base sobre a qual o agir da criança se estabelece; a ação aqui deriva da relação entre criança e o meio físico e social, numa busca permanente de adaptação e busca de equilíbrio. Esta dimensão é estruturada a partir das sensações de prazer e desprazer experimentadas pela criança nas suas relações com o universo físico e social, e ainda a partir dos vínculos afetivos que estabelece por ela no início da vida.

Nesta concepção o desenvolvimento é entendido como resultado da relação de uma base psicológica inata com um ambiente relacional particular e social mais amplo.

A prática institucional é aqui caracterizada de forma segmentada, em que o corpo físico é atribuído aos profissionais da área médica e o corpo psicológico aos outros profissionais.

Na terceira categoria, o desenvolvimento infantil é definido como aprendizagem e maturação, pressupõe um equilíbrio entre os dois níveis anteriores e o destaque ao desenvolvimento social. O desenvolvimento da criança é visto como um processo físico e psicológico linear, caracterizado pelo aumento de tamanho (peso e altura) e pelo aumento progressivo da capacidade de adaptação e aquisição de habilidades cognitivas, afetivas e sociais. As dimensões biológica e psicológica predominam nesta abordagem, definindo uma relação de equilíbrio entre elas e na concepção de que a maturação biológica e a aprendizagem psicológica e social são mecanismos adaptativos. A aprendizagem, por seu turno, ocorre a partir da interação criança-meio, através dos estímulos físicos e sociais incorporados por ela. O equilíbrio biopsicológico é, então, o resultado do processo de aprendizagem ocorrido durante a infância.

As práticas de intervenção educativa são aqui assumidas como a principal tecnologia de promoção do desenvolvimento infantil, havendo divergências no que se refere às estratégias utilizadas para esse fim. Os objetivos dessa prática são colocados em nível de mudança de comportamentos e atitudes das mães no cuidado e relação com seus filhos.

Na quarta categoria - desenvolvimento é a conquista de autonomia - é caracterizada pela dimensão criativa e crítica do desenvolvimento infantil, o que pressupõe uma relação de equilíbrio entre os níveis anteriores.

Ampliando as categorias anteriores, observa-se a busca de integração das dimensões biológica, psicológica e social, como instrumento para o alcance da autonomia pela criança. Autonomia é entendida como a capacidade de definir o próprio destino no plano pessoal, social e político. O desenvolvimento então, caminha através da criatividade, da fantasia e da capacidade de transformação; é um processo ativo não linear, que busca a estruturação de um indivíduo crítico e transformador.

A imagem associada a esta concepção é a de crescer para os lados, crescer socialmente, ampliar a capacidade de compreensão e transformação do universo no qual a criança se insere. Muitas demandas são associadas a esta concepção, no entanto, a liberdade pessoal e o respeito à liberdade do outro parecem ser as principais.

No plano institucional, a principal questão que se coloca é a necessidade de construção de uma prática multi ou transprofissional, ou seja, a integração das diversas áreas de conhecimento para uma compreensão global da criança.

Os Determinantes do Desenvolvimento Infantil

Este núcleo organizador exerce um papel complementar ao núcleo conceptual do desenvolvimento, na delimitação e caracterização das representações analisadas. Nesse processo de complementaridade a um conceito enunciado ou parcialmente explicitado, os entrevistados estabelecem uma rede de associações de imagens que reforçam, complementam ou contradizem o conceito inicial. O peso atribuído a cada uma das relações - desde simples associações até relações determinantes - é um elemento igualmente importante para  delimitar e caracterizar as representações analisadas.

Observa-se, nesse núcleo, a expressão das representações sobre o processo de socialização da criança como determinante do desenvolvimento. As categorias falam das práticas de socialização, dos agentes socializadores e das condições dentro das quais a incursão da criança na sociedade se dá.

