Editorial

  


Publicando em Psicologia: a urgência de novas construções teóricas


 

Ana Maria Jacó Vilela

Ariane Patrícia Ewald

Deise Mancebo

Eleonôra Prestrelo*

 

 

 

O mundo vem passando por novas ordenações políticas, econômicas e sociais, que de modo mais ou menos intenso, vem afetando grupos, comunidades, territórios nacionais e nossas subjetividades. Tais mudanças pautam desafios para as ciências sociais e humanas, possivelmente inéditos, exigindo-lhes investigações e a construção de análises que dêem conta das mutações aceleradas e profundas, ocorridas com maior intensidade nas últimas três décadas.

A literatura sobre a produção de conhecimento científico e tecnológico no contexto global também aponta para profundas transformações. Pode-se afirmar que o acesso ao conhecimento sempre teve importância na luta competitiva, mas no atual contexto advêm novas ênfases. As rápidas mudanças de gostos, necessidades e dos sistemas de produção flexíveis implicam uma corrida para o desenvolvimento da última técnica, para a aquisição da mais recente descoberta científica, como um fator vital para que as corporações adquiram uma vantagem competitiva. Desse modo, a produção do conhecimento ganha notável expansão, ao mesmo tempo, que o saber assume contornos de mercadoria-chave, nem sempre desejáveis especialmente quando se considera as conseqüências humanas dessas empreitadas.

É imperioso, portanto, produzir uma reflexão teórica e crítica sobre o momento em que nos encontramos e de o fazê-lo de modo a captar a complexidade dos fenômenos que envolve e a disparidade dos interesses que neles se confrontam, o que no caso da Psicologia e áreas afins remete inevitavelmente à análise dos efeitos de subjetivação que emergem numa sociedade que se globaliza.

As sólidas identidades, que por séculos apresentaram-se como capazes de estabilizar diversos aspectos do mundo social, encontram-se abalroadas. O indivíduo moderno, que por caminhos diversos almejava uma unificação e harmonia subjetivas – ou que pelo menos acreditava nesta possibilidade – surge, no presente contexto, com “identidades” fragmentadas, “descentradas” ou deslocadas. Descreve-se uma acentuação da velocidade, da volatilidade e efemeridade de produtos, modos, técnicas de produção e também de idéias, valores, ideologias, práticas e relações sociais, atribuindo-lhes a responsabilidade pela fluidez ou “liquidez” (Bauman, 2001) subjetivas contemporâneas.

Existem até os que afirmem que essas imagens remetem ao fim da figura moderna da subjetividade, pelo menos aquela construída em torno de uma referência identitária, e ressaltam a possibilidade dos corpos abrigarem estados múltiplos, com novos recursos para a criação. Enfim, destacam uma época em que a criação individual e coletiva poderiam ser aceleradas.

No entanto, a questão não é tão simples e não são poucos os que chamam atenção para o fato de que a mesma globalização que intensifica as misturas e pulveriza as identidades até então localizadas pode pôr em cena uma homogeneização das figuras da subjetividade. Deste modo, teríamos indivíduos homogeneamente globalizados, flexíveis e descartáveis, preparados para rapidamente se desalojarem e substituírem suas cartografias subjetivas. Também não são raros os que atentam para o fato de que a desestabilização exacerbada pode apontar para o risco de sentimentos de vazios de sentido, para vivências de fracasso, despersonalização e até loucura. Assim, pôr-se em contato com novas e múltiplas realidades, ao invés de desenvolver um movimento produtivo e inovador, desencadearia uma vivência traumática diante do desassossego trazido pela desestabilização.

Por certo que a academia tem buscado respostas e análises para todo este quadro, possivelmente tentando acompanhar a mesma velocidade com que se vê assaltada. Dados citados por Yamamoto (2001) impressionam: “estima-se que cerca de um milhão de revistas científicas sejam publicadas anualmente no mundo, totalizando algo entre seis e sete mil artigos científicos sendo escritos diariamente” (p. 129). No entanto, o autor complementa que tal “profusão de títulos eventualmente testemunho de um espetacular vigor da produção de conhecimento, nem sempre é acompanhada da obediência aos padrões necessários de qualidade para uma publicação científica” (p. 129), ao que acrescentaríamos, do rigor crítico necessário a um empreendimento editorial.

Estudos e Pesquisas em Psicologia vem tentando uma mudança no seu quadro editorial - nem sempre em meio a condições absolutamente favoráveis - que aponte para um empreendimento cultural de qualidade e que possa contribuir com aquelas análises tão urgentes no campo das ciências humanas e sociais. Devido a estas dificuldades, não foi possível publicar o v.1, n.2. Em função disto, apresentamos o v.2, n.1, no qual já se podem notar algumas mudanças pensadas para o aprimoramento da revista.

 Neste número, contamos com oito artigos, duas resenhas e duas comunicações. Denize Cristina de Oliveira e Augusta Thereza de Alvarenga colaboraram com uma análise das representações sociais e sua interface com as práticas de profissionais de saúde dirigidas à promoção do desenvolvimento infantil. Fernando C. Capovilla e Alessandra G. S. Capovilla analisam problemas de leitura-escrita, a partir da hipótese do déficit fonológico sugerindo a eficácia de procedimentos educacionais e clínicos nela baseados. Jane A. Russo nos apresenta um artigo histórico onde trata do processo de difusão social da Psicanálise em terras brasileiras no período anterior à sua institucionalização, isto é, à fundação das sociedades de formação. Rogério Centofanti também nos apresenta um artigo histórico sobre o pensamento e obra do italiano Ugo Pizzoli. Andréa Hortélio Fernandes discute o tratamento dado à relação mãe-criança pela Psicanálise. Carla Mourão trata da análise de alguns aspectos das políticas de drogas no Brasil e em alguns países europeus, abrindo uma discussão profunda sobre os fundamentos ideológicos do “combate às drogas”. Arthur Arruda traça uma discussão sobre a própria Psicologia que, a despeito de almejar-se científica, possui uma multiplicidade de orientações constituindo-se numa máquina de múltiplas capturas. Carmen Luiza Hozanna Ferreira e Maria Cristina Ferreira apresentam um estudo comparativo sobre a expressividade e a instrumentalidade em mulheres negras e brancas. Maria Beatriz Lisboa Guimarães faz uma comunicação sobre a sua tese, na qual analisa a questão da cura e do cuidado na cultura ocidental contemporânea. A comunicação da pesquisa de Ana Cristina Figueiredo e colaboradores trata do desafio de sustentar uma clínica psicanalítica e sistematizá-la no âmbito da pesquisa universitária. Por fim, os livros de Kurt Danziger -  Naming the mind: how Psychology found its language – e de Jorge Coelho Soares – Marcuse: uma trajetória – são resenhados por Judith Zuquim e por Blanca Muñoz, respectivamente.

A qualidade e a diversidade de temáticas contempladas nos trabalhos desta Revista atestam a sintonia dos diversos colaboradores com as questões contemporâneas, bem demonstrando as possibilidades analíticas que um empreendimento editorial pode açambarcar, a despeito das dificuldades enfrentadas.

Finalmente, gostaríamos de prestar um agradecimento muito especial aos consultores que participaram da avaliação dos manuscritos, ao longo do primeiro ano da Revista. Sem a sua inestimável colaboração, não teríamos a garantia da qualidade editorial deste periódico.     

 

 

Referências Bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

YAMAMOTO, Oswaldo H. Vale a pena avaliar periódicos científicos? Estudos de Psicologia, v.6, n.2, p. 129-130, jul/dez. 2001.