Em Memória

 


A Psicologia é uma Ciência que Ajuda a Entender a História e o Homem Atuante1



Eliezer Schneider*

 

 

 

A suposta origem única, isto é, monogênica, de espécie humana, deveria – pelo menos teoricamente – influir de modo substancial no entendimento, na cooperação, no que une as criaturas humanas. Mas mesmo que fosse poligênica a origem homínida, é lícito esperar da espécie resultante, atual, um pouco mais de entendimento e de respeito mútuo. Afinal, na natureza, várias espécies diferentes se aproximam e convivem harmoniosamente, algumas até coabitam e estabelecem laços afetivos (bastando lembrar, neste último caso, o exemplo milenar da proximidade entre o homem e o cão). Contudo, as agressões e as guerras são, entre homens, mais antigas que os fenômenos de fraternidade entre as espécies. São antigas, e persistentemente duradouras, e constantes e diversificadas, cada vez mais atuantes na sua ação destrutiva.

As guerras anulam os sonhos, alteram a realidade, modificam o comportamento do homem. O drama agrava-se: após a guerra eclodem revoluções, estouram guerras novas, civis ou interestatais, surgem ditaduras repressivas. No fundo, o homem não consegue voltar aos valores que a guerra anulou, não precisa perpetuar, na paz, os valores que a guerra criou; e ignora quais são os valores novos a seguir.

Nessas épocas turbulentas, a literatura e a oratória despojam acusações caluniosas contra os adversários políticos ou os que poderiam vir a sê-lo, contra os judeus e outros grupos minoritários razoavelmente afastados do convívio com a maioria para que fossem facilmente escolhidas como bodes expiatórios – o que acontece, com o uso de adjetivos diferenciados, tanto no sistema nazista de Hitler, quanto no sistema bolchevista de Stalin. Nas campanhas políticas (ditas ideológicas) dos sistemas totalitários, como o foram os dois sistemas que acabamos de citar, tal procedimento torna-se rotineiro, e a difamação delirante e paranóide passa a ser prática diária, pouco importa que abrangendo a união Soviética, “os burgueses e os capitalistas”, na Alemanha nazista “os judeus e os comunistas”, e, no mundo atual “os sionistas e os imperialistas.” É sempre a mesma metodologia difamatória, dirigida contra os grupos ignorados mas definidos segundo os estereótipos e conduzida segundo os cânones da manipulação da massa, psicologicamente apta a aceitar a diretriz paternalista que exime individualmente da responsabilidade.

As massas, em grande maioria, identificam-se sempre com os valores, programas, emblemas, líderes, hinos e supostos compromissos nacionais, alvos religiosos, solidariedade de classe ou grupo que está sendo delineada e definida – e manipulada – de conformidade com os interesses hegemônicos prevalecentes. Todas estas rivalidades intergrupais conduzem a guerra, invasões, subjugações, aniquilações físicas dos inimigos reais ou em potencial. Mas o ato de desnudamento dos resquícios possivelmente arquetípicos da agressividade individual latente, a aprendizagem social que conduz o indivíduo a um uso especificamente dirigido desta violência armazenada e acalentada, a motivação para que surja o momento em que possa ser desenfreada impunemente esta agressividade, tratada pelo poder/pai como um ato heroizante e como reforço comportamental, eis uma série de fenômenos classicamente psicológicos. Também beiram a Psicologia os problemas relacionados com a identidade nacional, fenômeno intragrupal, que envolve proximidade (territorial e humana), comunicabilidade (lingüística e gestual), associação (de interesse pragmático e idealizador), unidade (de leis normativas e de cultos metafísicos), de cultura comum que engloba a tradição e a História. Ora, todo este conjunto de fatores concerne a motivações instintivas e arquetípicas, afetivas e valorativas, reforçadas pela socialização familiar e escolar. A História se entrelaça, na análise dos eventos humanos e do comportamento das pessoas, com a Psicologia.

É fácil, para os detentores do poder, apelar aos sentimentos nacionais dos membros do seu grupo, quando o sistema hegemônico que eles representam parece-lhes ser ameaçado por algumas forças que são estranhas ao grupo líder. A força motivacional do nacionalismo tem sido empregada, empírica mas eficientemente, pelas lideranças cívicas e políticas na manipulação das massas e das elites de forma talvez diferenciadas, mas sempre com alvo uno. A personificação dos sentimentos nacionais permitiu mistificar as massas de maneira pseudo-ideológica, dos quais vivemos, recentemente, exemplos por demais numerosos: Mussolini, Hiltler, Stálin, e por que não Mao-Tsé Tung? E por que não Ho Chi-Minh? E por que não Pol Pot, Brejnev, Hodxha, Tito e Idi Amin? Os espectadores, talvez, possam estranhar a comparação em pé de igualdade de um Idi Amin com Mao Tsé-Tung. Para as vítimas, pouco importa a procedência fabril ou a pintura ideológica da bala que mata. Poucos lhes importa que o muro a cuja beirada cairão se chame ‘paredón’ de Havana, ‘muro’ de  Berlim ou ‘gueto’ de Varsóvia.