Desta forma, as categorias são definidas de forma indireta, como Condições de Vida, entendidas como condições materiais de existência das famílias atendidas pelos serviços de saúde. Envolvem condições estruturais, como classe social; ocupação do espaço físico e moradia, além de condições materiais específicas, estreitamente relacionadas com as condições de classe, tais como, recursos financeiros da família, tipo de moradia, alimentação, saúde e modalidade de trabalho desenvolvido pelos pais.

A esta categoria é atribuída força de determinação sobre o desenvolvimento infantil na medida que é em função das condições específicas de vida de cada família em particular, que as necessidades da criança são atendidas e que suas oportunidades de vida são determinadas. Está mais marcada entre os profissionais do que nos discursos do senso comum, o que permite supor uma dimensão sociológica mais ampla nas representações destes, em contraposição a uma dimensão de natureza mais psicossocial nas representações das mães. Para Bourdieu (1989), essa seria a forma típica como o conhecimento científico se transmite.

 
Quadro 1: Sistema articulado de unidades de sentido relativo aos conceitos de desenvolvimento infantil entre profissionais de saúde.

Quadro 2: Categorias teórico-analíticas relativas aos conceitos de desenvolvimento infantil entre profissionais de saúde.

A segunda categoria define as condições de socialização como Condições de Saúde, e essas, por sua vez, como determinantes do desenvolvimento infantil. Essa associação é marcante entre os profissionais, mesmo nas concepções em que o desenvolvimento é entendido como fenômeno estritamente psicossocial. A categoria condições de saúde refere-se à constituição orgânica adequada, doenças comuns na infância e estado nutricional, como elementos que interferem no desenvolvimento da criança.

Está implícita, nesta relação, a noção de que o desenvolvimento infantil parte de uma base biológica geneticamente determinada. Essa base biológica pode ou não se expressar em função de condições de saúde específicas que marcam a história de vida de cada criança. As doenças recorrentes e o estado nutricional são os principais elementos que podem interferir no desenvolvimento apresentado.

Cabe destacar que esta associação pressupõe um nível de determinação do estado nutricional sobre o desenvolvimento infantil e a participação deste, por sua vez, na ordem social estabelecida. Nesta concepção, a situação de classe dos indivíduos seria justificada pelos baixos níveis de desenvolvimento das classes subalternas. Essa concepção causal marca as representações sobre o desenvolvimento da criança em várias áreas e níveis de formação profissional. O trecho a seguir, de um professor, exemplifica essa postura:

... tá se criando uma geração... uma geração de robôs ou trabalhadores braçais... que jamais conseguirão ser técnicos porque, na sua primeira infância, devido à desnutrição, tiveram lesões de células celebrais, do aprendizado (Prof. 19).

A categoria Ambiente é localizada no plano representacional associada a agentes de socialização e também como prática de socialização. Esta categoria concretiza as condições de vida, definida e determinada pelas condições de existência da família, e subdivide-se em três categorias específicas: ambiente físico, ambiente relacional e ambiente social.

Ambiente físico refere-se ao tipo de moradia e disponibilidade de espaço para o desempenho de habilidades motoras pela criança. A ele é atribuída também a função de manutenção da saúde física, entendida como base para um bom desenvolvimento. Ambiente relacional é entendido enquanto o espaço existente na relação criança-família nuclear, para o estabelecimento de vínculos afetivos. O espaço relacional é concebido como um espaço virtual, definido pela presença ou ausência dos pais junto à criança, pela disponibilidade da mãe e do pai em fornecer atenção, carinho e afeto ao filho; e ainda pela própria estrutura de personalidade de cada criança (vista pelos profissionais como herdada). O ambiente relacional, então, possibilita o estabelecimento de vínculos afetivos e representa a principal base para o desenvolvimento infantil. O Ambiente social é representado pelos profissionais como o espaço das experiências sociais da criança. Essas experiências são constituídas a partir de oportunidades para estabelecer relações com a família ampliada, vizinhos, amigos, outras crianças e outros adultos. O espaço social, nesta concepção, possibilita o brincar, o desenvolvimento da criatividade e a adaptação da criança ao universo social do qual faz parte. O desenvolvimento infantil é visto aqui como um processo adaptativo.

