ARTIGOS

 

Questões de método e pesquisa dos dispositivos institucionais de confinamento do presente

 

Questions of method and research of the institutional devices of confinement of the present

 

 

Manoel Mendonça Filho I,*; Michele de Freitas Faria de Vasconcelos II,**

I Professor dos Núcleos de Pós-Graduaçao em Educaçao e em Psicologia da Universidade Federal do Sergipe - UFS, Aracaju, SE, Brasil
II Doutoranda em Educaçao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondencia

 

 


RESUMO

Partimos de uma análise de conjuntura que marca no Brasil, nos últimos 30 anos, processos de precarizaçao do trabalho, hegemonia do capital financeiro especulativo sobre a produçao, gestao retórica das imagens como modo de dominaçao e disseminaçao do confinamento como dispositivo de controle, resultando na desqualificaçao da vida posta a disposiçao do tecnicismo vazio de sentido. Contrastando suas experiencias com o pano de fundo da imagem 'Estado capitalista financeiro no Brasil', dois pesquisadores entrelaçam problemas de pesquisa: análise dos modos de objetivaçao das denominadas 'políticas públicas' de segurança (mais especificamente o sistema prisional) e saúde mental (serviços substitutivos de saúde mental). Problematiza-se como tais 'políticas' se articulam e compoem com o boom do confinamento dos últimos anos. Aqui apresentadas como 'etno-pesquisa-interferencia', de inspiraçao foucaultiana em conversa com as formulaçoes mais recentes da sócio-análise francesa e da Etnometodologia, articula-se um modo pesquisante pelo qual procedimentos, técnicas e instrumentos se constituem orientados pelo imperativo estratégico do método, que é ao fim e ao cabo, uma decisao político-afetiva de compromisso com a ativaçao do desejo nas pessoas como alternativa.

Palavras-chave: Pesquisa interferenciam, Método, Capitalismo financeiro, Confinamento, Políticas públicas.


ABSTRACT

The article begins with a conjunctural analysis which sets, in the last 30 years, work instability processes, hegemony of speculative financial capital over production, rhetoric management of images as a way to domination and dissemination of confinement as a control mechanism which results in the disqualification of life put at disposal of meaningless technicism. Setting their experiences against the backcloth of the 'financial capitalism State in Brazil' image, two researchers intertwine research issues: the analysis of modes of objectification of the so-called security (more specifically the prison system) and mental health (substitutive mental health services) 'public policies'. It is analyzed how such 'policies' articulate and make up with the confinement boom of the last years. Here presented as ethno-interference research, of foucaultian inspiration in dialogue with the most recent formulations of French social analysis and Ethno-methodology, it articulates a way of making research in which proceedings, techniques and instruments constitute themselves oriented by strategic imperative of method that is, at the end, a political-affective decision of commitment with the activation of desire in people as an alternative.

Keywords: Interference research, Method, Financial capitalism, Confinement, Public policies.


 

 

Boom do confinamento

Em "A história da loucura", Foucault (2004, p. 399) afirma que o isolamento/internamento do louco articula-se com a crise dos hospitais gerais, ou seja, da era do grande internamento, "uma crise que nao se liga a protestos políticos, mas que sobe lentamente de todo um horizonte econômico e social". Para ele, o nascimento do hospício no século XIX "respondia demasiadamente a uma necessidade real". Nesse cenário, se o internamento ainda fazia sentido, dizia respeito a uma "populaçao indigente", incapaz de prover a suas necessidades.

É que, no contexto das sociedades de produçao e, mais tarde, do capitalismo industrial, dá-se a transformaçao da populaçao pobre em populaçao produtiva:

Há aí toda uma reabilitaçao moral do Pobre, que designa, mais profundamente, uma reintegraçao econômica e social de sua personagem. Na economia mercantilista, nao sendo nem produtor nem consumidor, o Pobre nao tinha lugar: ocioso, vagabundo, desempregado, sua esfera era a do internamento, medida com a qual era exilado e como que abstraído da sociedade. Com a indústria nascente, que tem necessidade de braços, faz parte novamente do corpo da naçao, produzindo-se, entao, uma relaçao entre pobreza e populaçao, [...] uma populaçao será tanto mais preciosa quanto mais numerosa for, pois oferecerá a indústria uma mao-de-obra barata. (FOUCAULT, 2004, p. 405-06)

Se o internamento é passível de crítica "pelas incidencias que pode ter sobre o mercado de mao-de-obra", ele o é ainda mais "porque constitui, e com ele toda a obra da caridade tradicional, um financiamento perigoso" (FOUCAULT, 2004, p. 407). Gesta-se outro modo de inserçao da pobreza: "as mulheres de vida alegre que, levadas para as manufaturas do interior, poderiam tornar-se mulheres trabalhadoras?" (FOUCAULT, 2004, p. 397).

Nesse panorama em que se desenvolve a idéia de pobre como populaçao produtiva, gesta-se a concepçao de trabalhador livre, tratando-se, porém de uma liberdade restrita, de um indivíduo que, da perspectiva da produçao, só conta como força de trabalho, ou seja, só é livre para vender sua mao de obra.

