ARTIGO 1

NOTAS SOBRE O CONCEITO DE ANGÚSTIA

NOTES ON THE CONCEPT OF ANXIETY



Betty Bernardo Fuks*

 


RESUMO
O artigo propõe examinar de que modo Freud chegou a construir, ao longo de sua obra, duas teorias sobre o eixo fundamental da clínica psicanalítica: a angústia. Um dos objetivos foi o de demonstrar que embora essas diferentes modalidades de apreensão do afeto pareçam absolutamente excludentes, na verdade estabelecem um jogo de mútua interferência. A partir das contribuições de Lacan, em seu O seminário, livro 10: A angústia, foram investigadas as relações entre o conceito de angústia e os conceitos de inquietante estranheza (Unheimlich) e de desamparo (Hilflosigskeit), tendo como meta apreender de que modo Freud chega a inverter a primeira proposição sobre a angústia e apontar duas origens distintas para esse afeto: angústia automática e sinal de angústia. A autora estende suas reflexões à tarefa do analista de, em seu ofício, oferecer uma garantia real à escuta da angústia.

PALAVRAS-CHAVE:
Angústia; Inquietante estranheza; Desamparo; Angústia automática; Sinal de angústia.

“Angústia é fala entupida”
Ana Cristina César

A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

Numa clínica onde a escuta sobrepujava o que se sabia até então, Freud se dá conta de que a angústia (Angst) constituía a queixa fundamental de seus pacientes, independente do quadro clínico que apresentassem. O que se delineia teoricamente em torno dessa questão encontra registro numa série de manuscritos enviados a Fliess no período que vai de 1892 a 1895 e pode ser resumido com a seguinte passagem do Manuscrito E. “Como se origina a angústia? Tudo o que sei a respeito é o seguinte: logo se tornou claro que a angústia de meus pacientes neuróticos tinha muito a ver com a sexualidade.”(Freud, 1894, p. 229) Interrogado por este achado, Freud se pôs a partir de diversas pistas, mas, principalmente, por aquelas impostas pela relação analítica, a apreender o que na angústia se encontra em jogo, sem delimitar, em nenhum momento de sua obra, um sentido universal a esse afeto.

Situada num primeiro tempo de sua obra como tendo por base, por fundo, uma expectativa ansiosa onde a energia é livremente flutuante, isto é, desligada, à angústia Freud conferiu o estatuto do afeto mais real, mais próximo da descarga energética na medida em que a descreve como a “sensação de acúmulo de outro estímulo endógeno, o estímulo da respiração, estímulo este que não é passível de ser psiquicamente elaborado além da própria respiração” (idem, p. 82). Nota-se, nesta pequena passagem que, de imediato, a experiência clínica revelou a Freud o afeto de angústia no nível mais elementar, fora de qualquer operação simbólica. Essa revelação lhe serviu, num primeiro momento, de ferramenta diagnóstica para estabelecer a diferença entre a etiologia das neuroses atuais e das psiconeuroses. Entretanto, Freud deixa sua percepção em quarentena até Inibição, Sintoma e Angústia (1926) – momento em que, como se verá mais adiante, passa a investigar a origem da angústia à luz da questão do trauma, do excesso de energia não vinculada, e dos conceitos da compulsão à repetição e do “além do princípio do prazer”.

O ponto de partida do mestre de Viena foi o de demonstrar que na neurose de angústia haveria um “decréscimo da libido sexual, ou desejo psíquico” (Freud,1895, p. 102) ao mesmo tempo em que se acumulava no organismo uma excitação somática de forma contínua à espera de uma ligação adequada. Já na neurastenia, a ação específica era substituída por uma descarga inadequada da libido. Freud insiste que, nestas afecções, a angústia é conseqüência da impossibilidade do sujeito em elaborar psiquicamente a excitação sexual, isto é, sua incapacidade de transformar energia em sentido. Denominou a neurastenia, a neurose de angústia e, mais tarde, a hipocondria; de neuroses atuais, pelo fato de não encontrar possibilidade de agregá-las às psiconeuroses, onde verificou a presença marcante de uma “angústia prolongada e recordada” (Freud, 1894, p. 78). A falência de um compromisso bem sucedido entre a força pulsional e as organizações do eu foi a razão pela qual Freud situou a etiologia das neuroses atuais como puramente física, isto é, ligada ao corpo real. Expressões máximas de angústia, os sintomas desses quadros foram considerados, por um longo período, sem possibilidades de serem submetidos à análise.

