Comunicação de Tese


Intuição e Arte de Curar: pensamento e ação na clínica médica


Maria Beatriz Lisboa Guimarães*

 

 

 

Pensamento e ação na clínica médica

 

A tese a ser apresentada constitui-se em um estudo de natureza teórico-conceitual que pretende contribuir para a análise da questão da cura e do cuidado na cultura ocidental contemporânea. Partimos de uma hipótese inicial que preconiza a existência de uma crise, em termos sócio-culturais, na sociedade ocidental, envolvendo as relações da sociedade com a medicina hegemônica (Luz, 1988 e 1997; Camargo Jr., 1995).

Neste contexto, um dos fatores de insatisfação dos usuários em relação aos serviços públicos de saúde estaria relacionado, de acordo com Luz (1996), ao fato de que durante o processo de afirmação da racionalidade científica como base da cultura ocidental moderna, houve um percurso progressivo de separação entre os dois eixos básicos que constituem o núcleo central da medicina, isto é, a arte de curar e o conhecimento das doenças.

Procuramos mostrar que a medicina ocidental vem, nos últimos séculos, dirigindo seu olhar para a ciência das doenças, devido ao seu grau de determinação e objetividade; e deixando de lado, em contrapartida, a arte de curar, que implica uma certa criatividade, pois exige do terapeuta mais do que apenas assimilação de conhecimento, exige sensibilidade e intuição para lidar com o novo, o contingente e o desconhecido. Habilidades que o terapeuta necessita ter, pois o trabalho médico, como mostrou Lilia Schraiber (1997), é uma estrutura instável, na medida em que lida de forma particular com cada indivíduo, a cada vez em que procura os serviços de saúde.

Este trabalho insere-se numa perspectiva mais ampla situada no campo da Saúde, que propõe a retomada da prevenção da doença e a valorização da consulta médica e da relação médico-paciente - tomados como elementos importantes no processo de cura. Pretendemos, com esta pesquisa, realçar o valor da terapêutica e apresentá-la como elemento fundamental da medicina e pilar da prática médica; que conjuga, em seu saber, uma instância voltada para a ciência e para a técnica, com seus conhecimentos descritos e classificados, e outra que compartilha a experiência do viver com a arte de curar.

Esta pesquisa também procurou mostrar ser o paradigma técnico-cientificista a reger a medicina atual insuficiente para dar conta da questão da cura. A prática clínica é uma forma de ação que escapa ao modelo da filosofia clássica e aos ditames da ciência moderna, sobretudo a aplicada à medicina, uma vez em que reduz a prática médica a intervenções mecânicas e técnicas, centradas na doença e não no indivíduo doente. Não podemos subestimar o valor da técnica e da ciência para a medicina e para o aumento da qualidade e expectativa de vida das pessoas, não se trata de superá-las. Mas levar em conta somente estes aspectos do adoecimento é não estar atento para a totalidade da vida, não sendo, com isto, fiel à completude do real.

A medicina ocidental especializou-se tanto que os médicos estão despreparados para lidar com o indivíduo como um todo, não conseguindo sair dos limites que circundam os sintomas das doenças. O diagnóstico é baseado em exames, pois não se consideram o feeling, o olhar clínico e a intuição do terapeuta. Este, por sua vez, não está preparado para usar este tipo de percepção, e mesmo quando ela se coloca, é muitas vezes desacreditada.

No contexto dessa pesquisa, nosso objetivo específico foi trabalhar com a categoria da intuição como elemento básico do conhecimento da prática terapêutica, através da análise do processo que se manifesta em terapeutas e pacientes ao longo do tratamento. Servimo-nos, para tanto, do Método Intuitivo proposto pelo filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), visando colocar os limites de um pensamento estritamente racional e propondo a transposição deste método para a instância da clínica médica.

A categoria da intuição, que optamos por utilizar neste trabalho, não pode ser pensada dentro de uma visão de mundo estática e formatada por modelos, como instituiu a técnica e a ciência. Ela implica necessariamente, como postulou Bergson, uma concepção de mundo como fluxo, processo, transformação, inacabado, onde o que passou nunca será o mesmo que virá; como já dizia Heráclito: “para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas”.(Bornheim, [1980]: 36). 

É neste nível ou plano do acontecimento e da experimentação, daquilo que está se dando ou ainda do devir, denominado de plano de imanência pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992), que o nosso pensamento se norteará para trabalhar com a categoria da intuição.