Aqui cabe uma pergunta: "uma vez retirada toda essa populaçao, o que sobraria nas casas de internamento? Os que nao podem ser colocados em nenhum outro lugar" (FOUCAULT, 2004, p. 397), os pobres que nao estao aptos a produzir, que nao podem ser utilizados pela engrenagem capitalística 1. A esses, o destino é o internamento: loucos e criminosos 2. No século XIX, entao:

A loucura se individualiza, gemea estranha do crime, pelo menos ligada a ela, por uma vizinhança ainda nao posta em questao. Nesse internamento esvaziado de seu conteúdo, [nessa nova divisao], essas duas figuras subsistem sozinhas; as duas simbolizam o que pode haver de necessário no internamento: sao elas que doravante se apresentam como as únicas que devem ser internadas. (FOUCAULT, 2004, p. 399)

E no contemporâneo? Que modos de confinamento/internamento, que "novos" corpos se individualizam e, ao se-lo, sao condenados a um carimbo-passaporte, ao isolamento-apagamento em espaços em que 'outros' se encarregam de seus corpos?

Com a passagem da era industrial, fordista, para a era do consumo, das imagens, enfim, para a contemporaneidade, estamos vivenciando a transposiçao das sociedades disciplinares para as sociedades de controle. Em tal processo, "as formas do complexo de relaçoes de força que [...] prevalecem tendem mais a abertura do controle contínuo e permanente que ao fechamento descontínuo das instituiçoes disciplinares" (PIOVEZANI FILHO, 2004, p. 145).

Com a entrada em cena do capital extraterritorial, as relaçoes de poder tornam-se mais fluidas, mais invisíveis, cada vez menos coercitivas, escorregadias e fugidias, rejeitando, assim, qualquer confinamento territorial. Nessa direçao, Bauman (1999) anuncia o fim do panóptico, o fim da era do engajamento mútuo entre supervisores e supervisionados, líderes e seguidores, capital e trabalho.

Se, nas sociedades disciplinares, o objetivo era esquadrinhar toda a populaçao, bloqueando-se, para isso, a saída das pessoas de dentro dos pesados muros das Instituiçoes Totais (GOFFMAN, 2001): escola, quartel, fábrica, hospital etc.; agora, a exclusao impede a entrada nos espaços onde funciona a sociedade de bens e serviços e as Instituiçoes Totais funcionam como "bloqueadoras do escape desatualizam-se no contato com o espaço do capitalismo global traduzido em volátil, em ciberespaço [...] o banco de dados ilustra [...] essa [nova] espacialidade e o controle dos que nao podem entrar" (BAPTISTA, 2001, p. 81).

A esse respeito, afirma Coimbra (2001) que agora "aqueles que, nao conseguirem ser 'domesticados', docilizados e tornados produtivos, sao mostrados como 'perigo social' e, por extensao, dispensáveis". A autora conversa com Wacquant:

Acompanhando tudo isso o Estado nao mais sustenta a infra-estrutura indispensável ao funcionamento de uma sociedade e adota "uma política de erosao sistemática das instituiçoes públicas". Abandona a lógica do mercado - do 'livre mercado' - e do 'cada um por si' segmentos inteiros da populaçao, "em especial, aqueles que privados de todos os recursos [...] dependem completamente dele. É a política urbana do abandono concentrado 3. (COIMBRA, 2001, p.251)

Todavia, vale pontuar que o processo de passagem acima apontado nao se traduz numa oposiçao, e sim numa intensificaçao e generalizaçao da lógica disciplinar:

[...] a crise contemporânea das instituiçoes nao significa que os espaços fechados que definiam os espaços limitados das instituiçoes deixaram de existir, de maneira que a lógica que funcionava outrora principalmente no interior dos muros institucionais se estende, hoje, a todo o campo social. (HARDT, 2000, p. 369)

Conjuntura neoliberal em que o suposto Estado Democrático de Direito funciona 'de fato e de direito' como um Estado mínimo social e máximo penal. Aliadas a 'antigos' modos, presenciamos outras formas de confinamento, cuja imagem emblemática bem pode ser a da célula domiciliar onde se pede tudo por delivery, se paga contas com um cartao, ou ainda melhor, via computador. 'Lar' de um corpo que compra, que viaja, que se relaciona via internet sem precisar de deslocamento espacial.

Nesse cenário atual, o que há, entao, é uma descentralizaçao do confinamento: a lógica da descentralizaçao burocrático-administrativa, no final das contas, remete todos a uma mesma raiz. O que haveria de revolucionário nisso? "O que está sendo implantado, as cegas, sao novos tipos de sançoes, de educaçao, de tratamento. Os hospitais abertos, atendimentos a domicílio" (DELEUZE, 1992, p. 216).

O mote agora é reduzir custos no cuidado dos corpos, diminuindo, inclusive, a circulaçao dos mesmos. A setorizaçao do cuidado, a assistencia 'de volta pra casa' apresentam-se, entao, imbricados com a mesma lógica de corpos digitalizados, zapeando na rede: 'contente-se com a sua inclusao digital, o seu óbito foi registrado'. Do mesmo modo, nao é paradoxal, apesar de parecer, assistirmos, nos últimos 20 anos, no Brasil e no mundo, um boom do encarceramento, como demonstram os dados apresentados por Wacquant (2001).