Em contraposição ao acúmulo de energia sexual não ligada característico das neuroses atuais, Freud detecta nos sintomas histéricos e obsessivos um acúmulo de tensão sexual psíquica. A idéia de transformação da excitação sexual, do excesso libidinal em angústia, deu origem à primeira teoria cuja tese é: a angústia decorre do recalque. Do ponto de vista teórico, fica estabelecido, nessa primeira proposição, uma relação fundamental entre os conceitos de recalque e pulsão e angústia, o que situou esse afeto numa dimensão metapsicológica ímpar. Assim posto, todo aquele que pratica a psicanálise está obrigado a escutar a angústia desde um outro lugar, bem longe das concepções filosóficas e psicológicas que se fizeram ou que se fazem sobre ela.

Tendo a experiência demonstrado a Freud que o sintoma psiconeurótico, de acordo com o movimento das pulsões sexuais, encobria a angústia, logo ele pode perceber que esta, amarrada aos diversos traços que sobredeterminam o aparecimento do sintoma, encontra nas conversões histéricas, nas fobias e nos rituais obsessivos uma firme ancoragem. O exemplo mais extenso registrado nas Obras Completas sobre esse mecanismo é, sem dúvida, o da análise do pequeno Hans. No texto de 1909, Freud serve-se da fobia para demonstrar a relação do retorno do recalcado com a angústia e articulá-la ao complexo que estrutura os destinos da vida sexual do sujeito: o complexo de castração. O que se descortina nos sintomas fóbicos, de forma evidente, e que serve de paradigma ao entendimento da angústia oculta pelo temor da perda do amor na histeria e pelo medo do superego na neurose obsessiva, é a angústia de castração, isto é, um afeto que, ligado ao complexo de Édipo, amedronta o sujeito.

Entretanto sabe-se que Freud, em vários momentos cruciais de elaboração teórica, se viu acossado pela questão da angústia, não por conta de uma insuficiência de observações clínicas, mas porque esse afeto escapa a toda e qualquer solução definitiva que lhe seja atribuído. Ao introduzir na teoria a idéia de um conflito pulsional entre as pulsões de vida e as de morte, Freud é levado a pensar a angústia desde um outro lugar e articulá-la também, o que escapa à trama edípica. É preciso lembrar que até a construção desse novo dualismo pulsional, a psicanálise tinha se limitado à leitura do que, em princípio, se encaixava dentro da lógica dos dois tempos iniciais de sua construção: Teoria da Sedução e Teoria da Fantasia. Um dos aspectos mais importantes da torção teórica dos anos vinte – torção que aqui se é obrigado resumir de maneira sumária e fatalmente superficial – foi, exatamente, o de ter trazido ao entendimento psicanalítico, os sintomas que indicavam a existência de um campo situado para além do campo fálico e, portanto, sem qualquer ligação com o complexo de castração. Ou seja, Freud endereçou sua escuta para além dos caminhos da libido, sem que tenha sido necessário, em momento algum, abandoná-los de todo.

De que modo as novas mudanças incidiram sobre a abordagem e conseqüente conceituação da angústia na segunda tópica freudiana? O estudo das neuroses traumáticas faz com que Freud postule uma ligação direta entre trauma e angústia: o traumático, algo da ordem do excesso pulsional e irredutível às malhas da simbolização leva, de forma imediata e intensa, à emergência da angústia. E esta, por sua vez, terá a função de promover algum tipo de vinculação para a energia excedente. (cf. Graziela Maia, 2000, p. 61-2). A partir desse momento, na história da psicanálise, o não inscrito rouba a cena do teatro neurótico para dar seguimento a elaboração do que, ainda que de forma embrionária, esteve presente em outros momentos na obra freudiana. Vejamos então, mais de perto, de que forma todo esse movimento se deu.