A categoria de Estímulos do Meio é referida como prática de socialização. Essa expressão aparece com freqüência entre os profissionais de saúde, provavelmente ainda como herança da escola behaviorista. No entanto, observam-se mudanças no sentido atribuído à expressão. A categoria estímulos, contrariamente ao sentido que o termo habitualmente comporta, é entendida pelos profissionais como relação. Estímulos como relação supõe três vias de contato: uma ação intencional do adulto dirigida à criança, uma resposta da criança a esse estímulo, e a transformação da ação inicial em função da resposta dada.

Com esse sentido, consideram-se  estímulo a disposição dos adultos para cuidar e relacionar-se  com as crianças, as várias formas de cuidar dos filhos (alimentar, cuidados higiênicos, brincar, conversar, aconselhar), bem como a ação efetiva de disponibilizar objetos para manipulação e/ou permitir a exploração do ambiente doméstico pela criança.

Explicitando as condições nas quais se dá a socialização da criança, são referidas as Instituições Sociais como categoria discursiva. A associação do desenvolvimento infantil a instituições, tais como escolas, creches e serviços de saúde, ocorre em função de relações anteriormente discutidas. As instituições de saúde são responsabilizadas, mesmo que de forma parcial, pela saúde física das crianças; a escola e a creche, por sua vez, são vistas como complementos para a educação e cuidado da população infantil.

Apesar da atribuição de papel específico a cada tipo de instituição, no seu conjunto elas são entendidas como apoio à família para que esta garanta o bem-estar físico e psíquico das suas crianças. De uma certa forma, está implícita nessa associação a noção de incompetência relativa da família no desempenho do que seria, supostamente, o seu papel. As instituições assumem papel relevante nos discursos - especialmente quando os profissionais se referem à população de baixa renda - o que sustenta a afirmação inicial.

Quadro 3: Sistema articulado de unidades de sentido relativo à determinação do desenvolvimento infantil entre profissionais de saúde.

QUADRO 4 - CATEGORIAS TEÓRICO-ANALÍTICAS RELATIVAS À DETERMINAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL ENTRE PROFISSIONAIS DA SAÚDE

O que Pensam os Profissionais sobre o Conhecimento das Mães sobre o Desenvolvimento Infantil – A Hetero-Representação

A hetero-representação sobre as usuárias dos serviços de saúde reflete uma percepção marcada pelo posicionamento ideológico dos profissionais sobre a população, notadamente aquelas pertencentes às camadas populares, que demandam à estrutura pública de atenção à saúde.

Historicamente, os serviços públicos de saúde e educação vêm direcionando suas ações à parcela mais carente da população, dentro de uma postura paternalista e caritativa. No entanto, apesar de ser essa a postura hegemônica presente, em nível das representações dos profissionais que atuam nas instituições estudadas, não se pode afirmar uma posição homogênea.

Identificam-se três categorias discursivas na análise da atribuição de conhecimento às mães usuárias dos serviços analisados - desamparadas socialmente, carentes e limitadas, interessadas e com experiências para trocar - conforme pode ser observado nos quadros 5 e 6.

Na categoria Desamparadas Socialmente, a maternidade é vista em sua dimensão social, como um papel social desempenhado pelas mulheres, sem a contrapartida institucional e comunitária do grupo social no qual mãe e filho estão inseridos. Nesta concepção, reconhecem-se as dificuldades e conflitos que as mulheres enfrentam para o desempenho da maternidade e para o relacionamento com os filhos. No entanto, tais dificuldades são atribuídas à excessiva responsabilização da mãe pela educação e pelo futuro dos filhos, sem o apoio e amparo social que o desempenho desse papel exige. Ao contrário, para os profissionais, a sociedade apenas define o desempenho da maternagem como papel feminino, culpabilizando as mães, antecipadamente, por eventuais desvios no bem estar dos filhos.