 

Pesquisa, estratégia política e compromissos afetivos: a questao do método

Que linhas, que dobraduras, que "artes do vivível" estao implicadas na construçao e na análise de um problema de pesquisa? Um problema de pesquisa nunca está dado: nem de antemao nem a posteriori. Linhas emaranhadas e imprevisíveis, que nunca repetem sua própria forma, sem começo nem fim, parecem tece-lo e, nessa tessitura - sem desconsiderar a importância de "manter cursos" e "conservar alguns focos" -, se encontram mil pontos, dos quais se pode bifurcar (CORAZZA, 2002).

Produzir uma caracterizaçao do cotidiano do sistema prisional do Estado de Sergipe, mais especificamente da Casa de Detençao de Aracaju (CDA). Produzir uma caracterizaçao do cotidiano do sistema de saúde mental do município de Aracaju, mais especificamente do Centro de Atençao Psicossocial (CAPS) para Álcool e outras Drogas (AD), mais especificamente ainda, de como estas se articulam com certos modos de subjetivaçao de masculinidades dentro desse sistema. Produzir caracterizaçoes que se apóiem em uma experiencia de pesquisa marcada pela inserçao sistemática e regular no campo, escapando aos estereótipos e as falsas imagens sobre as condiçoes concretas de funcionamento dos sistemas carcerário e de saúde mental 4.

Eis o enunciado, de difícil consecuçao, do objetivo das pesquisas aqui anunciadas. Tal objetivo requer uma cuidadosa discussao sobre método. No que se refere ao sistema prisional, pela opacidade e totalitarismo do tipo de organizaçao em que nos inserimos. No que se refere ao sistema de saúde mental, no terreno da reforma psiquiátrica - em se tratando de uma pesquisa que ocorre num serviço substitutivo de saúde mental, CAPS AD -, pelo risco de se produzir uma discussao inócua, que nao analise os limites e desafios de um movimento antimanicomial tomado de assalto pelo Estado, ou seja, que corre cotidianamente o perigo de se institucionalizar/burocratizar.

Parecendo óbvio, os dois últimos parágrafos supracitados, introdutórios da questao de método que aqui se seguirá, tem funcionado muito como as expressoes bordao utilizadas nos sistemas de confinamento, que nao só os prisionais: prontamente enunciada, a coisa se esgota em si e nao faz derivar consequencias efetivas. Diante de instituiçoes totais e, nao nos enganemos, das novas espacialidades e dispositivos de controle que funcionam no contemporâneo, a posiçao da pesquisa se deteriora ainda mais rapidamente até os limites de uma "sobreimplicaçao" (LOURAU, 1987) de tal ordem que as análises sao comprometidas de antemao, em geral pela 'natureza' dos dados com que se opera ou se pensa operar.

Dito isso, precisamos também enunciar como essas colocaçoes se relacionam com certa atualizaçao da produçao do discurso científico no que se refere ao discurso de método: se estamos indo na contramao de perspectivas essencialistas e universalistas, se nao se trata mais de produzir a "verdade", mas verdades circunstanciais, como falar em rigor? Qual o critério de cientificidade? O que pode sustentar a especificidade do discurso científico do ponto de vista do que interessa ao pensamento?

O rigor mantém-se na delimitaçao clara e distinta, mas dos procedimentos técnicos e das circunstâncias em que os objetos se constituem e as verdades se produzem. Uma densa descriçao de procedimentos e a clara enunciaçao dos compromissos pelos quais se narra os acontecimentos é o que pode liberar o pensamento para outras trajetórias e outras aventuras, é onde se atualiza a especificidade do discurso academico, é como se politiza o especialismo.  Em última análise, o rigor é auferido pela efetivaçao do movimento estratégico. Qual é a nossa estratégia? Qual nosso interesse e posiçao político-afetiva? Como, a partir de uma experiencia, produzimos verdades que sejam condizentes com os compromissos na rede de relaçoes a partir da qual a experiencia nos afeta?

A pesquisa científica é uma atividade social tao submetida quanto qualquer outra as condiçoes sócio-históricas sob as quais se desenvolve, estando, assim, carregada de tonalidades político-afetivas na trama de níveis de titulaçao, paixoes, condiçoes de financiamento, ciúmes e cumplicidades, "necessidade" de produtividade academica, vaidades, interesses institucionais em relaçao ao eixo temático e, evidentemente, esquemas de exclusao e controle de perspectivas teórico-críticas. O problema de pesquisa é construído e abordado no bojo dessa trama, a partir de certa política de teorizaçao e de vieses e compromissos afetivos, assumindo-se o ônus e o bônus de assim compor.

O método como uma operaçao do espírito, antes de sua reduçao a instrumentos e procedimentos, é aqui foucautiana estratégia rigorosa de enfrentamento de um risco, um problema, um paradoxo. Premissa política-afetivamente implicada a orientar a invençao de táticas/técnicas (instrumentos e procedimentos) que a efetivem. Aposta radical de um ponto de vista que nela arrisca tudo.

Em última análise, os instrumentos e as técnicas utilizados se constituem orientados pelo imperativo estratégico do método. Os procedimentos e instrumentos de uma pesquisa sao da dimensao tática. O método, a estratégia, marca um interesse político desejante que a tática visa operacionalizar. O rigor na explicitaçao do movimento que se poe como modo de objetivaçao da dimensao político afetiva da estratégica em termos táticos de uma operacionalizaçao metodológica em suas implicaçoes conjunturais ocupa, aqui, o lugar de critério de cientificidade.