1919. Freud apóia a teoria da angústia à noção de Unheimlich, num ensaio que leva esse mesmo nome. Inquietante estranheza, a tradução mais conhecida para essa palavra alemã, indica a intrusão de algo no eu que faz o sujeito vacilar em sua posição identificatória, acarretando a emergência da angústia. Essa é a tese central do texto Das Unheimlich onde, através do estudo semântico do termo alemão heimlich, Freud conduz o leitor ao encontro de contrários para demonstrar que, pela ação do recalque, o familiar, o que é mais íntimo ao sujeito, torna-se estrangeiro – o que lhe é mais estranho –, e que justamente seu retorno é o que provoca angústia. A experiência de estranheza do sujeito frente àquilo que “deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz” (Freud, 1919, p. 282), aduz provas de verdade, isto é, confirma a relação íntima entre o afeto e o retorno do recalcado. O estranhamento não ocorre a partir daquilo que é simplesmente novo, mas antes diante do que é a um só tempo, estranho e familiar, há muito inscrito no psiquismo e alienado pelo trabalho do recalque.*1

Nesse ponto se faz necessário recorrer às lições de O Seminário, livro 10: A angústia, de Jacques Lacan, uma vez que considera a noção freudiana de Unheimlich uma espécie de “dobradiça indispensável para abordar a questão da angústia” (Lacan, 1962-63-aula de 28.11.1962), situando-a como o ponto limite à eclosão da angústia. A proposição de Lacan é a de que na experiência de inquietante estranheza.

o que temos diante de nós é nossa estátua, nosso rosto, nosso par de olhos, que deixa surgir a dimensão de nosso próprio olhar; e o valor da imagem começa então a mudar, sobretudo se acontece que esse olhar que aparece no espelho começa a não mais olhar a nós mesmos, initium, aurora de um sentimento de estranheza que é porta aberta para a angústia (idem, aula de 9.01.1963).

Ou seja, no ponto de identidade entre o familiar e o estranho eclode, ao mesmo tempo, a dissolução de um espaço – o imaginário – e a abertura para um outro – o real –, que se presentifica, quando “o mundo começa a desfalecer”, conforme faz notar Marcos André Vieira em seu estudo sobre a relação entre Unheimlich e angústia (Vieira, 2000, p. 125).

Em suma, Lacan serve-se do afeto de estranhamento para demonstrar de que modo a suspensão da imagem do eu faculta o acesso de angústia, na medida em que descortina a presença de algo não representável no universo simbólico-imaginário do sujeito. Logo ele situa o afeto aquém do recalque, em base à segunda teoria freudiana sobre a angústia e com apoio de sua própria construção do objeto a, objeto situado para além da realidade intercambiável necessária das pulsões de vida; objeto causa do dizer e, ao mesmo tempo, impossível de dizer. Se retornará a esse último tema mais adiante. Por hora, o que aqui se quer marcar é o fato de que das lições de Lacan depreende-se que o Unheimlich, signo de incerteza, diz respeito a toda a experiência que, descortinando o que não se pode representar, lugar onde o duplo não comparece, assombra e traz angústia.

Uma carta de amor escrita por Hannah Arendt a Martin Heidegger se faz aqui exemplar, pois retrata, fielmente, o ponto de despersonalização onde a angústia se presentifica.

“Martin, (...) desculpe-me se ao vê-lo hoje, armei imediatamente uma cena. (...) Coincidiram tantas coisas que me confundiram ao extremos. (...) Eu já me encontrava, havia alguns segundos, diante de você. Que com certeza já tinha me visto. Você tinha levantado rapidamente os olhos, de maneira mecânica, e não me reconheceu. Quando era criança, minha mãe me assustou certa vez da mesma forma, brincando de maneira tola. Tinha lido o conto de fadas do anão e seu nariz, no qual se conta a história de um anão cujo nariz crescia tanto que ninguém mais o reconhecia. Minha mãe agiu como se isso tivesse acontecido comigo. Ainda me lembro do pavor que me fazia gritar sem parar: eu sou uma criança, eu sou Hannah.” (Arendt, 2001, p. 20)

