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Enkrateia Toxikon: o “combate às drogas” e a regulação dos prazeres

Enkrateia Toxkon: the “drug combat” and the pleasure regulation


Carla Mourão*

 

 

 

Resumo

Analisam-se, aqui, alguns aspectos das políticas de drogas do Brasil e de alguns países europeus. A partir dessa análise, abre-se uma discussão mais profunda sobre os fundamentos ideológicos do “Combate às Drogas”, metáfora comumente utilizada na abordagem repressiva da questão, e sobre suas conseqüências, em termos de violência e criminalização.

 

Palavras-chave

Políticas de drogas; combate às drogas; redução de danos; repressão.

 

Quand j’entends le  mot “Hollande”, je sors ma mitraillette
Stengers & Ralet

 

 

 

A problemática, não só do tráfico, mas do consumo de drogas e da drogadição em geral, têm sido atualmente tratada, em vários países, em termos de Segurança Pública. A questão parece personificar um inimigo tão poderoso que, para defender-se de seu avanço nefasto sobre a coletividade, esses países buscam, cada vez mais, o auxílio de suas polícias e até mesmo a potência de seus exércitos.

Embora tenhamos visto esta tendência florescer nos Estados Unidos, como é de sua tradição proibitiva, - apesar das desastrosas conseqüências dessa postura, para a qual a lei seca é um episódio exemplar1 - sabemos que vários outros países compartilham da mesma política repressiva, como é o caso do Brasil.

Apesar dos esforços de especialistas2 brasileiros para subsidiar o debate sobre que tratamento devemos dar ao consumo de drogas ilícitas como a maconha, a cocaína e o crack, e para que o uso dessas substâncias seja destituído do cunho criminal dominante até então, o processo político-decisório tem se encaminhado na direção contrária. Nossa Política Nacional de Drogas passou a ser, desde junho de 1998, atribuição da Casa Militar da Presidência da República, contando com um general responsável por coordenar a então formada Secretaria Nacional Anti-Drogas. Estas mudanças foram feitas, como é de domínio público, logo após a visita de nosso presidente ao presidente norte-americano Bill Clinton, em Camp Davis, em fins de 1997.

Como conseqüência dessa decisão, o Brasil passou a dar maior ênfase ao combate ao tráfico e à repressão ao uso de tóxicos, o que se expressa em mais recursos financeiros para este setor e no afastamento institucional cada vez maior do Ministério da Saúde como órgão de decisão central nessa questão. Nos dias atuais, como nunca antes, as drogas ilícitas passaram a ser, oficialmente, uma questão de segurança nacional no Brasil (Carlini-Cotrim, 1999).

Na Europa, a situação vêm se modificando nos últimos anos pelo menos por três razões ( Stengers & Ralet, 1991). A primeira diz respeito à perspectiva do “grande mercado europeu”: a abolição das fronteiras internas implica numa confrontação entre as políticas dos países membros face às drogas. A segunda é a crescente importância geopolítica mundial da questão das drogas; em um momento em que a vontade americana de controlar a situação é questionada, revelando o desejo, ainda que tímido, de alguns países europeus, de seguir uma via independente. E a terceira é a mudança de perspectiva sobre a questão das drogas provocada pelo desenvolvimento da epidemia de AIDS.

Oficialmente, portanto, a hora é de diálogo e de confrontação de experiências. No entanto, Stengers e Ralet (1991) apontam para o fato de que esta boa vontade, a vontade de escutar e compreender, só faz tornar mais visível ainda a ruptura de comunicação entre duas políticas que, com relação à questão das drogas e da toxicomania, polarizam o espaço europeu: uma política chamada “compreensiva”, praticada pelos Países Baixos e mais discretamente pela Dinamarca; e uma política denominada “repressiva”, que, com suas nuances diversas, é praticada pela maior parte dos outros países europeus.

A partir de um episódio de dimensões públicas; no qual alguns “especialistas” franceses criticaram contundentemente a política de drogas holandesa, com sua prática de Redução de Danos, Stengers e Ralet (1991) analisam a postura da França, que, segundo eles, apesar de utilizar as justificativas mais elaboradas para respaldá-la, acaba, na verdade, destacando apenas a falta de comunicação entre países geograficamente tão próximos.

