ARTIGO 6
O SIMBOLISMO DA CASA E A MÚSICA: IMAGINAÇÃO E MEMÓRIA
THE HOUSE´S SYMBOLISM AND THE MUSIC: IMAGINATION AND MEMORY

Walter Melo*



RESUMO
A partir da noção de símbolo na concepção de C.G. Jung, dos estudos sobre o imaginário em Gaston Bachelard e da noção de memória como construção social, analisaremos o simbolismo da casa e as reverberações emocionais, advindas de temas musicais, como possibilitadores de uma reestruturação ontológica de uma senhora com sintomas de perda de memória, após um acidente que levou à morte um membro de sua família.

PALAVRAS-CHAVE:
Símbolo; Imaginário; Memória; Jung; Bachelard.




“Vive aberta a porta da casa / Ninguém entra para furtar.
Por que se fecharia a casa? / Quem se lembra de furtar?
Pois se há vida na casa, a porta / Há de estar, como a vida, aberta.
Só se fecha mesmo a porta / Para quedar, ao sonho, aberta.”
Carlos Drummond de Andrade


INTRODUÇÃO

A casa funciona, dentro das produções da imaginação material, como um abrigo, como um princípio de integração dos pensamentos, das lembranças e dos sonhos, em suma, como um valor de integração psíquica. A argamassa que une as funções psíquicas ao redor, ou melhor, dentro da imagem da casa, é o devaneio que parte da concretude para a comicidade. A casa está inscrita no corpo, não como traço mnêmico, mas como imagem de intimidade, como imagem que busca um centro, que instaura um centro, que cria um universo (Eliade, 1991). Em qualquer casa que moramos, tendemos a imaginá-la sempre mais do que ela é, pois, com esta imagem arquetípica, estamos justamente no ponto de união entre imaginação e memória: “a casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico” (Bachelard, 1996, p. 62).

A casa é um “valor vivo” (Bachelard, 1996, p. 73), pois, mais do que ser uma imagem homóloga ao universo, revelando seu potencial cósmico, cremos que o próprio universo vem habitar a casa. Gaston Bachelard afirma ser “impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa” (Bachelard, 1990c, p. 89). Desta forma, a casa com seus cômodos, móveis e objetos vai nos provocando sonhos e nos trazendo lembranças.

O simbolismo da casa é um dos mais ricos em significado. Podemos encontrá-lo presente nas obras de poetas, nas lembranças de uma mulher idosa com hipótese diagnóstica de mal de Alzheimer, nas pinturas de Fernando Diniz, como símbolo do processo de individuação em C.G. Jung, em temas musicais, em sonhos de um carteiro francês, etc. De qualquer modo, o que se tem é uma imagem que estrutura o ser humano, dado que se encontra no centro do mundo: a casa é “um verdadeiro cosmos” (Bachelard, 1996, p. 24).

Tomando a imagem da casa como tema central para uma possível integração do pensamento com as lembranças e os sonhos, a partir de devaneios cósmicos que levem em conta seu valor simbólico e não a degrade como apenas um espaço profano, como uma máquina para morar (Bachelard, 1996), daremos como exemplo o atendimento efetuado junto a uma mulher com sintomas de perda de memória. Consideramos a memória como um fenômeno complexo que não pode ser explicado apenas em relação a traços mnêmicos gravados em neurofibrilas. No entanto, não podemos e nem devemos negar o valor dos estudos neurológicos acerca da memória, porém, preferimos problematizá-la como um fenômeno que vai se construindo socialmente, através da relação significativa com outras pessoas – parentes, amigos, vizinhos, etc –, pelas cartas, livros, objetos pessoais, músicas. Desta forma, estamos privilegiando a polissemia constituinte da memória:

para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso passado (Bosi, 1994, p. 413).