O mundo começa a ruir para Hannah, quando o olhar do outro abala sua posição identificatória. “Eu sou Hannah” é um recurso à nomeação. Recurso que devolve a capacidade do sujeito de efetuar distinções e simbolizar a experiência de se confrontar com um corpo que só é inteiro se dele for objeto. Mas existe um outro destino que não o da simbolização: o sujeito pode sucumbir à vivência de despersonalização angustiante, identificando-se com o objeto da angústia. Um exemplo clínico de Freud, registrado no texto A Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher, mostra claramente de que modo o afeto, como sofrimento, pode encontrar expressão na passagem ao ato. No lugar da nomeação e de sua conseqüência imediata, o discurso do desejo marcado pelo significante, a jovem homossexual diante daquilo que lhe causa horror – o olhar de ódio endereçado a ela pelo próprio pai, no momento em que ele a encontra de mãos dadas com uma dama na rua – joga-se sob a linha de bonde numa tentativa de suicídio (Freud, 1920, p. 142).

A distinção que Lacan introduz entre Unheimlich e angústia – referindo o primeiro termo a Outra cena e articulando o segundo ao real que subjaz ao significante – facilita apreender melhor todo o movimento que levou Freud a inverter a relação do recalque com a angústia na formulação de sua segunda teoria da angústia. Principalmente se levarmos em conta que Freud, no mesmo ano em que publica Das Unheimlich, redige “Mais além do princípio do prazer”, texto no qual introduz o conceito de pulsão de morte e a partir dele estende, definitivamente, sua escuta em direção ao papel decisivo dos fatores traumáticos, imprevistos e desorganizantes que se abatem sobre o sujeito. Com efeito, será na linha dos aportes da segunda tópica que Freud introduz uma nova teoria para o ensurdecedor barulho do silêncio – angústia – sem, com isso, negar toda a construção da primeira. Também a formulação do registro de um inconsciente não recalcado, muito mais extenso e amplo do que primeiro imaginou (Cf. Freud, 1915, p. 191), contribuiu para que ele chegasse a nomear duas outras modalidades de angústia. A concepção do sinal de angústia como função específica e a concepção de angústia automática, ambas concebidas à luz do conceito de pulsão de morte, estão intimamente articuladas ao conceito de trauma e à noção freudiana de desamparo (Hilflosigskeit).

Angústia automática designa uma reação ao afluxo de excitações, de origem externa e interna às quais, de imediato, o sujeito se vê incapaz de dominar. A rigor, esta modalidade de angústia reproduz uma experiência arcaica, pré-histórica, cujo paradigma seria o da experiência do nascimento. Este valor paradigmático que Freud atribuiu ao que Otto Rank pensava ser passível de elaboração a posteriori – o trauma de nascimento, é retomado por Lacan de forma percuciente. Com efeito ele assinala, em consonância com sua definição de real – exterioridade estranha ao significante, que a angústia é a resposta ao perigo mais original, ao insuperável Hilflosigskeit, o desamparo absoluto de entrada no mundo.” (Lacan, 1962 – aula do dia 19.12.1962).

A Hilflosigskeit, para recorrer aos termos de Monique Schneider, é um “apelo radical situado aquém de qualquer espera orientada.” (Schneider, 1999, p. 73). Apelo de sentido ao excesso de excitações sem medidas que, num primeiro momento, sofre o proto-sujeito em sua condição de “prematuridade” conforme Freud deu a conhecer (cf. Freud, 1926, p. 130-1). Invocação a um outro estrangeiro e desconhecido mas que é também “situado numa relação de extrema proximidade, pois é designado como Nebenmensh, como “ser próximo” *2 (idem, p. 73). Este outro hostil mas que é também a primeira potência capaz de prestar socorro ao desamparo (Freud, 1926, p. 189-376), alteridade radical, não pessoal, conforme as construções do Projeto, é encarnado, na experiência afetiva originária, primordialmente, por quem desempenha a função materna que é a de escutar,
discernir e significar, pela sensibilidade e reconhecimento do outro, o dilaceramento do grito do bebê. Grito que não pode ser reduzido apenas à mera expressão de uma necessidade orgânica, mas que deve ser escutado como apelo de sentido.