É necessário que relatemos, então, o referido episódio que suscitou a interessante questão colocada pelos autores. Michel Rocard foi nomeado Ministro da Saúde em junho de 1988 e demitido do cargo dez dias depois, em função de um pronunciamento na televisão, no qual emitiu sua opinião sobre ser a distribuição de heroína pelo Estado aos heroinômanos, preferível à sua busca no mercado clandestino. Comentando o episódio, o mais conhecido especialista francês da toxicomania, o Dr. Oliveinstein, declarou ao jornal Le Monde que “o fracasso das experiências espanholas e holandesas de semi-legalização da droga deveria incitar à prudência” (Stengerd& Ralet,1991,  p.12)

Os autores salientam a estranheza de tal declaração, argumentando que, pelo menos com relação à Holanda, os responsáveis políticos e os funcionários encarregados da questão das drogas têm sempre apresentado seus resultados como um sucesso. Eles se perguntam então: como o Dr. Oliveinstein pode, e sem ser contestado, considerar “por si mesmo” ser esta política um fracasso? É difícil conceber que se trate, da parte daquele que é considerado um dos mais eminentes especialistas franceses em matéria de política da droga, de falta de informação a propósito de um país que se encontra tão próximo das fronteiras francesas. Tratar-se-ia, portanto, de um recuo face à idéia de tornar pública uma situação de controvérsia entre “experts”, o que faria com que o que é um sucesso para os holandeses parecesse um fracasso para os franceses? Ou seria uma incapacidade em reconhecer que existem divergências bastante significativas entre os “especialistas”?

A seguir, somos informados de que o pronunciamento de Oliveinstein não se trata de uma opinião pessoal isolada. Os especialistas franceses parecem ter a necessidade, ao menos os que se pronunciam publicamente, de ignorar ativamente os argumentos de seus colegas holandeses, “enquanto que o inverso não é verdadeiro” (Stengers ; Ralet, 1991, p. 13).

Uma questão geral, como a ruptura de comunicação que despertou a perplexidade de Stengers e Ralet, torna-se relevante quando essa perplexidade abre uma via de reflexão sobre um aspecto preciso. O “episódio” Oliveinstein lança mais luz sobre textos e discursos que justificam as políticas de drogas, em que se estabelece o encontro entre política e especialidade, e onde, correlativamente, se regulamenta o que podem e devem fazer, respectivamente, os poderes públicos e os especialistas.

Se discurso do especialista não pode reinvidicar,  a princípio, a identidade estática de uma posição neutra, fazendo autoridade quanto aos fatos e à gama de opções, revela, em contrapartida, um campo de ação, de níveis de liberdade e do tipo de poder que lhe é conferido. O discurso do especialista não informa somente sobre a política, mas traduz e revela o tipo de papel que a política delega à “especialidade”. É, portanto, na perspectiva das políticas e dos discursos que as justificam, que podemos compreender melhor as relações bem diferentes que são estabelecidas na França e na Holanda entre poderes públicos e especialistas acerca da política de drogas.

Um dos principais fios condutores da política de drogas francesa é a preocupação em evitar a “banalização” da droga: despenalizar o uso da maconha não é desejável. Mesmo que os riscos não sejam tão importantes como alguns querem fazer crer, eles existem, como por exemplo nos problemas que a síndrome amotivacional provocada pela maconha pode trazer para os adolescentes.

Entretanto, não se pode perder de vista o fato de que, fundamentalmente, o problema está menos no produto do que na significação de seu consumo na vida do sujeito. Obviamente, não se ganha nada ao tentar banalizar esta realidade. Porém o termo banalização, quando empregado no contexto francês, tem como contra-modelo a política holandesa de drogas. O que pode haver de mais banal do que adquirir haxixe em Amsterdam e fumar tranqüilamente num café? Que há de mais banal do que os ônibus que distribuem metadona para heroinômanos, sem que eles tenham de manifestar algum desejo de desintoxicação? 

