RESENHA

 

Cidades Mortas: uma profecia euclidiana

 

 

Rodrigo Lages e Silva

Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense–UFF, Niterói, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

CIDADES MORTAS(490p.)
DAVIS, Mike

Rio de Janeiro: Ed. Record, 2007.

 

 

No ano de 2004, o programa Roda Vida, da TV cultura, entrevistava o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa. Na ocasião, inquirido sobre a contenda que vinha travando junto ao apresentador Sílvio Santos a respeito da posse do terreno em que está situado o Teatro Oficina, no bairro Anhangabaú, em São Paulo, e onde o empresário há anos acalenta o sonho de construir um grande complexo comercial, Zé Celso, ao seu estilo, revelou-nos a secreta razão pela qual o apresentador vinha-se negando obstinadamente a encontrá-lo para um diálogo. Silvio Santos cria, por conta do que teria ouvido de um oráculo, de que no dia em que encontrasse pessoalmente José Celso Martinez Corrêa, seria o dia de sua morte. A morte é o último ato das profecias. A morte, o gran finale dos oráculos.

Na orelha do livro Cidades Mortas, publicado em 2002 nos Estados Unidos e em 2007, no Brasil, pela Editora Record, escrito por Mike Davis no amanhecer de um país emasculado do ícone global do capitalismo pujante: o World Trade Center, o editor declara tratar-se de um livro profético. O leitor que se aventurar pelas 493 páginas da coletânea de quatro ensaios intitulada Cidades Mortas concluirá que o editor não se equivocara.

Internacionalmente conhecido pelo brilhante estudo de caso da cidade de Los Angeles que realizou em Cidade de Quartzo (1993), Mike Davis ganhou o estigma de fatalista devido ao trágico horizonte que os eventos abordados em Cidades Mortas esboçam. Na esteira das grandes decepções que vieram junto com a pós-modernidade, a cidade não passou incólume e a profecia de Mike Davis dá o tom desse desapontamento com uma acusação e um lamento. Uma acusação contra as políticas urbanas implementadas pela elite WASP (White Anglo-Saxon Protestants) em prejuízo das demais etnias que lhe antecederam (indígenas) ou daquelas com as quais se vem somando na ocupação do território norte-americano (negros, hispânicos e asiáticos, principalmente); políticas estas sedentas de uma insustentável produção de lucro através do crescimento urbano. E um lamento pela destruição de uma frágil natureza cuja receptividade em relação à ocupação humana parece cada vez menor.

Assim, como seria impossível separar a plausibilidade do oráculo de Delfos da beleza semidesnuda de suas sacerdotisas, ou separar a contundência da previsão dos búzios das mãos enfeitadas do babalorixá, a sua profecia, Mike Davis transmite-nos com certos cuidados. Um deles indubitavelmente parece ser a insistência em deixar-nos a sós com “os fatos”. Não busca seduzir-nos da importância ou do significado deles, não nos convida a apreciá-los tal qual um anfitrião vaidoso nos mostraria a sua coleção de cristais. Nem de que se trata de uma coletânea de ensaios e não de uma monografia ou um de romance, de nada somos alertados pelo autor. E nessa adulação às avessas, Davis parece confiar todo o seu poder de persuasão. Dessa estratégia presunçosa, só nos resta uma conclusão: Mike Davis é um homem de certezas.

Toda essa confiança só poderia residir em fatos realmente impactantes, sendo esse o mérito inalienável de seu livro, isto é, a pesquisa histórica de episódios esquecidos pela história oficial das cidades. Logo no prefácio: Nova York em Chamas, no qual analisa os efeitos imediatos da queda das torres gêmeas na produção midiática do medo nos Estados Unidos, condição para que segundo Davis (2007) o imperialismo se tornasse mais uma vez “politicamente correto”, a alusão ao espancamento de um romeno com feições arábicas, ao esfaqueamento de dois corredores etíopes, às centenas de ataques contra sikhs, ao bombardeamento de três mesquitas, às mais de mil agressões a pessoas “percebidas” como “árabes” ou “muçulmanas”, além de seis assassinatos, ilustra a estratégia de Davis de confrontar a perversa máscara de maturidade do capitalismo global com a sua estúpida irracionalidade doméstica.

Esse prefácio, aliás, é um rápido momento de abertura que o autor nos oferece, compartilhando suas impressões do pensamento de Ernst Bloch, das telas de Orozco ou da literatura de H.G. Wells e John dos Passos. Depois dele, as imagens metafóricas vão cedendo espaço para as fotografias documentais e são elas que nos conduzem para o “Oeste de Néon” com que intitulou o primeiro dos ensaios que o livro nos apresenta.