A Hilflosigskeit atual, convocação de sentido ao excesso de energia que o sujeito não pode elaborar, descortina o fato de que não há organização psíquica capaz de conhecer o que não pode ser pensado. Ou seja, enquanto a vivência de estranhamento ocorre no lugar da ambigüidade que constitui o campo da incerteza (Lacan, 1962-3, aula de 03.07.1963), o desamparo corresponde ao que se passa fora do campo do simbólico e do imaginário e que é sempre apreendido com pavor e terror. Dito de outro modo, enquanto o Unheimlich mantém, ainda que sob forma precária, o sentido, ao mesmo tempo em que abre as janelas para o real, o desamparo é, justamente, o apelo de sentido ao que se presentifica nessa abertura: o infigurável, o sem sentido que paralisa. Não se pode então deixar de sublinhar que se a angústia foi precocemente detectada por Freud como tendo relação direta com a sexualidade, isso não o impediu de também articulá-la ao campo onde a ordem simbólica ainda é muda ou, conforme suas primeiras intuições gravadas no Manuscrito K, campo das “vivências indizíveis que horrorizam” (Freud, 1894, p. 262).

Quando em Inibição, Sintoma e Angústia, Freud, à luz da noção de angústia automática, revê o que desde sempre se expressa como intocado pela operação simbólica, mais uma vez ele é obrigado a interrogar o afeto de angústia nas psiconeuroses. Ao retomar o estudo do caso do pequeno Hans, todo o desafio residiu em pensar a angústia em relação as vivências ameaçadoras da perda de objeto que o sujeito, em várias momentos de sua vida, é convocado a resolver psiquicamente:

Com a experiência de que um objeto externo, perceptível, é capaz de pôr fim à situação perigosa que evoca a do nascimento, o conteúdo do perigo se desloca da situação econômica para aquilo que é sua condição determinante: a perda do objeto. (Freud, 1926, p. 377)

Sobre essa perda, é necessário, nesse momento, convocar o que já se encontrava em germe no Projeto. Quando Freud estabelece, neste texto, os critérios que permitem o cadastramento cognitivo, ele conclui que o Complexo do Semelhante se dissocia em dois componentes:

um primeiro caracterizado por uma estrutura constante que permanece enquanto coisa do mundo (Ding), [e um] outro que pode ser compreendido graças ao trabalho da lembrança, ou seja, atribuído a uma mensagem emanada do corpo próprio”(Freud, 1895, p. 379).

As coisas do mundo (Ding), “os restos que escapam ao julgamento”, são, por assim dizer, o que na teoria lacaniana será retomado como resto de um gozo inassimilável que escapa às funções judicativas, cognitivas e diferenciadoras do sujeito. Atrelando a angústia ao primeiro componente – Ding – do Nebenmensh, Lacan insiste em afirmar que ela encontra nesse componente seu objeto, aquele que resiste “a toda assimilação significante” (Lacan, 1962-3, aula do dia 19.03.1963). Denominado por Lacan de objeto a, conforme já se disse, o objeto da angústia desloca-se no plano do real e repousa sobre o paradoxo de uma ausência, do nada: daí sua afirmação de que a angústia não tem uma causa significante. Em última instância, a angústia seria a única tradução subjetiva possível deste objeto que, em seu enigma, tem também um valor paradigmático de causa impossível do desejo.

Voltando a Freud: ao estabelecer articulações em torno da angústia com a perda do objeto no texto de 1926, ele dá a entender que esta angústia é sempre produzida na dependência de um perigo real efetivamente ameaçador, ou pelo menos, julgado como real. Face a isso, acrescenta que a angústia tem também a função de sinal: seja o perigo atribuído a um acontecimento externo (angústia realística) ou às moções pulsionais (angústia neurótica), conclui que “não se pode achar que a angústia tenha qualquer outra função, a fora a ser um sinal de evitação à uma situação de perigo” (Freud, 1926, p. 156). Em continuidade ao trauma de nascimento e às perdas dos primeiros objetos *3 , o sinal de angústia anuncia a aproximação de algo capaz de deixar o eu sem recurso, o que coloca a existência do sujeito em jogo. A atitude angustiada do eu traduz essa expectativa do sujeito “diante de algo” (idem, p. 154) que o ameaça. Alarme estridente, sinal de que algo fora da ordem significante está presente.