Outra crítica francesa muito freqüente, com relação à prática holandesa, é a de que a utilização da metadona como produto de substituição procede de uma certa visão fatalista da toxicomania, como doença crônica e portanto incurável. Mas o que fica esquecido por trás desta argumentação é a questão de que a Holanda é o país do mundo onde o engajamento em centros de tratamento para alcoólicos e toxicômanos é o maior no mundo. Esquece-se, também, que o governo holandês é aquele que dispensa mais dinheiro por habitante para a prevenção e para os tratamentos (Marlatt, 1999). Sendo assim, a relação entre “banalização” - ou mais precisamente, entre “normalização” como dizem os especialistas dos Países Baixos - e a indiferença, não é verificada. Em Amsterdan, pode-se observar hoje o maior número de inscrições em programas de desintoxicação. Depois da introdução dos ônibus de distribuição de metadona e dos centros ambulatoriais de fornecimento, a freqüência aos programas de desintoxicação triplicaram. A maior parte dos clientes desses centros foram clientes dos programas “metadona”, antes de se inscreverem na desintoxicação.

Como podemos observar, então, à argumentação francesa, respondem os dados. Enquanto na França os dados disponíveis correspondem ao número de interpelações policiais e de prisões relacionadas ao uso de drogas, os holandeses são os únicos especialistas do mundo que dispõe de dados confiáveis quanto à evolução da toxicomania em seu país. Essa é, evidentemente, uma condição sine qua non para a avaliação da eficácia dos dispositivos adotados, mais é, sobretudo, o resultado de um imperativo primordial que guia a política dos Países Baixos: a necessidade de um contato com os toxicômanos, quer eles desejem ou não uma cura de desintoxicação.

Ao louvar uma “visão mais positiva do seu trabalho”, os terapeutas franceses talvez deixem de reconhecer algo que pudessem fazer com uma visão um pouco mais “fatalista”. As ações são estritamente limitadas aos “bons heroinômanos”, ou seja, àqueles que desejam e conseguem seguir exemplarmente o programa de desintoxicação proposto pelas instituições. (Stengers; Ralet, 1991).

A outro enunciado comum que se soma às outras argumentações que tentam apresentar a política de drogas da Holanda como um fracasso - a de que a mesma têm motivado a explosão do número de toxicômanos -, os números também respondem contrariamente. Depois da despenalização, o uso de derivados de cannabis, longe de explodir, têm diminuído significativamente entre os jovens.

Enfim, toda essa discussão, não têm como intuito afirmar que os holandeses descobriram a solução miraculosa para os problemas impostos pelo consumo de drogas. Trata-se, apenas, de sublinhar que, em todos os casos, as referências francesas à situação da Holanda designam o que podemos suspeitar ser uma imagem sofística, destinada a demonstrar que não há saúde ou “sucesso” fora do caminho escolhido pela França.

Essa abordagem da Política Nacional de Drogas da Holanda não se restringe aos especialistas franceses. Se podemos criticar o olhar francês sobre a política holandesa, o que dizer sobre a visão brasileira?

Há no Brasil, em geral, tanto entre ‘especialistas’, quanto entre ‘leigos’, quase que um ‘terror’ ao pronunciamento da palavra Holanda, no que diz respeito ao tema drogas e de sua prática com consumidores e drogaditos. A epígrafe apresentada nesse texto, apesar de tratar do contexto francês, justifica-se totalmente no caso brasileiro. As instituições brasileiras especializadas no assunto, que ousam trabalhar com redução de danos, são evitadas com os mais afetados sentimentos de repulsa, como se a “doença” de tratar a questão das drogas por uma vertente distinta da que prevalece atualmente, pudesse ser transmitida por vírus.  Mas o que se perde com essa postura intolerante e inflexível, ou no mínimo ignorante e desinformada, é a perspectiva de que o ‘vírus’ a ser ‘combatido’, não é o do tratamento distinto do que prega a ideologia dominante sobre intervenções em problemas ligados às drogas, e sim o vírus da Aids.

Assim, o lema principal, em contraponto à orientação holandesa, é “tolerância zero”, bem como a hegemonia nos tratamentos é a dos programas de abstinência. Não se pode “tolerar” que um drogadito não queira ou não consiga largar totalmente as drogas antes de iniciar um programa de tratamento. A orientação brasileira é e sempre foi a de redução da demanda e do uso.