Quando representadas como Carentes e Limitadas, as mães usuárias dos serviços não são vistas como “indivíduos completos”, mas sim como pessoas com carências múltiplas, com suas vidas e atitudes determinadas pela falta. Esta categoria é caracterizada pela postura paternalista do Estado brasileiro, onde as mulheres (e por extensão as mães) são vistas como pouco capazes de reagir a uma situação social opressora.

A carência é objetivada em comportamentos e atitudes,  como, na ansiedade e na falta de informação, na necessidade de falar e expressar os problemas do cotidiano, na incapacidade para educar e para ser educada. O conteúdo subjacente a esse tipo de discurso é composto pelo seguinte ciclo de causalidade simples: pobreza - desnutrição - falta de informação - baixos níveis de desenvolvimento – filhos pouco capazes.

Esta categoria merece exemplificação, em função do seu conteúdo específico:

O que eu procuro fazer é orientar a mãe o mais possível, mais em virtude da baixa condição da própria mãe, de aprendizado também, porque elas vêm de uma... de uma criação idêntica, com pouca evolução, é difícil você transmitir.(Prof. 5)

Porque tem pessoas... eu acho que tiveram um mal desenvolvimento, então tem uma outra cabeça, mal desenvolvida, então não se preocupa tanto. As que tem a cabeça mais desenvolvida, porque aí não tô falando crescimento, tô falando mentalmente, são as que tem mais... elas se preocupam, elas cuidam, elas fazem. As que não têm, num ligam e não tomam conhecimento. (Prof. 22)

Na hetero-representação, que define as usuárias dos serviços como Interessadas e com Experiências para Trocar, as mulheres são representadas como usuárias que buscam os serviços em função de necessidades específicas, mas que respondem às iniciativas institucionais quando estabelecem uma relação de confiança com as propostas institucionais.

Durante a pesquisa, os profissionais afirmaram valorizar o conhecimento e as experiências acumuladas pelas mulheres, atribuindo a dificuldade de relação profissional-usuário à forma de comunicação estabelecida. As estratégias não diretivas e participativas de comunicação são valorizadas, em oposição a simples transmissão de informação. O sucesso ou insucesso das estratégias de intervenção desenvolvidas pelos profissionais é atribuído, diferentemente da categoria anterior, às dificuldades operacionais dos serviços e ao processo de comunicação utilizado e não a características ou limitações da população.

elas usam os termos delas, as palavras delas, mas têm experiências para serem trocadas... quando você tem um tempo maior de sentar, conversar, discutir, não no sentido de impor nada, mas no sentido de ela [a mãe] também descobrir, eu acho que através disso que eu consigo interferir, de outra forma não, através de informações simples.(Prof. 9)

Essa última concepção não encontra respaldo em outros estudos acerca do tema, na medida que essa categoria está ausente de estudos como os de Bourdieu (1989), Boltanski (1974), Gonçalves (1986), que identificam a carência e a limitação como traços típicos da relação institucional presente entre, por exemplo, médicos pediatras e classes populares. Essa constatação relaciona-se com aspectos parciais de realidades e processos históricos particulares.

A constatação anterior pode, ainda, levar a supor que, diferentemente de outras ações da tradicional puericultura, a questão do desenvolvimento infantil, se não reduzida ao esquema biológico de explicação, não é de domínio de médicos pediatras, que buscam responsabilizar-se por ele, a despeito da tentativa de inclusão dessa questão nos programas de saúde desenvolvidos no país a partir dos anos 80.

Quadro 5: Sistema articulado de unidades de sentido relativo a hetero-representação dos profissionais de saúde sobre o conhecimento das mães sobre o desenvolvimento infantil.