Já se está em condições de fazer observar que Freud distingue o sinal da angústia da situação de Hilflosigskeit que ocorre na angústia automática, justamente, pela função precisa de advertência que aquele contém. O sinal tem a função de revelar a possibilidade de que uma situação de desamparo aconteça, cujo enigma, em tempos não sombrios, o sujeito recobre com a fantasia. Uma outra diferença se interpõe entre essas duas modalidades de angústia: em contraposição à vivência passiva do sujeito no traumatismo que gera a irrupção da angústia automática, a angústia como sinal, em última instância, é um modo ativo do sujeito lidar com a situação traumática: uma percepção que remete a uma ação (Herzog, 1997, p. 87)

O apoio do conceito de angústia à noção de Hilflosigskeit implicou na inversão da proposição da primeira teoria: não é mais o recalque que causa a angústia, conforme as idéias expostas na Conferência XXV, mas a angústia é quem causa o recalque (Freud, 1926, p. 103-4). Para avaliar o alcance desta inversão, é preciso sublinhar que situar a angústia numa posição de anterioridade lógica em relação ao sintoma não significou uma oposição à primeira teoria. Instalou-se apenas uma antinomia aparente pela simples razão de que ambas teorias são decorrentes das próprias posições de Freud. A primeira teoria diz respeito ao registro econômico enquanto que a segunda pertence ao registro dinâmico. Eis, então, o ponto onde se desmancham todas as tentativas que se fazem de atribuir uma ruptura entre as duas teorias: a angústia continua, no final da obra de Freud, a ser considerada como “conseqüência direta de um fator traumático e, por outro lado, como um sinal de ameaça” (Freud, 1933, p. 87-8). Sinal que induz o eu a efetuar o recalcamento.

CONSEQUÊNCIAS CLÍNICAS

Na abordagem do conceito de angústia até aqui exposta, certamente cabe também refletir sobre a função específica da angústia na clínica. Função que, de imediato, remete ao lugar estrangeiro do próprio ponto de origem da angústia: lá onde a imagem especular mostra seu limite e o simbólico fica em suspenso, lá onde o saber construído é ferido de morte. Freud considerava a angústia um dos eixos fundamentais da clínica psicanalítica e Lacan inventou a figura dos três registros clínicos - Real, Simbólico e Imaginário - para melhor transmitir os efeitos desse afeto na clínica. A construção dos nós borromeanos foi sua tentativa de, através de uma expressão gráfica, representar de que modo o real, em sua “existência”, desfaz os efeitos da consistência do imaginário do sujeito e provoca o afeto de angústia.

Localizado o ponto de emergência da angústia na clínica, ela passa a adquirir um valor de sinal para o analista. Sinal de que algo excêntrico ao significante está presente no trabalho analítico. Sinal de que o sujeito está, justamente, passando pela experiência de encontrar-se com alguma coisa que permanece estrangeiro ao simbólico. Deve-se sempre considerar esse momento como propício para conduzir o paciente à ratificação subjetiva (Lacan, 1962, p. 63). Dito de outro modo: um certo limiar de angústia numa análise, quando bem conduzida, permitirá ao sujeito prosseguir na direção de desdobrar-se a si próprio através de novos sentidos e, conseqüentemente, afirmar sua singularidade. E que outra função teria uma análise que não essa de fazer advir o sujeito?

As aberturas presentes no texto de Lacan fazem entender que, na análise, o sinal de angústia tem a função de assinalar para o analista a própria dose que o analisando pode suportar do afeto à deriva. O sinal convoca o analista a prestar atenção ao quantum de angústia que emerge na sessão, e cuidar para que ela não seja apenas uma experiência nefasta de transbordamento pulsional. Porque a angústia na clínica é radical: quando ela não pode exercer sua função-limite entre o real e o simbólico o sujeito é, necessariamente, levado a sair da análise; numa fuga patética que convencionou-se chamar de acting-out. Repete o mesmo no lugar de navegar por caminhos nunca antes trilhados.