O que parece problemático nestes tipos de abordagem de “redução”, seja da oferta ou do uso, é a não aceitação do fato concreto de que muitas pessoas tomam drogas e apresentam outros comportamentos de alto risco, e que visões idealistas de uma sociedade livre de drogas não têm quase nenhuma chance de tornarem-se realidade (Marlatt, 1999). 

Uma conclusão perturbadora que surge a partir da análise da estratégia brasileira contemporânea de controle das drogas é a de que as reduções pretendidas na prevalência do uso simplesmente não foram obtidas. Na verdade, os dados sugerem que o uso de drogas entre adolescentes tem aumentado regularmente nos últimos anos. Ainda mais perturbador é o fato de que as próprias iniciativas revigoradas de cumprimento de leis e interdição, que constituem o foco principal da atual estratégia, são fontes de muitos problemas relacionados com as drogas, tal como a criminalidade ligada à sua proibição (Marques & Doneda 1999).

O paradigma brasileiro de redução da oferta incorporado na Política Nacional de Drogas, de orientação predominantemente repressiva, consiste num grande número de políticas e intervenções, cujo objetivo coletivo é efetivar a total proibição das drogas ilícitas.                                           

E nesse ponto, surgiria uma das questões mais pertinentes a serem abordadas, e que, finalmente, justificaria o título do presente artigo: de que maneira se implementaria coletiva e ideologicamente esta erradicação do comércio, do consumo e da dependência de drogas ilegais? Através do ‘combate’, da ‘guerra’, das práticas militares-marketeiras e midiáticas ‘contra as drogas’.

Nesse contexto, todo um campo de semântica ‘bélica’ respaldado, muitas vezes, inclusive, pelo discurso dos ‘especialistas’, se organiza em torno da questão. 

O slogan contra as drogas é, certamente, uma metáfora paradoxal e mesmo curiosa. A droga designa uma molécula que, se por um lado tem efeitos quando consumida, por outro, não se lhe podem atribuír os projetos e as intenções de um inimigo. Sendo assim, podemos nos perguntar: quem é o inimigo contra o qual a “guerra” está declarada?

Trata-se da possibilidade que o ser humano sempre teve, não só por intermédio das drogas, mas também de outras maneiras, de produzir transformações sobre si mesmo? Trata-se do consumidor, do toxicômano, de quem cultiva a droga ou do especialista suspeito de provocar uma “desmobilização”? Dos pequenos traficantes ou dos grandes, que geralmente têm ligações com o mundo oficial?  Do bandido do “colarinho branco” que lava o dinheiro oriundo do tráfico? Da polícia corrupta, que fatura em cima dos consumidores flagrados?  Um dos principais parodoxos desse “combate”, vem a ser o fato de que os últimos inimigos tiveram a possibilidade de existir , justamente, a partir do estado de guerra declarado...  ( Stengers e Rallet, 1991).

Assim, com o objetivo de tentar aprofundar um pouco mais a análise da “metáfora guerreira”, utilizada tão freqüentemente no campo das práticas em questões relativas ao consumo de drogas, introduziremos o termo grego Enkrateia trazido por Michel Foulcaut (1988) para tratar de sua reflexão sobre “o uso dos prazeres”. 

Existe uma oposição que aparece freqüentemente entre a interioridade da moral cristã, e uma outra moral, chamada pagã, que consideraria os atos apenas em sua efetivação real, em sua forma visível e manifesta e em função do que eles podem significar na opinião ou na lembrança que deixam atrás de si. Já o que se chama de interioridade cristã é um modo particular de relação consigo que implica em formas precisas de atenção, de suspeita, de decifração, de verbalização, de confissão, de auto-acusação, de luta contra as tentações, de renúncia, de combate espiritual etc. E o que é designado como “exterioridade” da moral antiga também traz o princípio de um trabalho sobre si, se bem que de forma bem diferenciada.

Foucault nos diz que a lenta evolução que se produzirá entre paganismo e cristianismo não consistirá numa interiorização progressiva da regra, do ato e da falta, mas sim numa transformação das práticas e das técnicas sobre as quais essa relação se apoiava.

Enkrateia é, então, o termo grego utilizado na língua clássica para designar esse tipo de relação consigo, essa “atitude” que é necessária à moral dos prazeres e que se manifesta no bom uso que se faz deles.