Assim, compondo com uma perspectiva teórico-metodológica de inspiraçao foucaultiana, entrelaçam-se gestos pesquisadores - dimensao de existencia que aparece no modo como estao selecionados e agrupados gestos de pessoas agindo segundo um esquema de funcionamento sujeito-pesquisador nos registros institucionais - e problemas de pesquisa: análise das formas de objetivaçao das assim chamadas 'políticas públicas' de segurança (mais especificamente o sistema prisional) e saúde mental (serviços substitutivos de saúde mental). Dito de outro modo, análise de como tais 'políticas' se articulam e compoem com o boom do confinamento.

Em nossas inserçoes tropeçamos com práticas que indicam características de possíveis mudanças históricas singulares: as conversas com agentes prisionais, técnicos administrativos e gestores de diferentes escaloes do sistema mostraram a concordância das análises informais destes com as análises feitas pelos 'internos'. Ninguém, com experiencia neste sistema, defende, argumenta ou menciona com seriedade a tal funçao de 're-socializaçao', desde que informalmente.

Uma expressao que no âmbito do sistema prisional é quase gíria. Aparece em segmentos como 'Ah, mas segundo os princípios da re-socializaçao [...]'; 'Ô? A gente nao tá aqui para re-socializar? [...]', em situaçoes referidas a distância entre o que um grupo de agentes prisionais chamou de o real e o oficial. Assim, o termo 're-socializaçao' aparece como marcador de conversaçoes que sinalizam uma impossibilidade de seguir com uma linha de argumentaçao e raciocínio por se deparar com o descolamento do discurso da experiencia comum, portal do 'sem sentido'.

Profissionais de saúde mental, usuários, familiares em CAPS, almejando produçao de autonomia e cidadania, reabilitaçao psicossocial? Palavras ao vento, palavras institucionalizadas, jargoes repetidos diariamente! Ao proclamá-las, parecemos continuar presos, como diria Chico Buarque, esperando, esperando o trem, esperando a morte, mesmo vivos, para esperar também. No entanto, pelo tempo que ocupam nos discursos gestores e pelos esforços em difundir informaçoes sobre o sucesso das finalidades institucionais dos dois sistemas, fazem repensar hábitos de análise.

A pista veio da fala de um técnico de segundo escalao: "É uma sinuca de bico esse negócio de reabilitaçao pelo trabalho com tanto desemprego. Se dentro dos presídios a coisa funcionasse, ia ter gente cometendo crime para ter chance de ingressar no programa".

Todos estamos cumprindo pena: a pena de subsumirmos nossos corpos a uma existencia normalizada. Nossos corpos, virtualmente, sao culpados. O corpo é um aberto de possibilidades e a culpa advém dos nossos corpos insistirem, na maioria das vezes de forma inconsciente, em extravasar as fronteiras desse possível pré-estruturado, dessa campânula de vidro em que nos colocaram.

Os corpos devem ser vigiados. Esses homens, usuários de álcool e outras drogas, usuários do CAPS AD, estao cumprindo pena: ao ousarem borrar e interrogar o ideal de limpidez, do 'tudo está sob o controle', dos corpos normais, corpos saos, corpos fortes, corpos aptos, os corpos desses homens tornam-se corpos identificados, corpos abjetos, que nos oferecem o limite. Como? Limitando-os. Homens, corpos nao cidadaos, agora adoecidos e nao mais criminosos, devem cumprir pena nao mais no presídio, nao mais no hospital psiquiátrico, mas no CAPS.

Ir, frequentar o CAPS, essa é a pena a cumprir se desejam se tornar novamente cidadaos, consumidores, consumidores de políticas públicas. Lá, eles comem, bebem, dormem de dia, o que nao podem muitas vezes fazer de noite; lá, para nao perderem a vaga que ganharam na loteria, muitos fingem, até para si mesmos, querer voltar a ser "homem", ser trabalhador, homem honrado, bom filho, bom marido e bom pai; lá, eles cumprem penas.

'Nova cultura de cidadania', o famigerado projeto de ampliaçao da 'democracia participativa', alardeado pelos governos brasileiros dos últimos 10 a 12 anos, cria imagens de açoes e dispositivos educacionais que seriam adotadas e desenvolvidas por 'organismos governamentais' e setores da 'sociedade organizada' visando uma mudança de cultura orientada pelo 'paradigma da Cidadania e dos Direitos Humanos'. Documentos relativos a ciclos de dispositivos sociopedagógicos direcionados ao funcionalismo estatal e/ ou terceirizado conhecido como conferencias municipais, estaduais e nacionais de ... (saúde, educaçao, juventude, direitos humanos, segurança, etc.) sao exemplos emblemáticos da modalidade discursiva  que se tem em mente.

Malgrado a repetida retórica estatal, a complexidade - e decorrente grau elevado de dificuldade - de qualquer mudança cultural é dimensao incontornável própria ao ritmo histórico que caracteriza os processos de produçao de valores e crenças em relaçao aos modos de funcionamento e as práticas cotidianas. Isto coloca o problema para além da facilidade com que é apresentado na propaganda oficial.

Assim, intervençoes relativas aos modos de subjetivaçao, historicamente constituídos, próprios a uma sociedade, ou segmento desta, sempre foram desafios das ciencias humanas. Está-se aqui em meio ao processo pelo qual os interlocutores formam ideias inéditas ou dao continuidade aquelas existentes - formaçao e transformaçao de ideias irredutíveis as características de um ou de outro interlocutor, só explicáveis pelo singular sócio-histórico da relaçao que os constitui.