Nosso percurso dentro dos labirintos superpostos da memória teve início com a história de uma senhora com mais de setenta anos que fazia os preparativos para a festa de Natal. Na festa, iria se reunir com toda a família. A senhora possuía muitos dons: era pianista, escrevia versos, fazia lindas pinturas, além de ter conquistado vários prêmios em concursos de beleza no Brasil e no exterior. Em meio à conversação da família, foram preparados os enfeites e a senhora decidiu fazer um desenho de uma árvore de Natal estilizada. Foi à estante e pegou um livro sobre Leonardo da Vinci e começou a ler sobre a sua técnica de pintar com estopa ao invés de usar os pincéis. Dessa forma, o desenho fica sombreado, com zonas indistintas, vaporosas, difusas. Trata-se da pintura em sfumato.

A única pessoa que faltava para chegar era uma das filhas que vinha de outro Estado numa viagem de avião. Mas, de repente, chegou a notícia de que o avião se espatifou em uma montanha. A senhora, atordoada, foi até o espelho. Já não se identifica: entrou na “fase do espelho quebrado” (Messy, 1993). Com o estilhaçamento do espelho, perde-se a representação das palavras e a memória começa a se esvair. Desta forma, o mundo fica sombreado, com zonas indistintas, vaporosas, difusas. Trata-se do mundo em sfumato.*1

Jack Messy diz que nesta fase nasce uma tensão entre o eu e o que ele denomina de ego-feiúra, ou seja, a imagem aflitiva de dependência em relação ao outro. A velhice não possui mais atrativos para que seja investida de ideais, ainda mais quando se trata de uma idealização ancorada na beleza física, que está diretamente ligada, em nossa sociedade, com a juventude. Não se tendo mais onde investir, perde-se a relação com o futuro. Então, uma perda de parente precipita o indivíduo na velhice. Diz Messy:

A posição de velho não está no lugar do ideal do ego, a ser alcançado, como é costume na sociedade ocidental, em nossa cultura. Seu valor se desmorona e se transforma em feiúra do ego, a qual não poderá mais regular a tensão agressiva. O indivíduo se precipita então na autodestruição, que toma a forma de uma morte real ou da morte psíquica denominada também de doença senil, ou, de maneira imprópria, doença de Alzheimer, verdadeira decomposição do ego. (1993, p. 47)

O MUNDO EM SFUMATO

Para Bachelard, a principal característica da imaginação não é a de formar imagens, mas sim a de deformar as imagens provenientes da percepção. Afirma que “se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há ação imaginante” (1990b, p. 1). Porém, esta produção não se qualifica apenas pela perda, como no caso do doente com a hipótese diagnóstica de Alzheimer, onde o eu despedaça-se. Trata-se também, de uma produção fecunda, que busca reordenar toda uma vida. O que comumente acontece com a pessoa nestas condições é um deixar-se devanear onde o “sonhador deixa-se ir à deriva” (p. 4). Mas, se ao contrário, consegue-se dar um cunho tanto estético, de criação, quanto ético, de escolha, as imagens ganham em positividade:

se for bem escolhida, a imagem inicial se revelará como um impulso para um sonho poético bem definido, para uma vida imaginária que terá verdadeiras leis de imagens sucessivas, um verdadeiro sentido vital (p. 4).

Quando iniciamos o atendimento domiciliar a esta senhora com o diagnóstico de Alzheimer, uma de suas idéias mais persistentes era a de me convidar para ir até sua casa, já que, segundo ela, aquela não era dela. Seu apartamento se localiza na Zona Sul do Rio de Janeiro, mas ela insistia em me falar de sua casa de infância, a casa paterna, no Rio Grande do Sul. Neste caso, vale lembrar uma observação de Gaston Bachelard: “a imaginação matiza desde a origem os quadros que gostará de rever. Para ir aos arquivos da memória, importa reencontrar, para além dos fatos, valores” (1988, p. 99).

Nesta sua casa de infância, ela condensa pessoas de várias épocas: encontram-se reunidos o pai, a mãe, irmãos, primos, tios, o marido, filhos, netos, afinal todos os seus antepassados e descendentes que lhes são caros. Na “memória emocional vivemos como se todos que amamos devessem, no fastígio da nossa idade, viver juntos, morar juntos” (Bachelard, 1988, p. 116). Nestes devaneios, abordaremos o dinamismo da imaginação como nos sugere Bachelard: como um amplificador psíquico.