Quando, na República, Platão trata das quatro virtudes fundamentais, – sabedoria, coragem, justiça e temperança - ele define esta última pela enkrateia: “A temperança é uma espécie de ordem e de império (kosmos kai enkrateia) sobre certos prazeres e desejos” (apud Foncaullt, 1988, p.61).  A enkrateia  caracteriza-se por uma forma ativa de domínio de si que torna possível resistir ou lutar e garantir sua dominação no terreno dos desejos e prazeres. O termo se situa sobre o eixo da luta, da resistência, do combate. Significa comedimento, tensão, ‘continência’, dominando os prazeres e os desejos, mas com a necessidade de lutar para vencê-los. Ao contrário do homem ‘temperante’, o ‘continente’ experimenta outros prazeres que não aqueles conforme a razão; mas não se permite deixar levar por eles, “e seu mérito será tanto maior, quanto mais fortes forem seus desejos(apud Foucault, 1988, p. 62).

Assim, seria apenas através da instauração de uma atitude de combate em relação aos prazeres, que o homem poderia se conduzir moralmente. Os afrodisia3 tornam-se não somente possíveis como desejáveis através de um jogo de forças cuja a origem e o objetivo são naturais, mas cujas virtualidades, devido à sua energia própria, levam à revolta e ao excesso. Só através da moderação seria possível usar essas forças, com a moderação que convém quando se é capaz de opor-se a elas, lhes resistir e dominar. E se é necessário enfrentá-las, é porque se tratam de apetites inferiores que não só os animais, mas também os seres humanos partilham. Mas essa inferioridade natural não seria, por si só, uma razão para combatê-las. O perigo maior residiria na ameaça sempre presente de que, predominando sobre a totalidade do ser, elas estendessem sua dominação sobre todo o indivíduo, reduzindo-o finalmente à escravidão4.  Ou seja, não é a natureza intrínseca da força dos Afrodisias, a sua desqualificação de princípio, que convoca a atitude “polêmica” consigo mesmo, mas sim  seu domínio eventual e seu império. A conduta moral com relação aos prazeres está assim inextrincavelmente ligada a uma batalha pelo poder e traduz-se numa série de expressões empregadas tradicionalmente para caracterizar a temperança e a intemperança: opor-se aos prazeres e aos desejos, não ceder a eles, resistir as suas investidas ou, ao contrário deixar se levar por eles, vencê-los ou ser vencidos por eles. Ela também se traduz por metáforas como a da batalha a ser travada contra adversários armados, ou mesmo a da alma-acrópole atacada por uma tropa hostil, e que deveria se defender através de um sólido destacamento. Também se exprime através de temas como o da força selvagem do desejo que invade a alma durante o sono, se ela não tomar as providências necessárias para impedir o “ataque”.

A relação com os desejos e com os prazeres parece ser concebida como uma relação de batalha: é necessário se colocar no papel de adversário, no modelo mesmo do soldado em combate. A tradição do combate espiritual, que pode assumir diversas formas, já estava claramente articulada no pensamento grego clássico.

Essa relação de combate com adversários é, antes de tudo, uma relação agonística consigo mesmo. A batalha a ser travada, a vitória a ser conquistada e a derrota que se pode sofrer são processos e acontecimentos que ocorrem de si para consigo. “Os inimigos que o indivíduo deve combater não estão somente nele ou perto dele. São parte dele mesmo.” (Stengers ; Ralet, 1991, p. 64).

Enfim, não nos parece difícil vislumbrar uma possível relação entre a utilização de Foucault do termo Enkrateia em sua formulação sobre o uso dos prazeres, com nosso questionamento sobre a metáfora do combate às drogas. Seríamos todos soldados da “luta anti-drogas”?

Para tornar ainda mais compreensível tal articulação, seria interessante retornar à uma pergunta formulada anteriormente: quem seriam exatamente os inimigos, no caso da metáfora da “guerra às drogas”, ou melhor dizendo, quem seriam os mais diretamente atingidos por esta “luta”? Parece que os consumidores de drogas e os drogaditos. E por que justamente eles?