Considerações finais: o desenvolvimento infantil como espaço de produção de sentido e de transformação de representações e práticas entre profissionais

A aproximação das categorias reveladas ao conhecimento científico parece inegável, não tendo sido observada uma simples retradução desse conhecimento nas representações dos profissionais. Parecem ainda não explicitadas as complexas relações estabelecidas entre o conhecimento científico, o conhecimento do senso comum e o conhecimento técnico dos profissionais atuantes nos serviços de saúde. Assim, deve-se reconhecer, também, a similaridade das categorias analíticas encontradas e aquelas obtidas em estudos realizados visando a caracterização do conhecimento do senso comum (Carugati Emiliani & Molinari, 1990, 1992; Oliveira, 1991a, 1991b).

            Da mesma forma que o desenvolvimento infantil envolve relações específicas do binômio mãe-criança entre si e deste com o mundo material, social e cultural que o inscreve, o conhecimento científico e o técnico-profissional apresentam-se, igualmente, como parte integrante desse contexto de relações.

Se, em relação ao conhecimento científico, a literatura especializada pôde explicitá-lo, em nível de discursos publicados, o mesmo não ocorre em relação ao discurso técnico-profissional e ao do senso comum. Mediados por determinações de diferentes ordens - econômicas, políticas, ideológicas e pela subjetividade dos grupos sociais - apresentam-se como conhecimentos não desvendados, obscurecendo, com isso, as próprias possibilidades de desenvolvimento de tecnologias de trabalho inovadoras no campo que atendam à especificidade do objeto e, portanto, da relação teoria-prática.

A escolha do conceito de representação social como diretriz de análise do tema embasou-se no pressuposto da existência - no núcleo da problemática da intervenção sobre o desenvolvimento infantil no campo da Saúde Coletiva – de relações complementares e de conflito entre o conhecimento do senso comum e o conhecimento técnico-científico produzido pela área (Bourdieu, 1989; Donnangelo & Pereira, 1976; Althusser, 1980). A maior parte dos conceitos, analogias e metáforas produzidas pelo conhecimento científico constitui uma massa de conhecimentos que diz respeito ao universo do senso comum apenas indiretamente, posto que não está ligado a sua experiência empírica, sendo muitas vezes conflitante com ela. O problema não se esgota na decodificação do conhecimento científico e na sua incorporação pelo senso comum. Pela sua natureza, as representações têm suas origens no interior das formações sociais concretas, no curso das comunicações intergrupais, nos valores e nos conceitos transmitidos / recebidos / transformados na dinâmica histórica. (Moscovici, 1988)

As relações existentes entre as práticas profissionais e as representações são complexas, não importando o ângulo a partir do qual as vemos. Dessa teia de relações, participam pelo menos três elementos: o ponto de vista do profissional sobre o objeto da sua prática (suas representações), o contexto institucional em que essa prática se desenvolve e as demandas trazidas pela população atendida.

No que se refere às representações dos profissionais e às demandas da população, pode-se afirmar que elas mantém entre si relações contraditórias, ora de cumplicidade, ora de oposição e conflito. Como afirma Lefèvre (1989, p.183): o usuário, na qualidade de portador do ponto de vista do indivíduo vivendo em uma dada sociedade, está sempre envolvido com o ponto de vista do social e com o ponto de vista dos médicos, em relações de submissão, rebeldia, hegemonia etc.

A dinâmica particular forjada no exercício cotidiano de uma determinada prática de saúde - no caso os processos de intervenção sobre o desenvolvimento infantil - é composta pelo ponto de vista do usuário, interagindo com a visão de mundo dos técnicos, configurando, como colocado anteriormente, relações complexas de hegemonia, de alianças, de transgressão, de submissão, de poder e de contra poder.

A despeito da relativa aceitação da relação entre possuir conhecimento e deter poder, tal associação não se dá de forma mecânica no pensamento do senso comum. Afirma a respeito, Adorno et al.(1987, p.408):

o saber ocupa espaço importante  na hierarquia que o senso comum constrói, ordenando quem pode mais ou quem pode menos. Este poder ... coloca-se na esfera do cotidiano, na esfera das relações entre as pessoas e as instituições, entre elas a saúde, a educação, os serviços públicos. O poder dizer sobre está próximo do prescrever para o outro e colocá-lo sob controle. Para o outro o poder está em usufruir desta relação com quem pode.