Uma exposição criteriosa do método proposto por Bergson extrapola os limites desta comunicação. No entanto, não podemos deixar de apresentá-lo, mesmo que em linhas bem gerais. Bergson (1974) parte do pressuposto de que a realidade é contínua e indivisível, um eterno fluxo sempre em movimento. E afirma existirem duas formas de conhecimento, colocadas lado a lado, constituindo duas direções divergentes da atividade do pensamento: uma, que é obtida pela inteligência e outra, pela intuição. A primeira visa inserir o ser humano no mundo material de forma eficaz; sua função básica consiste em presidir ações. Para Bergson, toda nossa existência tem, basicamente, como objetivo à satisfação das nossas necessidades e interesses práticos. A inteligência acessa a realidade abstraindo os momentos fixos e transformando-os em conceitos pela combinação com conceitos já existentes, que são como desdobramentos dos nossos sentidos, auxiliares de nossas ações.

A inteligência, quando destinada à satisfação de interesses materiais, isto é, aplicada ao terreno prático, é eficaz; o problema se coloca quando ela se propõe a dar a chave do conhecimento do real tal como ele é em si. Pois, para Bergson, a realidade se apresenta como um perpétuo devir e a inteligência, ao fixar o real em representações esquemáticas, enquadrando-as em categorias fixas e imutáveis, perde o movimento que caracteriza o real. O erro da inteligência é pensar que o real já está dado. Ao contrário, ele devém a cada momento, e o faz diferenciando-se.

Com o intuito de reprimir as ilusões da inteligência, Bergson propõe então, uma apreensão imediata da realidade, que só se viabiliza por meio da intuição. Explorando a categoria da intuição, o autor elabora o seu método filosófico.

De acordo com este autor, pensar intuitivamente é pensar na duração, pois o objeto da intuição é o próprio tempo, ou seja, a duração, uma vez que a essência da realidade está na mobilidade, na própria passagem do tempo. Para este filósofo, a imagem de um acontecimento passado coexiste com o presente que passa, sendo esta a experiência da duplicação. Para que a intuição possa emergir, é necessário se desinteressar da vida prática e saber ver a passagem do tempo em seu duplo jogo simétrico, ou seja, estar presente no aqui e agora, sentindo a passagem do tempo.

Desta forma, o autor propõe um acordo entre a inteligência e a intuição fundando o método em que a inteligência se torna crítica, na medida em que passa a reconhecer suas ilusões e permitindo, com isso, uma melhor compreensão da realidade, pois trabalhará com conceitos nascidos nas condições de possibilidade da experiência real que é o próprio campo intuitivo. Estas duas formas de pensamento não seriam, portanto, excludentes, mas sim complementares, ambas necessitando da experiência para se exercerem.

Após esta breve apresentação, cabe mencionar que esta tese constitui-se em um estudo interdisciplinar com dois eixos de narrativa: um no campo da filosofia, onde importamos determinadas categorias deste campo para o campo da saúde coletiva, e outro no plano da análise da sociologia do conhecimento ou da cultura que se deu, neste caso, na instância do discurso da clínica.

Além de Henri Bergson, recorremos também a outros filósofos, Gilles Deleuze e Félix Guattari foram, assim, outros dois teóricos que nos orientaram neste traçado. Destes autores, trabalhamos as noções de plano de imanência, corpo sem órgãos e devir. E, somente de Deleuze, trabalhamos a nova imagem do pensamento e o acontecimento (trazida pelos estóicos). Em seguida, nos encantamos pelo pensamento tradicional chinês que nos foi desvendado pelo filósofo e sinólogo contemporâneo François Jullien. Aqui, o que mais chamou-nos a atenção foi a categoria de insipidez, tão essencial para se trabalhar a intuição.

Ao falarmos de conhecimento intuitivo, não podíamos deixar de mencionar os três gêneros de conhecimento propostos por Baruch de Espinosa. Com sua noção ampliada de razão, que não deixa de levar em conta o momento presente, singular e único onde a razão é aplicada, e que requer, com isto, do sujeito que pensa algo mais do que foi aprendido, ou seja, uma sensibilidade às circunstâncias do momento presente, Espinosa empreende um outro olhar sobre a apreensão do conhecimento, mais humana e libertadora do que nos acostumamos a conceber.

 Cabe mencionar um outro autor que, neste caso não é filósofo mas historiador, que contribuiu para dar consistência ao método de apreensão de conhecimento via intuição. Carlo Ginzburg foi essencial ao nos trazer o paradigma indiciário da semiótica.

O segundo eixo do trabalho constituiu, num primeiro momento, na procura em diferentes bases de dados da medicina e das ciências sociais, disponíveis em bibliotecas e através da Internet, de artigos que tratassem do tema da intuição na prática terapêutica. Este trabalho consistiu em uma metanálise, isto é, em uma pesquisa realizada em diferentes bancos de dados, com a mesma metodologia (palavras-chave, anos pesquisados) para cada base de dados, tendo sido analisadas todas as fontes obtidas. A palavra-chave utilizada foi intuition e a data mínima aceitável foi o ano de 1970; os filtros metodológicos foram as línguas inglesa e portuguesa1.