Não poderíamos supor que a violência do ataque (mesmo que muitas vezes considerado indireto ou “involuntário”) aos consumidores de drogas e aos toxicômanos pode se dever ao fato de que - de acordo com o que designa  o termo enkrateia -  se o consumidor de drogas corre um grande risco e por isso é um perdedor em potencial ou pelo menos um imprudente, o toxicômano parece ser aquele que perdeu definitivamente a batalha da “temperança”? Ele parece ser aquele que foi, indisfarçavelmente, subjugado pelos prazeres que escolheu usufruir e pelos desejos que ousou realizar. Ele perdeu a “guerra” expondo abertamente a possibilidade, sempre iminente, do triunfo do império dos prazeres e dos desejos.

Grande parte das reações – não só da opinião pública, mas também dos especialistas – a respeito do “fenômeno droga”, parece ser, em primeiro lugar, de ordem afetiva. Mesmo que encontrem uma justificativa totalmente legítima, com base na gravidade qualitativa do flagelo, poderíamos pensar que o principal móvel dessa inquietude social estaria situado no contexto de uma reação defensiva aos sentimentos não somente de responsabilidade e de culpa, mas também de fascínio / reprovação5 experimentados, tanto pelos indivíduos como pela coletividade.

A drogadição pode atingir qualquer tipo de personalidade e pessoas, jovens de preferência. Ela também pode assumir (mesmo nos adultos mais escrupulosos) formas totalmente lícitas, mesmo que veladas (Bergeret ; Leblanc, 1991).

As conseqüências individuais de tal vulnerabilidade humana às múltiplas formas de dependência possíveis, parecem ser, por um lado, um receio de sucumbir ao mesmo tipo de impasse afetivo que denunciamos no toxicômano. Por outro lado, parece haver um mal estar diante dessas pessoas, que podem representar uma caricatura daquilo que qualquer um de nós poderia ser. E com razão, porque os toxicômanos seriam uma espécie de reprimenda viva, a questionar o desempenho bastante covarde do nosso papel em relação às mesmas pressões individuais ou coletivas que os oprime.

Assim, parece mais fácil e tranquilizador formular slogans do tipo “Il ne faut pás se droguer” (“Não é preciso se drogar”), “Just say no” (simplesmente diga não) ou “drogas nem morto”6 . Isso porque, se existe uma diferença entre ética e moral, repousa certamente na questão de que a moral coloca conteúdos sobre “fault il”, ou “Il  ne faut pas”, enquanto que a ética deve sempre colocar a questão “quem sou eu para dizer ao outro o que lhe é ou não necessário? Ou o que para ele deveria ser simples ou não? Ou o que ele faria ou não faria “nem morto”? E, acima de tudo, se realmente nos mantivermos numa perspectiva ética, a questão mais importante a ser colocada deveria ser: como estes enunciados definiriam minha relação com este outro?

Finalmente, ao retornarmos da Grécia Antiga e da Europa, para um Brasil bem recente, torna-se possível transpor essa reflexões para a abordagem de um evento que têm mobilizado a opinião pública, despertando uma polêmica que envolve as mais diferentes instituições sociais, pais, educadores etc.

A polêmica teve início no dia 27 de Abril, quando quatro alunos da Escola Parque, escola alternativa, de vanguarda, que recebe os filhos da elite intelectual e financeira do Rio de Janeiro, foram expulsos do colégio depois de admitirem ter fumado maconha durante uma excursão à cidade de Ouro Preto. Naquele dia, cerca de cem estudantes protestaram, com faixas e camisetas, contra o que consideraram uma arbitrariedade da direção da escola, contrariando sua prática de tomar decisões que incluem a participação direta dos alunos. Em uma entrevista que realizamos com uma aluna da escola envolvida na manifestação, comentando a decisão tomada à revelia dos alunos, ouvimos a seguinte frase: “Eles ensinam a gente a pensar, depois não querem que a gente pense...” (M. 15 anos). Os alunos são unânimes em afirmar que eles não se rebelaram contra o fato da escola ter punido os infratores, e sim pela decisão ter sido tomada sem que eles sequer tenham sido ouvidos (os alunos em geral e os envolvidos diretamente), e também pela decisão em favor da “pena máxima”, com a qual eles não concordavam, sugerindo que deveriam ser adotadas penas alternativas, de acordo com a orientação da escola.