A casa de infância é amplificada, não condizendo com a realidade, pois estamos no terreno da casa onírica. Esta mantém-se ligada à casa de infância, dado que é a sua base, e procuramo-la em busca de proteção. Este abrigo evidente – a casa – protege-nos do frio, calor, chuva, tempestade, da noite. Mas, estando no campo das emoções, ultrapassamos o simples recordar, e passamos a devanear, habitamos nossa casa oniricamente:

Assim, uma casa onírica é uma imagem que, na lembrança e nos sonhos, se torna uma força de proteção. Não é um simples cenário onde a memória reencontra suas imagens. Ainda gostamos de viver na casa que já não existe, porque nela revivemos, muitas vezes sem nos dar conta, uma dinâmica de reconforto. Ela nos protegeu, logo, ela nos reconforta ainda. O ato de habitar reveste-se de valores inconscientes, valores inconscientes que o inconsciente não esquece (Bachelard, 1990c, p. 92).

Estes valores inconscientes que revestem nossas lembranças são considerados por muitos como uma irrealidade, como pura ilusão que deve ser afastada para que se enxergue o mundo tal como ele é. Não é neste ponto de vista que nos apoiamos. Preferimos pensar como Bachelard, para quem uma pessoa que se priva da função do irreal é tão neurótica quanto uma que se priva da função do real. Para Bachelard, o devaneio é o

testemunho de uma função do irreal, função normal, função útil, que protege o psiquismo humano, à margem de todas as brutalidades de um não-eu hostil, de um não-eu estranho (Bachelard, 1988, p. 13).*2

A discussão acerca do conceito de realidade é ampliada por Jung (1984) quando afirma, em O real e o supra-real, que a divisão do mundo em real, irreal e supra-real pertence à tradição de só se considerar como real o que é percebido pelos sentidos, fazendo do psiquismo uma tabula rasa. Sua posição, no entanto, é totalmente diversa desta. Para este autor, tudo o que atua sobre uma pessoa faz parte do real. Portanto, o inconsciente, com suas imagens, devaneios e sonhos, faz parte da realidade.

Nise da Silveira (1981), em seu estudo sobre o princípio ordenador das imagens do inconsciente, narra a busca de Fernando Diniz pelo espaço cotidiano.*3 Nas vivências de Fernando, o espaço encontra-se comprimido, onde os objetos surgem de maneira compacta, muito próximos uns dos outros. A primeira tentativa de Fernando em busca da reordenação se deu através do enquadramento dos diversos objetos, a fim de separá-los. Porém, como afirma Nise: “seria necessário que um tema carregado de afeto polarizasse sua atividade psíquica dissociada” (1981, p. 44).

O tema que surge é o da casa. Mesmo que a casa de Fernando tenha uma base no mundo dos sentidos, como nas casas de classe média onde sua mãe trabalhava, sua casa era na verdade uma casa onírica. Através da separação dos vários objetos que compõem a decoração de uma casa e, principalmente, pela descoberta do soalho, pintado com longas tábuas e grandes rodapés, é que Fernando começa a reorganizar seu espaço cotidiano. Até um dia, finalmente

organizar o espaço onde mesa e piano estão situados corretamente. Uma lâmpada, instrumentos de música e um livro aberto acham-se colocados sobre mesas. Vêem-se quadros suspensos à parede. Cada coisa está no lugar esperado num interior da casa burguesa (Silveira, 1981, p. 47).

E Nise acrescenta mais a frente:

Paradoxalmente, Fernando reencontra o espaço da vida diária numa casa sonhada, donde se conclui que o espaço imaginário e o espaço da realidade estão estreitamente interligados. A reconstrução do espaço cotidiano acompanha a reconstrução do ego (p. 48).