Diante do acima posto, nossa proposta discute a hipótese de que ao invés de se pensar as mudanças de estilo gerencial dos últimos governos como uma abertura política, haveria, ao abrigo das imagens de 'abertura política' e 'aperfeiçoamento democrático', indícios de uma mudança nas funçoes societárias de tres grandes sistemas de sustentaçao do 'estado de direito' no Brasil. Tal mudança criaria uma convergencia da rede pública de escolas, serviços assistenciais de saúde e unidades prisionais nas implicaçoes destes com a produçao institucional de violencia5 objetivada por uma 'atividade generalista' de encargo direto dos corpos, agrupada sob a rubrica de fluxograma do estado policial como funçao de 'serviço social'.

Pelo desempenho dessa nova funçao de encarregado direto pelos corpos se constituem 'saberes técnicos' relativos aos modos descentralizados de confinamento. Saberes comuns a professores de escolas públicas, enfermeiros e assistentes da rede pública de saúde, agentes de reeducaçao e resocializaçao.  

Após alguns anos de pesquisa-interferencia no Sistema Prisional e no Sistema de Saúde, aprendeu-se que a contradiçao enunciada na dupla funçao isolamento e reinserçao compoe coerentemente a funçao institucional. O fato da idéia de re-socializaçao pelo trabalho aparecer como falseta surgiu como analisador: se já nao é mais para o trabalho, o que orienta as práticas de socializaçao em uma sociedade em que, como nunca cultuado e na mesma medida precarizado, o trabalho já nao é valor absoluto?

Progressivamente suspeita-se: A) da morte do deus trabalho e imediatamente de sua forma de culto: a educaçao; B) da finalidade desta segunda: 'melhoria da qualidade de vida das populaçoes'. Do mesmo modo, o que se faz entao na rede de saúde - já que nao é, pelo menos só e na maioria das vezes, produzir saúde? E na escola - se já nao é educaçao o que aí se ativa? E na prisao - pela eloquencia da obviedade de que nao é socializaçao o fazer no sistema prisional?

Seguindo e construindo linhas labirínticas, a partir de nossas artes do vivível e de pesquisa, a construçao do problema visou as condiçoes sócio-históricas de produçao e reproduçao da funçao político-institucional de encargo direto pelos corpos. Visou, ainda e, sobretudo, as possibilidades de re-existencia pela ativaçao do desejo nos corpos, inclusive nos nossos. Trata-se de uma etno-interferencia sobre os modos de dizer e fazer encontrados em diferentes estabelecimentos e organizaçoes do sistema carcerário e de saúde mental.

 

Pesquisa-Interferencia

Como fazer pesquisa transitando nos limites, por entre as disciplinas e saberes, na zona de indeterminaçao que entre eles se produz, atravessando velhos caminhos, na busca do que nao foi percorrido? Como desenhar uma metodologia que implique o esforço de evitar simplificaçoes reducionistas, cedendo lugar a uma nova forma de experimentaçao que indica o desafio de se superar o isolamento e comprometer-se com as pessoas?

O ponto de partida da nossa estratégia metódica consistiu em problematizar a invençao dos procedimentos de inserçao, construçao de dados e análise, seguindo as formulaçoes mais recentes da sócio análise francesa (interferencia) (LOURAU,1997) e a idéia de uma regra de adequaçao única do sentido das enunciaçoes (indexabilidade) trazida pela Etnometodologia (GARFINKEL, 2001). Esse movimento resulta no que é aqui apresentada como 'etno pesquisa interferencia' ou como 'etno-interferencia'. Sugestoes promissoras, ainda que discutíveis, pelo que estas buscam no sentido de inverter o problema e transformar a ligaçao com o campo de pesquisa em vantagem.

Há aqui o explícito interesse de manter o enfoque da relaçao de reciprocidade e simultaneidade entre 'produçao de conhecimento', 'interferencia' no processo estudado e implicaçoes político-afetivas - paradoxo de práticas especialistas que envolvem algum tipo de 'açao social', talvez nao apenas destas. Isto nao por uma propriedade que lhes pertença, mas, sem dúvida, pelas capacidades e autoridades que os modos de recepçao lhes atribui:

[...] temos outras urgencias: nao basta relativizar na pesquisa, como o antropólogo cultural; fazer dos documentos monumentos, como o historiador; conectar em rede, como o sociólogo, embora tenha sido em tais bibliotecas que aprendemos a suspeitar da maior parte do que é dito (e instado a fazer, pensar e ser) nas nossas. Somos necessariamente interventores diretos no campo social, dotados de "poderes que podem favorecer ou matar definitivamente a vida", mesmo quando agimos em nome de verdades científicas restritas ou locais. (RODRIGUES, 1998, p.45)

Por meio do que intitulamos de etno-interferencia, é através da trama inserçao-levantamento-caracterizaçao-análises-discussao pública de alternativas que o movimento de pesquisa operacionalizado visa a constituiçao de uma dispositivo com capacidade analítica e potencial de interferencia nas relaçoes cotidianas. O objetivo - em um sentido fraco já que, humanamente, se rompe com a ilusao de que o futuro deva ser conforme o passado - é que as verdades construídas deixem de ser propriedade de especialistas e sirvam as pessoas diretamente vinculadas aos processos sociais em questao.