Mas, seguindo cronologicamente os fatos, no mesmo dia da manifestação dos estudantes, o promotor da 2a vara da Infância e da Juventude, Marcio Mothé, enviou um ofício à direção da escola pedindo a relação dos alunos expulsos, com o nome dos pais responsáveis e endereços. No dia 28, Mothé disse que iria convocar a direção da Escola Parque para verificar se realmente havia a possibilidade de estar ocorrendo tráfico de drogas nas escola. No dia 3 de Maio, o promotor se manifestou novamente ameaçando denunciar a diretoria da instituição, que se negava a entregar os nomes dos jovens7. 

Uma das diretoras da Escola Parque, comentando os últimos acontecimentos disse que “hoje, parece que vanguarda é cumprir a lei (...) temos que educar, mas sem esquecer que a droga é uma coisa ilegal” (O Globo, 6/05/2001).

Não se trata aqui, absolutamente, de querer julgar especificamente a decisão da diretoria da Escola Parque, que, afinal, tornou-se apenas um símbolo da dificuldade que a sociedade como um todo tem em lidar com a questão do consumo de drogas entre adolescentes de classe média/alta. Esta dificuldade é perfeitamente compreensível, considerando-se que essa problemática envolve uma série de delicadezas e provoca mal-estar generalizado, não só entre os que têm uma postura repressiva, mas também entre os próprios pais e educadores liberais, que já utilizaram ou utilizam drogas ilícitas. Nosso objetivo principal ao destacar aqui a fala da diretora é apontar para uma discussão interessante que surge em seu discurso: será que “ensinar a pensar”, “educar”, não incluiria também o exercício de questionamento de leis; principalmente as que, quando infringidas, criminalizam e punem não só indivíduos protagonistas de casos isolados, mas que vão contra práticas de uma maioria e que não parecem ser a melhor resposta com a qual lidar com problemas de tamanha importância coletiva? Será que a Lei de Tóxicos e a Política Nacional de Drogas não merecem da coletividade um movimento que instigue reflexões, aponte falhas, proponha soluções mais criativas e eficazes, pressionando assim a todos, desde os pais até as autoridades, a repensar seus efeitos e conseqüências? Esse movimento, nos parece, poderia ser um primeiro passo na direção das mudanças necessárias. Porque, sem sombra de dúvidas, elas são necessárias...E o mais interessante, é que parece que foram os próprios adolescentes que deram o “primeiro passo” nesse sentido.

No entanto, apesar desse episódio que deflagrou a revolta dos alunos, chamou a atenção da mídia e, conseqüentemente, atingiu uma dimensão pública -, o que finalmente obrigou posicionamentos e um início de diálogo - é grande o risco de que tudo isso “acabe em pizza”. A continuidade do diálogo só será possível quando, - a despeito do que os adolescentes tentam mostrar - os pais, os educadores, os governantes e os legisladores pararem de tentar recalcar ou disfarçar a evidência de que o uso de drogas entre adolescentes, especialmente de maconha, é uma prática comum e generalizada. Neste contexto, poderíamos nos perguntar se a melhor saída para esse impasse, para essa dificuldade em lidar com uma questão tão delicada é a repressão. A julgar pelo que já foi discutido anteriormente, tudo indica que não.

Não podemos negar que é pedagógica e didaticamente importante transmitir aos jovens a importância do cumprimento de leis e interdições, mas talvez seja igualmente nobre e tão importante quanto, para sua formação, admitir que as leis existem sim, mas que, apesar das dificuldades, não é impossível mudá-las. E talvez isso seja mais viável a partir de um exercício individual e coletivo, menos de transgressão, do que de reflexão e bom senso. 

No entanto, na situação brasileira, o governo, os legisladores e até mesmo alguns especialistas e educadores têm mantido sua posição inflexível. O clima é de guerra,  repressão e regulação,  como  já tratado acima, por exemplo, com relação à criação da Secretaria Nacional Anti-drogas e sua gestão militar. Ou seja, a orientação da política brasileira de drogas têm sido eminentemente repressiva, na vertente exatamente do “combate”.

