Comunicação de Pesquisa

 


Pesquisa Clínica em Psicanálise


 Ana Cristina Figueiredo*

Letícia Nobre**

Marcus André Vieira***

 

“Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar.”

                                              (BARTHES,R.)

 

 

 

     A partir do trabalho desenvolvido na equipe1 da Pesquisa Clínica em Psicanálise no Instituto de Psiquiatria – IPUB/UFRJ ao longo dos dois últimos anos, elaboramos um método que visa formalizar essa experiência no desafio de sustentar uma clínica psicanalítica e sistematiza-la no âmbito da pesquisa universitária. Constituímos assim uma proposta de trabalho que se estabelece para além do “ensino dogmático-crítico”, que nos daria apenas um saber sobre a psicanálise, visando retomar o vigor do “fazer psicanalítico” no próprio ato da pesquisa.

Certamente, pesquisa é um termo caro à universidade, já que sua prática recebe aí uma definição bastante precisa de seus parâmetros, tendo assim delimitado um campo próprio de eficácia e de ação. Houve época em que este campo era relativamente indefinido no universo acadêmico. Todo professor universitário tinha tarefas precisas de ensino e, além disso, era imprecisamente solicitado a pesquisar. Atualmente, em termos gerais, a prática da pesquisa na universidade encontra-se bem mais demarcada em seus meios e direcionada em seus objetivos. Tem, em seus produtos e no volume de suas publicações, o referencial de avaliação e validação científicas que lhe conferem lugar de destaque na produção de conhecimento atual. Retomando Freud, ainda em 1919, lança uma interrogação sobre a viabilidade do ensino da psicanálise na universidade e estabelece, a partir daí, uma articulação possível entre esses dois campos distintos do saber, circunscrevendo o que há de específico em cada um deles, e conclui: “Em suma, cabe afirmar que a universidade só pode beneficiar-se pela inclusão do ensino da psicanálise em seu currículo”. (AE/XVII-171)

Portanto, como já assinalado, a proposta da Pesquisa Clínica em Psicanálise é a de constituir um saber que não seja apenas sobre a psicanálise em seus fundamentos teóricos, e sim a partir da clínica psicanalítica, na medida em que esta opera na instituição universitária e no campo da saúde mental. Para a efetivação de tal proposta, temos à nossa disposição tanto o ambulatório quanto a enfermaria do Instituto para o atendimento dos pacientes, o que nos permite, com nossa pesquisa, não só formar pesquisadores em psicanálise bem como ampliar a possibilidade de prestação de serviços clínicos à comunidade. Afinal, a própria junção entre teoria e prática só pode ser realizada no exercício permanente da clínica onde os pressupostos teóricos que a fundamentam podem ser postos à prova. Esses pressupostos fazem parte de um campo conceitual que Freud denominou “metapsicologia”e que subsume os seguintes conceitos fundamentais: Inconsciente, Pulsão, Transferência e Repetição. Cada um desses conceitos se articula entre si e remete a outras formulações, tecendo a teoria a partir da experiência clínica.

Nesse ponto, vale ressaltar que as ciências humanas sempre se situaram no abismo entre a objetividade matemática e a subjetividade do espírito. Objetivar o subjetivo já foi um de seus lemas. Atualmente busca-se um método que torne seus resultados aferíveis de um ponto de vista quantitativo sem que a pesquisa deixe de ser uma pesquisa qualitativa, pois reconhece-se que algo do objeto em questão se perderá se aplicarmos ao campo das ciências humanas, as exigências de experimentação objetivas das ciências exatas.

A Psicanálise é uma saída para a bipolaridade descrita acima. A partir dela, podemos considerar uma alternativa a estes dois modos de apreensão do fenômeno, saindo do impasse estabelecido pela dicotomia entre estes dois pólos delimitado pelas seguintes questões: Estamos no campo das ciências humanas mais dependentes de uma energética ou de uma hermenêutica? A própria especificidade da psicanálise está em jogo. Ela é uma hermenêutica? Uma ciência humana? Ou uma Natürwissenschaft como queria Freud, oposta à Psicologia, Sociologia e mais próxima da Física e da Biologia? Enfim, a Psicanálise precisa de um método em que os binômios teoria e prática, objetivo e subjetivo, sujeito e objeto, sejam deslocados, ou seja, não estejam nos pressupostos do próprio método. Este método, entretanto, deve atender às condições mínimas de cientificidade e rigor experimental para que seus resultados possam ser interpretados à distância por diferentes equipes de pesquisadores. Uma vez tal método constituído compreende-se sua importância e aplicação em todo o campo das ciências humanas, assim como no da saúde mental, por permitir que se avalie o atendimento do sofrimento psíquico sem que seja necessária sua objetivação direta.