Analisamos 43 artigos que conseguimos obter, sendo 21 de enfermagem (50% do total), 12 de Medicina (28% do total) e 10 referentes às áreas “psi” (22% do total). Todos têm em comum a abordagem da questão da intuição na clínica médica, sob um ponto de vista prioritariamente prático. A análise destes artigos nos proporcionou uma grata surpresa, pois constatamos que eles enfatizavam determinados pontos que havíamos levantado previamente, em termos teóricos, através dos textos filosóficos e sócio-históricos.

No contexto atual da clínica médica presenciamos um certo esgotamento do modelo dominante. Assim, acreditamos que este Método Intuitivo presta-se a ser aplicado na esfera da clínica médica, uma vez que ele trabalha tanto com o conhecimento racional acumulado pelo saber médico, quanto com o imprevisível que permeia a relação terapeuta-paciente, sem deixar de levar em conta a subjetividade e os elementos imponderáveis ou muito sutis que estão sempre presentes na vida de qualquer indivíduo, e especialmente nas doenças contraídas pelos sujeitos. Sua singularidade recai, sobretudo, em uma atitude de despojamento diante das idéias preconcebidas e, portanto, fixas e imutáveis, em função de um deixar-se fluir, junto ao tempo, para que a partir desta vivência harmônica na duração possam emergir os signos e sinais capazes de dar as chaves para a compreensão do sofrimento do outro. A partir desta vivência compartilhada, permeada por afetos, sensações, idéias e percepções sensíveis, o terapeuta torna-se mais apto a intuir, através de sua sensibilidade, aquilo que pode estar afligindo o seu paciente. A intuição apresenta-se sempre como uma totalidade, sob a forma de síntese, mas logo em seguida vem o pensamento racional para elaborar, comparar e analisar aquilo que foi intuído, recorrendo ao conhecimento que o terapeuta já possuía anteriormente.  

A intuição reconhece a existência de coincidências e sincronicidades. É, portanto, intersubjetiva. Ela ocorre num salto abrupto; neste estado, os processos conscientes de pensamento dão vazão aos sentimentos, permitindo que a intuição funcione como um gatilho para impulsionar e trazer à tona os estados inconscientes do ser. É um saber nascido da concretude da experiência, residindo aí, de acordo com Ginzburg (1991), a força desse tipo de saber. Através de sua vivência, ela auxilia o sujeito a distinguir o essencial do não essencial. A intuição é a própria criatividade expressando-se na vida, e o restabelecimento da saúde se dá por meio da criação de novas formas de vida, como ressaltou Canguilhem (1978), por vezes superiores às antigas.

Almejamos, enfim, contribuir para o resgate do pensamento holístico, em que corpo e mente possam compor uma mesma e única totalidade; em que razão e emoção possam estar mais próximas e onde pensamento e ação caminhem juntos.

 

           

Notas

* Doutora em Saúde Coletiva - Instituto de Medicina Social - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz.

[1] Nesta etapa do trabalho, foi essencial a participação do bolsista de iniciação científica do CNPq Alexandre José Sales Gomes.

 

 

Referências bibliográficas

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BORNHEIM, G. A. (Org). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, [1980].

CAMARGO JÚNIOR, K. R. de. Racionalidades médicas: a medicina ocidental contemporânea. Cadernos de Sociologia. Porto Alegre, v. 7, p. ???, 1995.

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978.

 GUATTARI, F. O plano de imanência. In: ______. O que é a filosofia?. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 51-79.

ESPINOSA, Baruch de. Ética. In: ______. Pensamentos metafísicos... São Paulo: Abril Cultural, 1973. P. 77-307. (Os Pensadores).

GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: ______. Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p. 143-179.

GUIMARÃES, Maria Beatriz. Intuição e arte de curar: pensamento e ação na clínica médica. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, 2000. 28p. (Série Estudos em saúde coletiva, 203). Trabalho apresentado no VIII Seminário do Projeto de Racionalidades Médicas coordenado por Madel T. Luz.

JULLIEN, François.  Eloge de la Fadeur. Paris: Éd. Philippe Picquier, 1991.

 

LUZ, M T. A arte de curar e a ciência das doenças: história social da homeopatia no Brasil. Rio de Janeiro: Dynamis, 1996.

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SCHRAIBER, Lilia Blima. Medicina tecnológica e prática profissional contemporânea: novos desafios, outros dilemas. Tese de Livre-docência em Medicina, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 1997.

 

 

Recebido em: 15/08/01

Aceito para publicação em: 04/10/01