Embora pronunciamentos posteriores à criação da Secretaria Nacional Anti-Drogas pareçam ter “relativizado” essa tendência,  tudo volta no final ao mesmo ponto. Para ilustrar esse “eterno retorno da prática repressiva”, trazemos aqui uma matéria publicada pelo jornal O Globo em 27 de Janeiro de 2001. Nessa matéria, o ministro da justiça José Gregori disse que; em função da divulgação do Relatório Mundial sobre as Drogas, que constata que a humanidade está conseguindo controlar o avanço das drogas graças aos investimentos aplicados em atividades preventivas, iria direcionar a maior parte dos recursos do “combate às drogas” para a prevenção, - atualmente da verba de R$ 200 milhões anuais, 75% são destinados para a repressão - registrando a decisão de equilibrar essa partilha em 2002 nos seguintes termos: 75% para a prevenção e 25% para a repressão. No entanto, logo depois das “boas novas”, ele se “entrega”: “O Brasil está definitivamente alistado no combate às drogas”. E, assim, nos faz voltar à mesma pergunta: para quem são destinados respectivamente a prevenção e o combate? Será possível adotar uma legítima direção preventiva quando ela é animada pelo espírito da “batalha”?

Como vemos, o discurso de nosso ministro da justiça parece não ir além da mera retórica, já que a tendência continua a ser inconfundivelmente repressiva.

Para concluir, apontamos a necessidade de se repensar estratégias e práticas e propor novas alternativas, que talvez possam diminuir o ônus absurdo imposto pela coletividade “bélica”, aos que se arriscam em perder a batalha, e aos que já fracassaram diante dela. Isso sem perder de vista o que esses grupos já têm a pagar, individualmente, por sua transgressão ou pela exposição da fragilidade que o faz sucumbir repetidamente ao “combate”. Um combate duplo, proveniente de dois “exércitos” que os imprensam entre os próprios desejos que os subjugam e os ataques militares da política dominante.

 

Notas

* Doutoranda – Psicologia Clínica PUC/Rio

[1] A lei seca norte-americana – grande exemplo das pretensões dos Estados do século XX ao controle autoritário de tudo – deixou ao crime organizado, durante mais de uma década, a gestão do comércio de bebidas alcoólicas. A Máfia, desde então, rica e experiente, ligou-se à política eleitoral, ao mundo dos negócios, ao desenvolvimento do mercado dos assassinatos e a certos aspectos da política internacional. Ao retornar à legalidade, o álcool foi substituído pelas drogas, que passaram a ser a mercadoria-vedete do consumo ilegal (Debord, 1991).

2 A questão da especialidade abre uma outra discussão interessante e será desenvolvida mais adiante.

3 Afrodisia são atos, gestos, contatos que proporcionam uma certa forma de prazer. “Coisas” ou “prazeres do amor”, relações sexuais, “atos da carne”, volúpias (Foucault, 1984, p.39)

4 A etimologia do termo adição refere-se a um estado de escravidão. Embora o adito possa se sentir escravizado pelo consumo de álcool, narcóticos, drogas psiquiátricas, comidas etc., não é essa  a finalidade última da busca aditiva. Ao contrário, o objeto da adição é vivenciado como essencialmente bom, fonte de prazer e gozo, descarga que libera a energia gerada pela pressão do desejo (Macdougall, 1997).

5 A partir mais ou menos da década de 60, parece que fica mais clara uma espécie de facilidade em reter e monopolizar uma parte do gozo que, até então, era sacrificada e à qual era necessário renunciar (Mourão, 1999). “De tal sorte que vemos como as modalidades de nossa recusa em ter que pagar o tributo inerente ao gozo tornam-se, cada vez mais, parte integrante de nossa vida.” (Melman, 1992 : 106).

6 Respectivamente os slogans francês, americano e brasileiro para campanhas de prevenção.

7  Isso nos faz lembrar de um episódio da época da ditadura, quando a educadora Henriete Amado foi intimada a entregar a lista dos alunos do Colégio André Maurois, da qual era diretora, envolvidos no movimento estudantil

 

 

Referências Bibliográficas

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Abstract

 The paper deals with certains aspects of the drug policies of Brazil and some europeans countries. From this analisys, a deeper discussion is opened up on the ideological foundations of the “drugs combat”, a commonly used metaphor within the repression approach to the issue and on its consequences in the areas of violence and crime.

 

Keywords

Drug policies; drugs combat; harm reduction; repression

 

 

Recebido em: 15/08/01

Aceito para publicação em: 09/10/01