Na introdução para Cartas a Spinoza de Nise da Silveira (s/d), Marco Lucchesi diz que o livro que abateu de maneira impiedosa a psiquiatria clássica foi Imagens do Inconsciente e que, neste, Nise conta a história da exclusão vivida nos subúrbios. Porém, esta vida é recuperada num duplo sentido: político e ontológico. Isto se deve exatamente ao tema da casa em Fernando. Podemos, neste ponto, utilizar-nos do posicionamento de Gaston Bachelard: se o “homem vive sinceramente suas imagens e suas palavras, recebe delas um benefício ontológico singular” (1990a, p. 12).

O símbolo da casa surge na vida de Jung com uma função estruturante. Primeiramente em um sonho de 1909, no qual Jung se encontra em uma casa desconhecida e, apesar disso, sabia que se tratava de sua casa. Esta possui dois andares. No andar superior, Jung vê, em uma sala de estar, belos móveis em estilo rococó. Descendo uma escada, chega-se ao andar térreo, que se encontra na penumbra e onde tudo é mais antigo. Talvez uma instalação medieval do século XV ou XVI. No térreo, existe uma pesada porta que vai dar numa escada, por onde se chega à adega, local muito antigo, provavelmente da época romana. No piso da adega, vê-se uma argola que, quando é puxada, descobre uma escada no subsolo; neste, temos uma gruta rochosa. Na gruta, Jung vê ossadas, dois crânios muito antigos, restos de vasos e vestígios de uma civilização primitiva. O sonho lhe surge como um auto-retrato de sua situação psíquica:

Era claro que a casa representava uma espécie de imagem da psique, isto é, da minha situação consciente de então, com complementos ainda inconscientes. A consciência era caracterizada pela sala de estar e parecia habitável, apesar do estilo antiquado (Jung, s/d, p. 144).

O térreo corresponderia a seu inconsciente pessoal, enquanto a gruta, o mundo do homem primitivo – o inconsciente coletivo. Portanto, o térreo, a adega e a gruta representam níveis, ao mesmo tempo, ultrapassados e ainda não alcançados de consciência. Para Jung, o psiquismo vai além da possível memória de um inconsciente que se limita a um dado indivíduo. Sua idéia de inconsciente é de uma instância que possibilita o surgimento do novo, de idéias criadoras e que nunca haviam estado antes na consciência. O que interessa a Jung é a “espontaneidade criativa da psique inconsciente” (von Franz, 1992, p. 12). Porém, não se deixa simplesmente ser levado pelos devaneios. Tenta integrá-los à consciência e, com este intuito, decide construir sua casa perto do lago de Zurique. Jung considera a construção de sua casa um trabalho árduo, no qual encontrou apoio para suas fantasias e para seu material inconsciente.*4 Diz Jung:

Necessitava representar meus pensamentos mais íntimos e meu saber na pedra, nela inscrevendo, de algum modo, uma profissão de fé. Foi assim que comecei a construir a torre de Bolligen. Essa idéia pode parecer absurda, mas a realizei – o que foi para mim uma grande satisfação, um acontecimento significativo (s/d, p. 196).

Jung escolheu a casa para configurar o processo de seu desenvolvimento psíquico – processo de individuação. Ao construir o primeiro cômodo, em forma arredondada, sentia-se repousado e, com um sentimento de renovação, denominou-o materno. Depois acrescentou uma parte central em forma de torre; aí possuía um quarto onde ninguém entrava sem sua permissão, espaço este onde podia refletir, assim como liberar sua imaginação, tornando-se um local de concentração espiritual. Depois foi acrescentado um pátio. Este, ao mesmo tempo que delimitou o terreno, deixou a casa com um espaço aberto para o céu e a natureza. Depois da morte de sua esposa, Jung elevou mais um andar na parte central; este representava-o como ele era. Diz Jung: “a torre dava-me a impressão de que eu renascia da pedra” (s/d, p.197).