Mas, como se torna operatória a noçao lourauniana de interferencia? Falar em pesquisa intervençao, ou termo equivalente, leva ao risco de se cair, quase que automaticamente, em uma atitude militante, nos moldes de uma cruzada. Esta seria orientada por um tipo de 'teleologia da libertaçao', anunciando aos quatro ventos seus propósitos de romper com os grilhoes que acorrentam os escravizados. A imagem estereotipada da 'pesquisa participante' se completa com a idéia de que ela estaria instrumentalizada por uma metodologia 'clarividencialista', capaz de iluminar tudo o que está no campo inacessível das trevas, dando, assim, 'consciencia'.

Se nao se trata de cruzada, nao se trata também de abstrair acontecimentos cotidianos que nos envolvem. Ao contrário, a pesquisa nos aparece como alternativa político-afetiva de enfrentamento ao modelo das açoes partidárias e/ou corporativas dos quais já se suspeita. Ilusoes de um comum senso: escapar a usurpaçao dos interesses específicos, e ao vazio de certa gramática, se instrumentaliza taticamente pela tarefa de encontrar um campo de coerencia conceitual que permita pensar acontecimentos no âmbito de organizaçoes totais e dos modelos assistenciais, acionando um dispositivo de discussao coletiva das implicaçoes situacionais com a lógica capitalística. Desse modo, imediatamente informado pelas circunstâncias da pesquisa, o pensamento se debate para escapar aos sentidos habituais de um cotidiano ubíquo (GUATTARI, 1992).

Como alternativa a noçao de intervençao, que se articula a uma açao que se pretende completamente orientada por um objetivo pré-estabelecido, utilizamos a noçao de interferencia, a qual supoe uma açao que nao intenciona antecipar 'o' sentido que sua aproximaçao com o campo de relaçoes construirá, abrindo espaço para deixar-se surpreender com tal campo e, nele, com os sentidos produzidos a partir de tal interferencia (ALTOÉ, 2004).

Questionando, entao, o modelo e as implicaçoes da pesquisa-intervençao, no presente trabalho, o interesse maior se detém no tema das relaçoes que constituem as açoes de pesquisa, no caso específico, nos espaços de funçao pública em organizaçoes totais e em modelos assistenciais.

Como pesquisa participante, em um sentido amplo do termo, aqui ficam acentuados dois aspectos: o primeiro, pensar o método como especificaçao sistemática de um proceder orientado por interesses de conhecimento singular de acontecimentos raros - Nao se tratando de abordar processos regulares ou, dito de outro modo, sendo o caso de enfrentar os automatismos padronizados característicos da lógica capitalística, inclusive os automatismos de pesquisa, fica-se obrigado a um esforço de experimentaçao metodológica em busca de entendimento sobre processos sociais em estado de fusao. Concebe-se, portanto, a questao metodológica como estratégica no fazer pesquisante e nao como um cargo de especialistas metodólogos:

[...] uma vez que o objeto de pesquisa da sociologia é a vida social na qual estamos todos envolvidos, a capacidade de fazer uso imaginativo da experiencia pessoal e a própria qualidade da experiencia pessoal de alguém serao contribuiçoes importantes para a capacitaçao técnica desta pessoa. (BECKER, 1993, p.45)

O segundo aspecto implicado na noçao de pesquisa participante, por conta mesmo do permanente estado de experimentaçao de como se concebe a pesquisa, surge a questao do tipo de pesquisador e do tipo de objeto de estudo que se especificam pela pesquisa.

Considerando o pesquisar como acontecimento sócio-histórico e, porque tal, executor, destinatário, instrumento de políticas, a tática de abordagem refere-se ao mapeamento da produçao discursiva local e cotidiana, a análise de rotinas e automatismos padronizados que sustentam os funcionamentos instituídos. O que se visa, estrategicamente, é um comentário sobre os jogos de linguagem (WITTGENSTEIN, 1994) que discuta as lógicas que os inspira. Neste plano, a pesquisa pôde tornar-se interferencia a medida que colocava em análise, nos espaços das organizaçoes de saúde e do sistema prisional, as imagens agostinianas6 postas como justificadoras dos modos de operar e os 'propósitos formalmente enunciados' da referida 'funçao pública'.

A partir das consideraçoes realizadas, pode-se dizer que a pesquisa-interferencia insere-se num movimento mais amplo de re-orientaçao da pesquisa em ciencias humanas, um movimento de rejeiçao de pretensoes essencialistas e universalistas. Desse modo, a análise aspira e, quem sabe inspire, o surgimento de outros mundos por outras práticas.

A pesquisa passa, entao, a se mover segundo algumas marcas específicas: a) foco na dimensao local dos eventos sociais, nas atividades mais ordinárias da vida cotidiana; b) compromisso com o circunstancial, tanto da pesquisa, quanto do pesquisador e modo de conceber o objeto de estudo/problema de pesquisa; c) aproximaçao e compromisso com o desejo nas pessoas; e d) operacionalizaçao da interferencia através de dois dispositivos inseparáveis: o dispositivo analítico e o articulacional, ou seja, o pesquisar uma atividade híbrida, porosa, como experimentaçao, negociaçao e composiçao - entre pessoas, entre espaços paisagens, o pesquisante e sua trajetória atravessando relaçoes - e nao como interpretaçao de outra realidade circunscrita e a priori.