Quanto às representações dos técnicos sobre as motivações maternas, conforme discutido, pode-se afirmar que estes concebem as usuárias dos serviços de saúde como aquelas mães que não sabem, em oposição aos profissionais que detêm o saber. Manifesta-se, neste perfil representacional, o que Bourdieu (1989) define como o exercício da violência simbólica, que se expressa no conteúdo das representações analisadas. Não se configurou, no entanto, uma força que detivesse o monopólio da violência simbólica legítima, capaz de colocar no saber técnico-profissional (e por extensão o científico), o saber por excelência. No entanto, os dois grupos de profissionais estudados buscam o exercício desse tipo de violência como forma de legitimação do próprio saber.

Procurou-se caminhar na direção do desvendamento da configuração do campo social sistema de cuidados de promoção do crescimento e desenvolvimento, através das representações que lhe estão subjacentes e que o explicitam. Isto pode ser observado no quadro 6, em que resumem os conteúdos da hetero-representação profissional. A violência simbólica se expressa na oposição das representações maternas e profissionais, especificamente no predomínio das categorias carentes e limitadas e desamparadas socialmente presentes na representação profissional.

Quadro 6: Categorias empíricas relativas a auto e hetero-representação de mães e profissionais de saúde sobre o conhecimento associado ao desenvolvimento infantil.

 

O cotidiano é vivido pelos atores sociais estudados com toda a força da contradição implícita ao modelo social brasileiro. Mulheres e crianças são submetidas à lógica perversa do modelo assistencial adotado e vivem uma relação de confronto permanente com as instituições públicas de saúde e, consequentemente, com os profissionais que nelas trabalham. Por sua vez, os profissionais de saúde enquanto representantes institucionais vivem uma permanente relação de conflito, marcada por expressões de perplexidade e culpa, com as instituições que representam e também com a população usuária dos serviços.

Dentro da proposta central deste trabalho, encontra-se a necessidade da área de saúde coletiva de redefinir a relação teoria-prática contida nas estratégias de ação que norteiam as políticas do setor de atenção à saúde criança. Configura-se, atualmente, um desafio para o setor saúde: desenhar políticas públicas que promovam a saúde da criança e que criem condições para que todos possam crescer e desenvolver-se. Além disso, deve-se eliminar os pressupostos básicos das políticas antigas, sintetizados a seguir: as políticas públicas de assistência à saúde são constituídas por um conjunto de ações, fundamentadas no conhecimento científico, a serem operadas por profissionais de saúde, com vistas a produzir efeitos concretos nos objetos destas políticas - os usuários dos serviços de saúde - aos quais está reservado o papel de cumprir as determinações dos profissionais de saúde, instrumentos estes da ação científica.

Notas

Professora Titular da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

** Professora Associada da Faculdade de Saúde da Universidade de São Paulo.
1 Este trabalho foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pelo  Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).

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Abstract

This work analyzes the social representations and its interface with the professional practices, driven to the promotion of the child development. 24 semi-structured interviews were accomplished, with professionals of two services of health, in São Paulo. The technique of content analysis was used, through which was looked for to reconstruct the institutional and political contexts us which the representations and the practices are constituted. The results present data on the exercise of the "symbolic violence" in the daily of the professionals, as well as it discusses the relationships established between practices and representations, resulting of there the characterization of institutional positions, defining a "geography of the relationships" among work teams. It is ended that the study of the professional practices returned to the child's health, it can be accomplished through the theory of social representations, once that study object isn't drained in the analysis of the process health-disease, but it demands new paradigmatic definitions to implement the concept of "health promotion".

Keywords:

Social representations, child development, health profissional practices, social health.

Recebido em: 17/07/01

Aceito para publicação em: 14/12/01

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