Segundo Bachelard, a casa onírica pode aparecer representada como gruta, labirinto, choupana, cabana, casa burguesa, e tantos outros motivos, pois existe “uma raiz única na origem de todas essas imagens” (1990c, p. 78). Sua tese é a de um isomorfismo imaginário, que possibilitaria a construção de um devaneio ao redor de uma imagem que impulsiona a pessoa para uma tomada de consciência, para a construção de um mundo. Este mesmo tema aparece em pesquisas de Mircea Eliade:

Exatamente como a cidade ou o santuário, a casa é santificada, total ou parcialmente, por um simbolismo cosmológico ou ritual. Essa é a razão pela qual o fato de estabelecer-se em lugar – fundando uma aldeia ou simplesmente construindo uma casa – representa uma decisão séria, uma vez que envolve a existência de cada homem; em suma, ele deve criar seu próprio mundo e assumir a responsabilidade de conservá-lo e renová-lo. A casa não é um objeto, “uma máquina dentro da qual se vive”; é um universo que o homem constrói para si mesmo, imitando a criação paradigmática dos deuses, a cosmogonia (1979, p. 35).

SOM E SILÊNCIO: A MÚSICA E A MEMÓRIA EMOCIONAL

Voltando ao atendimento realizado com a senhora que apresentava perda da memória, podemos dizer que, através da amplificação do tema da casa, assim como de outros temas privilegiados para uma reconstrução ontológica,*5 pudemos observar que se estabeleceu uma nova organização no sistema de representações psíquicas desta senhora, possibilitando que algumas lembranças, consideradas como perdidas, pudessem ser relembradas. Um exemplo está no fato de que havia alguns anos que esta senhora só tocava uma música ao piano, e em poucos meses de tratamento, pode recordar e tocar outras canções.

A música é um dos mais fortes fatores de integração social, presente em quase todos os encontros grupais: festas, encontros com amigos, comícios, jogos esportivos, etc. Apela, através de sua forte carga afetiva, para a memória emocional, na qual uma melodia reverbera e regenera sentimentos (Laing, 1988, p. 13). Nesse sentido, há que se notar, em primeiro lugar, que a única música que a senhora ainda tocava ao piano, antes de nossa chegada, era um tango, La Cumparsita. Esta música, certa vez, foi executada pela senhora em questão,na presença do compositor. Este lhe disse que havia sido a segunda vez que ouvira uma pessoa interpretá-la como havia imaginado.

La Cumparsita, ao mesmo tempo que lhe serve como emblema do sucesso alcançado, ligando-se, dessa forma, à suas vitórias em concursos de beleza, está associada à idéia de perfeição, podendo ser relembrada. Dizia com freqüência: “Não posso me queixar de nada. Tive um ótimo marido, ótimos filhos, muitos amigos, saúde, grandes momentos de felicidade. Uma vida perfeita, até que...”. Sua vida fica dividida em duas partes, sendo o divisor de águas a morte da filha. Metade da vida perfeita, a outra metade “esquecida”.

Neste mundo de esquecimentos entra a minha figura: cada vez que nos encontrávamos era como se fosse a primeira vez. Um possível constrangimento era contornado através da sua maneira de se dirigir a mim, sempre como “o amigo”. No entanto, em nosso quarto encontro, acontece uma surpresa. Ao chegar, vejo-a discutindo
com as empregadas e, depois, ao se sentar para conversar comigo diz ainda irritada: “Hoje quem faz as perguntas sou eu”. Inicia-se, dessa forma, uma verdadeira anamnese, na qual, em certo momento, depois de uma resposta minha, ela diz: “Isto já é um sintoma”. Nesse instante, através da inversão temporária de papéis, tive a certeza de que, apesar de não saber direito quem eu sou, sabia que estava ali para tratá-la, ou seja, para ajudá-la a fazer uma anamnese, em sentido lato.