 

Pesquisa nesses espaços-tempos

Sabe-se que, no contemporâneo das sociedades ocidentais, a lógica hegemônica é a capitalística. O modo de operar de tal lógica, ao transformar tudo e todos em valores intercambiáveis pelo equivalente universal, produz vazio de sentido, principalmente sob o âmbito do capitalismo financeiro em que tudo desincorpora. Isso leva ao limite o efeito de heteronomia das instituiçoes em face as relaçoes cotidianas. Diante disso, pensamos que uma possibilidade de (re)existencia dá-se através da ativaçao do desejo nas pessoas, tensionados contra os interesses institucionais.

O alvo da análise sao conjuntos de lógicas abstratas de ordenamento das relaçoes, articuladas em dispositivos de regulamentaçao da vida, as instituiçoes. Tais feixes institucionais podem ser leis, normas e/ou pautas, formaçoes discursivas através das quais se objetivam e se legitimam valores. Em outros termos, entendemos como instituiçoes:

[...] nao o estabelecimento ou local geográfico, mas relaçoes e campos de força instituídos e produzidos - percebidos como naturais que se opoem constantemente a outros campos de força instituintes. Daí dizemos que as instituiçoes - diferentemente de como sao vistas - nao sao estáticas, cristalizadas e, portanto, eternas. Estao em constante movimento, o que significa que podemos nelas interferir. (COIMBRA, 2001, p. 21-22)

Todavia, uma vez organizadas entre si, as instituiçoes produzem uma sensaçao de estabilidade que tende a ser naturalizada e uma operaçao contínua de moralizaçao. Nessa direçao, aproxima-se o dilema institucional do dilema existencial:

[...] toda instituiçao impoe ao nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntárias, uma série de modelos, e dá a nossa inteligencia um saber, uma possibilidade de previsao, assim como de projeto. Nós reencontramos a conclusao seguinte: o homem7 nao tem instintos, tem instituiçoes. O homem é um animal se despojando da espécie. Assim, o instinto traduziria as urgencias do animal, e a instituiçao, as exigencias do homem. [...] o tipo homem é um projeto de formaçao de instituiçoes. (DELEUZE apud PAULON, 2006, p. 127)

As instituiçoes e os modos de subjetivaçao - tomados aqui como "campos enrijecidos dos repertórios de subjetivaçao" - sao vetor e suporte, duplamente, de um complexo poder-saber: produzem-se e naturalizam-se as instituiçoes, produz-se e naturaliza-se certo tipo de subjetividade, certo tipo de produçao desejante, um certo "percurso conformista do desejo ao processo moralizante das instituiçoes" (PAULON, 2006, p. 124-125).

Na contramao de tal naturalizaçao, intentamos afirmar o sentido de produçao histórica dos processos de subjetivaçao e das instituiçoes. Se instituiçoes e subjetividades nao sao essencias, naturezas, origens, cabe a liçao de Castoriadis (2004, p. 159) ao falar do dispositivo grego da democracia:

Esta ruptura pressupoe que esses mesmos indivíduos que foram fabricados por sua sociedade, que sao fragmentos ambulantes, puderam se transformar essencialmente, puderam criar os meios de pôr em causa e em questao as instituiçoes que haviam herdado, as instituiçoes da sociedade que os formara.

Retomando a questao do método, qual seria nossa estratégia? Orientar a pesquisa pelo desejo das pessoas e nao pelos interesses institucionais constitutivos da lógica capitalística. Procedendo ao desmonte dos automatismos padronizados pelo descrédito nas redundâncias retóricas prestidigitadoras da Verdade, principalmente aquelas dos enunciados jurídicos. Partindo da idéia de aprisionamento pelas 'imagens agostinianas' (WITTGENSTEIN, 1994), lembramos aqui das reflexoes sobre a tautológia comunicativa apresentada por Lucien Sfez8 , para entender os modos oportunísticos pelos quais a lógica do capitalismo financeiro se articula.

Mais uma vez, anuncia-se o escopo do nosso trabalho, das nossas pesquisas-interferencias: tentar resistir, tentar furar o cerco da lógica capitalística, do tautismo comunicacional e dos automatismos tecnicistas, criando dispositivos de análise coletiva das implicaçoes; produzir espaços-tempos em que os processos de institucionalizaçao que nos constituem possam ser postas em questao.

Sao por nossas práticas, emergindo das relaçoes dos homens e das mulheres, e nao por fatos externos a nós, que se estabelecem a justiça e as injustiças (CASTORIADIS, 2004).  Em linhas gerais, o método, no nosso caso, é a estratégia para explicitar essa questao, colocando em funcionamento esses espaços-tempos de análise coletiva das implicaçoes e crítica as instituiçoes, as lógicas que nos orientam na ordenaçao de nossas relaçoes. É, entao, no sentido de reativaçao do desejo nas pessoas, que se ressalta a importância de reativar os saberes locais, fazendo ruir o lugar imaculado do especialista e o seu poder de estabelecer A verdade do mundo, garantindo-se objetividade por meio do calculo técnico de base racional.