Passemos, então, a uma breve descrição do método tal como ele vem sendo formalizado e aplicado em nossa equipe de pesquisa:

Dentre os pesquisadores, definem-se aqueles que, por já desenvolverem uma prática clínica, irão se submeter ao método que recolhe e registra sua produção. Cada analista, na particularidade de seu interesse e de seu estilo, traz à equipe o relato de um caso de sua clínica de onde extrai uma questão. Esse material deverá ser apresentado na forma de um texto inicial que exprimirá o recorte que ele fez do caso. Tal recorte servirá de eixo condutor para a discussão de toda a equipe. As discussões são gravadas e, ao final de sua apresentação, o analista tem por tarefa utilizar-se desse material para escrever um novo texto que fixe, no caso, os efeitos da discussão então realizada. Não nos propomos a gravar as sessões ao longo do tratamento pois entendemos que não se trata de registrar fidedignamente os enunciados em sua totalidade. A introdução de um gravador pode ter como efeito a intromissão de um terceiro – uma variável interveniente – que poderia prejudicar de modo irremediável o pacto transferencial com o analista, penalizando o que há de fundamental no trabalho psicanalítico. Desta forma, optamos por registrar em gravador o que diz respeito ao tratamento somente na discussão em equipe, realizada semanalmente e transcrita com a finalidade de incluir a produção do analista sobre o caso.

O funcionamento do método se dá, então, em dois tempos: no primeiro, a discussão é produzida e gravada a partir do relato do analista; no segundo, ocorre a apresentação de um novo texto já atravessado pelos efeitos da discussão. Favorecendo o diálogo entre os dois escritos, registra-se o resultado do encontro de uma concepção do caso com o que se depositou dessa discussão num saber que chamamos de “coletivo” no sentido de uma coleção de enunciados, uma polifonia que reverbera no registro da gravação onde a enunciação circula. Entre os dois textos está a elaboração sobre o caso.

Sendo assim, a aplicação da metodologia proposta nos possibilitará traçar, como já vem ocorrendo em nossas reuniões de pesquisa, interessantes distinções como, por exemplo, aquela entre história e caso que nos permitirá não só promover a construção do caso clínico bem como acompanhar as conseqüências desta construção ao longo de todo tratamento. Enquanto o relato clínico que se apresenta rico em detalhes, cenas e conteúdos configura o que chamamos de história, o caso se apresenta como o produto do que se extrai das intervenções do analista na condução do tratamento e do que é decantado de seu relato. Para tanto, é condição necessária que o dispositivo analítico seja colocado em ação.

Esses textos vão compor um corpus de dados que servirá à transmissão dos operadores conceituais da psicanálise. Acreditamos dispor, desse modo, de uma maneira suficientemente precisa de avaliar os efeitos então produzidos.

Cada caso é extensamente documentado, através de: registro das discussões nas reuniões de equipe; produção dos pesquisadores sobre cada caso apresentada nos dois textos que registram dois momentos de discussão; artigos sobre determinado tema evocado na discussão dos casos; estudos e resumos de determinado tema aprofundado nas discussões que compõem o acervo da pesquisa. Sendo assim, as questões teórico-clínicas levantadas nas reuniões semanais da equipe e também em seminários de leitura servirão de subsídios para os subprojetos individuais dos pesquisadores e alunos da Pós-Graduação e Graduação, permitindo-nos articular a pesquisa ao ensino.

Nesse momento, estamos viabilizando a implantação de um software para a leitura dos dados e acervo destas produções ao longo da pesquisa, o qual denominamos Ipublish. Trata-se de um software de gerenciamento de informações com o propósito de armazenar e recuperar os documentos digitais que compõe o material teórico-clínico produzido pelos pesquisadores. O software mantém um cadastro dos pesquisadores, casos clínicos, temas, reuniões, documentos e palavras-chave.

Encontra-se, deste modo, à disposição de cada pesquisador, um material clínico diversificado, uma reflexão sobre a ação do analista e uma produção teórica sobre isso. As pesquisas individuais deverão se desenvolver, portanto, segundo recortes específicos a partir desse corpus de elementos essenciais da clínica psicanalítica que permite aos pesquisadores aproximarem-se do modo de operar da psicanálise.

 

Notas

* Doutora em Saúde Coletiva IMS/UERJ, professora adjunta do Instituto de Psiquiatria IPUB/UFRJ e coordenadora da Pesquisa Clínica em Psicanálise.

** Doutora em Psicologia Clínica PUC/RJ e pesquisadora recém-doutora CNPq no IPUB/UFRJ.

*** Doutor em Psicanálise Université Paris VIII e pesquisador visitante IPUB/UFRJ.

[1] - A equipe da Pesquisa Clínica em Psicanálise conta atualmente com um total de 15 (quinze) pesquisadores, sendo 03 (três) doutores, 02 (dois) mestres, 06 (seis) alunos de Pós-Graduação, 03 (três) especialistas e 01.

 

 

Referências Bibliográficas

FREUD,S. Debe enseñarse el psicoanálisis en la universidad? (1919[1918]). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1994. Vol.XVII

 

 

Recebido em: 15/08/01

Aceito para publicação em: 04/10/01