O ato de relembrar não era feito de maneira contemplativa, mas sim por falas e, principalmente, por atos. Sempre ao final de nossos encontros, íamos para o piano. As canções começaram, aos poucos, a serem relembradas. Até que em um dia de muita tristeza, quando pôde chorar bastante a morte do marido, e contar-me uma história semelhante ao acidente de sua filha, porém referindo-se a outra pessoa, tocou ao piano, cantarolando a letra, uma música de sua autoria intitulada Papai Noel:

Papai Noel tu lembras para mim / O tempo lindo em que eu era criança
Quando trazias ilusões sem fim / Num mundo novo cheio de esperança
Lembro-me ainda do verde pinheiro / Todo enfeitado, e todo colorido
A ostentar na sala altaneiro / Luz de velinhas que já estão no olvido
Fechando os olhos vejo o bom velhinho / Papai Noel trazendo para nós
Presentes lindos dentro de um saquinho / Todo ternura em sua fraca voz.

Vale a pena lembrar que sua filha havia morrido quando viajava para comemorar o Natal com a família.*6 As festas são encontros privilegiados para se rememorar fatos, lembrar de pessoas queridas, ou seja, de acontecimentos e pessoas que já estiveram em festas semelhantes, sendo que “as festas que toda a família participa, como o Natal, são mais recordadas do que as que têm importância individual” (Bosi, 1994, p. 415). Neste caso, porém, esta festa deve ser a mais esquecida. No entanto, os fatos traumáticos, assim como as músicas relacionadas com a filha começam, aos poucos, a entrarem no campo da consciência, ganhando um novo sentido ontológico. As produções simbólicas estão carregadas de sentido.

NOTAS
* Doutorando em Psicologia Social pela UERJ, Mestre em Psicologia Clínica – PUC/RJ.

*1 No livro Cultura Amazônica: uma poética do imaginário, João de Jesus Paes Loureiro define o mundo em sfumato como uma espécie de passagem do mundo físico para o imaginário (1995, p. 38), transição do mundo real para a dimensão poética. A representação se faz através do devaneio poético e, neste ponto, Paes Loureiro apóia-se nos estudos de Gaston Bachelard.

*2 Fritjof Capra em seus estudos sobre a mudança de paradigma diz: vivenciar uma mistura incoerente de ambas as formas de percepção [cartesiana e transpessoal] sem poder integrá-las é psicótico. Mas estar limitado unicamente à forma cartesiana de percepção também é loucura; é a loucura de nossa cultura dominante (1991, p. 371).

*3 Este estudo também se encontra registrado na trilogia cinematográfica de Leon Hirszman, Imagens do Inconsciente, tendo o episódio sobre Fernando Diniz exatamente o nome de Em Busca do Espaço Cotidiano. Leon Hirszman certa vez se pronunciou da seguinte maneira sobre a produção de Fernando: o caso dele representa o mito da criação: a idéia do caos inicial, o esforço pela expressão, o retorno ao caos e de novo a luta – o mito de Deus que tenta fazer sucessivamente algo que não lhe agrada (1995, p. 68).

*4 Nise da Silveira (1992) relata que na França, um funcionário do correio – Ferdinand Cheval – sonhou com a construção de um palácio ideal. Quinze anos mais tarde, colocou em prática seu sonho. E, no Brasil, Gabriel dos Santos construiu a Casa da Flor, a partir de um sonho da infância.

* 5 Outros dois temas que surgiram foram o de seu casamento, com derivações tanto para a amizade quanto para o ciúme; assim como, o tema tabu da morte da filha, que foi tratado através de deslocamentos e não abordado diretamente, pois pensamos que esta atitude só acirraria às resistências, não contribuindo em nada para uma elaboração do luto.

*6 O corpo da filha nunca foi encontrado, sendo-lhe feito um enterro simbólico. Ecléa Bosi afirma, baseada em Halbwachs, que a família sempre espera a volta do filho pródigo, mesmo comportando-se como quem o esqueceu (1994, p. 424).

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ABSTRACT
Based on the C. G. Jung’s symbol conception, Gaston Bachelard’s studies on the imaginarium and the memory as a social constructiion, it’s avaliated the symbolism of the house and emotional reverberarion from musical subjects as mean to ontologic rerganization of an old ladie with lacking memory syntoms after the death of her
family in na accident.

KEYWORDS:
simbol, imaginary, memory, Jung, Bachelard.