O psicanalista aprende na carne que alguns pacientes saem prematura e disruptivamente do tratamento, porque não alcança conceder-lhes a palavra, única via de estancar aquilo que a poeta, citada na epígrafe deste trabalho, chamou de fala entupida: a angústia. Interpretações excessivas, que transformam o processo analítico em uma prática hermenêutica e aplicações insensatas de um saber sobre a inesgotável melodia pulsional, são alguns dos efeitos da resistência do analista ao que está situado “para além” do registro das canções do prazer. Preservando, em quaisquer circunstâncias, a possibilidade de fazer emergir um novo dizer, o analista é convocado a sustentar uma prática que, além de acolher sujeitos diferenciados, nutre uma teoria inabalavelmente aberta ao que sempre permanecerá “por-vir”. Essa convocação é a serventia inexorável do discurso analítico, cujo destino é o de mover os circuitos pulsionais fazendo com que o sujeito fale o que nele se cala.

Mas sabe-se que somente pela transferência é que o analista pode operar essa ruptura. Quanto a isso, é preciso sublinhar que embora o sujeito entre em análise pela via da instalação do sujeito suposto saber, a exposição à alteridade é, de fato, o paradigma da função analítica. Apenas desse lugar o analista pode encarnar, na transferência, o objeto da angústia – o mesmo do desejo – e fazer operar o discurso analítico. Em relação a isto, como lembra entre nós C.A. Nicéas, o analista oferece uma garantia ao conceito de angústia com o real de sua presença, na medida em que “presentifica, na cura, a dimensão do Outro, o enigma de seu desejo”. (Nicéas, 1997, p. 43) Por fim, se é verdade que o Outro não pode ser atingido senão unindo- se ao objeto causa do desejo, então, de fato, o destino do analista será sempre o de ocupar este lugar, em todo e qualquer tratamento.

Que em Freud a exposição à alteridade tenha sido, desde sempre, recomendada aos analistas parece incontestável.

Não se discute que controlar os fenômenos de transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Pois, quando tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie (Freud, 1912, p. 105).

Para concluir, resta sublinhar, mais uma vez, que se o analista é convocado a manejar a angústia, seja através da vivência de inquietante estranheza ou da experiência de desamparo que surgem durante uma análise, é porque trata-se do único afeto que descortina a possibilidade de fazer emergir o novo, o não dito, tanto para o sujeito quanto para a teoria freudiana.

NOTAS

* Professora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC - RJ Notas: Psicanalista, Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Autora de Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Zahar,
2000.
*1 Sobre as teses centrais de Freud acerca da relação entre angústia e recalque no texto Das Unheimlich, ver o ensaio Marcus André Vieira (1999).
*2 Sabe-se que Freud sempre invalidou qualquer ruptura entre psicologia coletiva e psicologia individual, e que a angústia em sua relação com o desamparo (Hilflosigskeit) serviu de base às primeiras elaborações freudianas para uma Teoria da Religião. Em carta a Jung, alguns anos antes da redação de Totem e Tabu, texto no qual irá trabalhar a origem da religião (Totem) e da moralidade (Tabu) como intrinsecamente ligadas ao nascimento da cultura e do sujeito, escreve: “Ocorreu-me que a base última da necessidade do homem por religião é o desamparo infantil, tão mais acentuado no homem que nos animais”. (1979)
*3 De acordo com Freud, são os objetos oral, anal e fálico. Lacan junta a eles outros dois: o olhar e a voz.

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ABSTRACT
The article proposes to examine in what way Freud came to construct, all along his work, two teories about the fundamental axis of the psychoanalytic clinic: the anxiety. One of our aims was to demonstrate that, althought these different modes of conceiving the affect seeem to absolutely exclude one another, in fact they establish a game of mutal interference. As from Lacan’s constribuition, in his “Seminary, Book 10, Anxiety”, the relations between the concept of anxiety and the concepts of the uncanny (Unheimlich), and of helplessness (Hilflosigskeit) were examined, aiming at understanding how Freud comes to invert the first proposition about anxiety and to poit out two distinct origins for this affect: automatic anxiety and signal anxiety. The author extends her reflections to the analyst’s task of offering, in his work, a real guarantee for the listening of anxiety.

KEYWORDS:
Anxiety; Uncanny; Helplessness; Automatic anxiety; Signal of anxiety.