Uma civilização de alta produtividade e de riquezas fartas, de tantos recursos que facilmente poderia promover o bem-estar das populações dos países desenvolvidos e em desenvolvimento (como os chama o eufemismo popular), seria tranqüilamente capaz de preparar os homens para a paz e para a concórdia universal – em benefício de todos.  Mas estes ‘todos’ se segregam em grupos, e se autoconfiam, e só descobrem os encantos de eventual intercâmbio, quando ele os favorece pragmaticamente. Ora, o ‘ter' e o ‘possuir’ – ponto de partida para a conquista e, se necessário e útil, para a convivência e intercâmbio – não constituem, também estes dois fatores, elementos de pura Psicologia? Afinal, este anseio do homem, que aparece em certos grupos, não depende do sistema social implantado pelo regime em nome de alguma ideologia dogmaticamente mistificadora, como sói acontecer com o marxismo por exemplo. O ‘ter' e o ‘possuir’ não conseguiu convencer as massas xiitas do Irã, mas está profundamente implantado entre as massas marxistas (será que elas são mesmo marxistas?) da União Soviética. É psicologicamente igual o Iémen do Sul “marxista-lenista” e a Cuba hispano-afro-americana? A Polônia católica e ocidental e a Mongólia asiática e (como o nome prova), mongol? Além do sistema, da política e do poder há a natureza do homem. E aí é que entra em jogo histórico a Psicologia.

Agressões e contra-agressões, medo e pânico, estereotipias e mitos têm dominado tanto o comportamento de grupos quanto dos seus líderes, de suas elites, de suas massas, de suas maiorias e de suas minorias. Compreende-se o interesse dos historiadores pela complementação psicológica da História. Principalmente agora, quando aumenta, aprofunda-se e se reforça o clima paranóico no relacionamento entre as potências e os países e as ideologias que estes países supostamente professam usando-as como instrumento justificador a posterori do seus atos. Não tem sentido que os historiadores, antropólogos, cientistas políticos, sociólogos, psicólogos e quejandos se fechem, cada qual, em sua respectiva especialidade, ignorando a realidade humana – isto é, conjugada – vivida na ampla tragédia, contemporânea da paranóia do poder.

Se o medo e o ódio, o orgulho e a valentia, a ignorância e a mentira, as intrigas e as difamações corriqueiramente entorpecem a capacidade humana de raciocinar, moldada – e tolhida – por sistema político que a rege num determinado momento e lugar, a ponto de barrar-lhe a capacidade de questionar e de duvidar, o papel do cientista social, do cientista político e do cientista humano (a começar pelo psicólogo) torna-se fundamental na tarefa da desmitificação da hipocrisia dogmatizante, imposta em nome de subterfúgios ideológicos, econômicos, religiosos ou filosóficos – subterfúgios que tentam transferir aos “outros” as culpas pelos próprios fracassos, ou pela própria inépcia, ou pelo próprio anti-humanismo, pouco importando que estes “outros” sejam “capitalistas” num sistema, “judeus” num regime, “sionistas” numa ideologia ou “subversivos” num Governo. Porque entre todos estes grupos manipuladores, e entre os homens e a História, existe um elemento comum: a paranóia. E quando se abusa dos sentimentos e das emoções, da esperança e da confiança, da insegurança e da sugestibilidade, da rivalidade e da inveja, da intolerância e da rigidez, da ambição e do chauvinismo, da megalomania e do sentimento de superioridade (que pode ser chamado de racismo), é preciso incluir o psicólogo para desvendar a História.

O meu e o seu, o nós e os outros, os que devem ser “salvos” e os que são de antemão condenados, os puros e os conspurcados, os justos e os traidores, os progressistas e os reacionários, os libertadores e os imperialistas, os que aplicam a justiça e os que assassinam, os dominados e os dominadores – que estranha divisão da humanidade que vivemos neste século XX. O fato de esta generalização revestida de nome “ideologia” e “progresso” ter surgido nas mentes quantas vezes doentias, desequilibradas e psicopatas (não seria útil analisar estas personalidades criadoras?). É tão importante quanto um outro fator: o fruto destas mentes fanáticas, psicopatas, sádicas, ególatras e tirânicas é passivamente aceito não só pelas massas (das quais se supõe que não pensam), mas até pelas elites (das quais se propala que renovam). Isto não prova uma propensão à paranóia em estado coletivo?

A tarefa do psico-historiador? Ei-la. Conhecer o comportamento humano na busca da paz, concórdia, amizade e tolerância em escala individual, governamental, estatal e nacional; desvendar este mesmo comportamento quando leva à agressão, invasão, anexação, genocídio, guerra, massacre, naufrágio imposto aos vietnamitas de origem chinesa, fome imposta aos cambodjanos, extermínio preconizado dos israelenses, incorporação imposta aos afegãos; analisar, e esmiuçar o comportamento atuante dos líderes e comportamento da passiva submissão das massas que, quantas vezes por pusilanimidade assumida, transforma-se num corpo inerte de atuação incontrolável e incompreensiva. Incompreensiva para os cientistas que operam com lógica e com fatos. Mas perfeitamente compreensiva para os cientistas que operam com o homem e o seu comportamento. A psico-história pode abrir o caminho para que se endireite o torto desenrolar da evolução da Humanidade.

 

Notas

1Formado pela Faculdade Nacional de Direito, seu interesse pela Psicologia o levou a fazer o Mestrado nesta área na Yowa University (1947), tornando-se um dos primeiros brasileiros com escolaridade formal em Psicologia. Um dos pioneiros da Psicologia no Rio de Janeiro, sua principal atuação foi na docência, notadamente em Psicologia Social, área que sempre procurou articular com as demais Ciências Humanas e Sociais. Atuou em várias instituições, tendo contribuído para a criação dos primeiros cursos de graduação (UERJ, UFRJ, UGF, FAHUPE) e de pós-graduação (ISOP/FGV), além de atuação no processo de regulamentação da profissão e dos cursos. Dono de uma vasta produção intelectual traduzida principalmente em artigos, ocupou também vários cargos administrativos, dentre os quais o de primeiro diretor do Instituto de Psicologia e Comunicação Social da UERJ (1971/1976).

 ** Texto originalmente pubicado no Jornal do Brasil, Caderno Especial. Domingo, 24 de fevereiro de 1980, p. 3

*Eliezer Schneider (1916/1998)