Tomado das nações indígenas, espremido pela expansão das cidades, ocupado pelas forças armadas como área de testes militares e pela indústria como zona de despejo de resíduos tóxicos, o Deserto de Nevada é o símbolo de uma natureza aviltada pelas engrenagens de um poder que é destrutivo ao mesmo tempo naquilo que faz ruir com seus artefatos nucleares, incendiários, e naquilo que constrói com suas excreções de asfalto e concreto armado. E a água escassa que alimenta a sede dos resorts de aposta que se erguem no meio do deserto ressurge como elemento renovador numa análise dos tsunamis havaianos, divinatoriamente escrita às vésperas do grande tsunami de 2004, só para aumentar o tom profético do livro.

É essencialmente o crescimento de Los Angeles sobre a ameaçadora fenda entre as placas tectônicas que é focalizado no segundo ensaio: “Terremoto Pentencostal” Desde a extinção dos lugares públicos do centro, até a construção das grandes vias expressas e do metrô, Davis realiza uma minuciosa e extenuante descrição da transferência de capital público para os interesses privados imobiliários.

No terceiro ensaio: “Cidade dos Tumultos”, Davis traça, um esboço dos conflitos urbanos entre gangues étnicas que tiveram inspiração numa onda de agitações públicas realizadas por jovens brancos suburbanos nos anos 50 e culminaram com a divisão de Los Angeles entre negros e latinos numa disputa sanguinária pelas migalhas do capital.

Mas é no quarto ensaio, “Ciência Radical”, que Davis nos apresenta sua paixão epistêmica. Tivesse começado pelo final, o livro poderia tomar ares de monografia, o autor realizando a tarefa de nos apresentar a relação entre o estudo da formação da Terra a partir do impacto de meteoros e asteróides, com a efemeridade da existência das cidades sobre a crosta planetária. Entretanto, como cartas de tarô, Davis preferiu abri-las na nossa frente uma de cada vez, e a última que ele escolheu foi “o enforcado”.

É por isso que ao ler Cidades Mortas, percebemos um autor imerso no deserto onde foi criado (cresceu em El Cajón, Deserto de Nevada), esperando que a paisagem estéril deixe de ser um relicário de uma outrora natureza intocada, para ser restituída como horizonte final de um planeta devastado por catástrofes naturais que varrerão as cidades da superfície terrestre. Tal qual o Antônio das Mortes de Glauber Rocha a deambular pelo sertão encardido de pobreza e cangaço, vendo morte com indiferença, Davis tem a certeza ressentida do fim próximo. Ele não tem dúvidas, porque o deserto dele não produz num cantinho ali entre um calango e um buriti, aqueles dois fiozinhos d’água que se encontram para formar duas veredas forquilhadas que é onde um Riobaldo diz que desdiz que encontrou o Demônio no redemoinho; não é o deserto Canudos de resistir em nome de Deus tal qual um Antônio Conselheiro, que com a barba e o cabelo branco de Zé Celso diria, assim como disse para Sílvio Santos naquela entrevista ao Roda Viva: “Venha me encontrar! Venha que eu lhe garanto que você morre! Mas morre uma morte iniciática. Morre para dar lugar ao outro!”. As imagens e os fatos com que o autor profetiza a morte das cidades são imagens que gritam, não escutam. Não são dialéticas, não vacilam, não deixam rastro. Mike Davis é um comunista que se cansou da existência privada da Terra no universo, teme pela sobrevivência darwiniana do homem sobre o planeta e repulsa a geometria euclidiana das cidades. Mike Davis não conhece a força urbanizadora do deserto, não reconhece a morte como devir. Mike Davis precisa ler Euclides da Cunha.

 

Referências Bibliográficas

DAVIS, Mike. Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo: Página Aberta, 1993.

 

 

Endereço para correspondência
Rodrigo Lages e Silva
Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Campus do Gragoatá, Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, bloco O, sala 214, Gragoatá, CEP 24210-201, Niterói-RJ, Brasil
Endereço eletrônico: lagesesilva@gmail.com

Recebido em: 30/07/2009
Aceito para publicação em: 28/10/2009
Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo, Marisa Lopes da Rocha, Roberta Romagnoli.

 

 

Notas

* Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS; doutorando bolsista CAPES.