Desde o século XIX e ainda nos dias atuais, os regimes de verdade que vigoram nas sociedades ocidentais tendem a ser veiculados, dentre outros equipamentos sociais, pela ciencia, mais especificamente um modo hegemônico e legitimado de fazer ciencia, a saber, o positivista, com seus ideais de neutralidade, objetividade e universalidade. Este elege determinados discursos como verdadeiros e considera outros como falsos. Contrapondo-se ao ideário positivista, é que se intenta focar nos saberes locais: saberes dominados, descontínuos, nao qualificados e nao legitimados pelos discursos englobantes, hierarquizantes e totalizantes produzidos pela 'ciencia'.

Que tipo de saber voces querem desqualificar no momento em que voces dizem 'é uma ciencia'? Que sujeito falante, que sujeito de experiencia ou de saber voces querem 'menorizar' quando dizem: 'eu, que formulo este discurso, enuncio um discurso cientifico e sou um cientista'? (FOUCAULT, 2001, p. 172)

Depois de aprender a falar na gíria do sistema, as duas pesquisas viram-se colocadas diante da questao da funçao efetiva do sistema: um confinamento de corpos que nao se poe como segregaçao, uma vez que é o caso de lhes permitir uma vida em separado. Segundo nossa hipótese, trata-se, antes, de manter tais corpos com a vida em suspenso, numa latencia ancorada na promessa de vida no futuro. Confinamento do presente em uma temporalidade arrastada.

Nesse terreno de hegemonia do capitalismo tecnofinanceiro e sua tomada de poder sobre as subjetividades, re-existir descrendo, descreditando, extravasando as fronteiras desse possível pré-estruturado por nós habitado, eis a estratégia metódica para guerras com o vazio de sentido e com a naturalizaçao/universalizaçao. Indissociabilidade entre produçao de conhecimento, pesquisa, política, afeto, em movimento transversal despido de concepçoes fundamentalistas; nao restrita aos muros das especialidades. Pesquisa anti-normalizadora, desfocada da idéia de produçao de verdades universais, um caminhar menor, marcado por singularidade e inventividade, eis o proposto.

Desmontar as estruturas institucionais sem que caiam por sobre as cabeças das pessoas. A estas, deixar em paz, e argumentar ferozmente contra os arcaísmos oportunistas, negando se, enquanto pesquisador, as encomendas institucionais de carceragem e encargo direto pelos corpos. Aliar-se entre pessoas para tentar o que nao se pôde ainda, inclusive nos modos de fazer pesquisa.

 

Referencias Bibliográficas

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Endereço para correspondencia
Manoel Mendonça Filho
Rua Lagarto, 952, Centro, CEP 49010-390, Aracaju-SE , Brasil
Endereço eletrônico: mendoncafilho@ufs.br
Michele de Freitas Faria de Vasconcelos
Av. Paulo Gama, s/n, 12201, sala 511 (Geerge), Bairro Farroupilha, CEP 90046-900, Porto Alegre-RS, Brasil.
Endereço eletrônico: michelevasconcelos@hotmail.com

Recebido em: 03/08/2009
Aceito para publicaçao em: 23/12/2009
Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo, Roberta Romagnoli e Marisa Lopes da Rocha

 

 

Notas

* Professor permanente do Núcleo de Pós-Graduaçao em Psicologia da UFS e do Núcleo de Pós Graduaçao em Educaçao da UFS
** Graduada em psicologia pela UFS, mestre em saúde coletiva pelo ISC/UFBA, bolsista CNPq; doutoranda em educaçao pela UFRGS, na linha de pesquisa Educaçao, Sexualidade e Relaçoes de Genero, bolsista CAPES.
1 Capitalístico usado aqui no sentido dado por Guattari. Ver Caosmose. Rio de Janeiro: Ed. 34. 1992.
2 Saliente-se, porém, que, mesmo tidos como incapazes de produzir e, por isso, submetidos ao internamento, esses dois segmentos sao atravessados pela lógica de produçao capitalística: aos criminosos, destina-se o trabalho forçado nas workhouses; aos loucos, destina-se o trabalho terapeutico nos asilos psiquiátricos. Hoje, também costumam ser internados aqueles que transitam entre os dois rótulos, loucos e criminosos, a saber, os usuários de drogas.
3  Em aspas, Coimbra cita Wacquant
4 Os relatos das pesquisas mencionadas, bem como algumas linhas de argumentaçao, estao apresentados mais detalhadamente em 'A herança das galinhas: histórias e estórias do sistema prisional em Sergipe' Mendonça Filho, 2009 e 'Por uma genealogia das políticas de inclusao de saúde mental contemporâneas: da produçao de políticas identitárias e de modos variados de confinamento' Michele Vasconcelos e Mendonça Filho, ambos In: Política e Afetividade: narrativas e trajetórias de pesquisa. MENDONÇA FILHO, M. e NOBRE, M. T. Salvador/Aracaju: EDUFBA/EDUFS. 2009.
5 A noçao de violencia institucional está apresentada e discutida em "violencia institucional e funçao educativa no estado do capitalismo financeiro", MENDONÇA FILHO, M. Educaçao e Cidadania: questoes contemporâneas. In: Neves, P. Educaçao, Cidadania: Questoes contemporâneas. Sao Paulo: Cortez. 2009.
6 No sentido Wittgensteiniano discutido em MORENO, A. Wittgenstein através das imagens. Campinas: Ed.UNICAMP. 1993.
7 É através da naturalizaçao desses mesmos modelos que tendemos a resumir a Humanidade, com "H" maiúsculo, a uma forma-homem articulada a imagens de homem, masculino, branco, viril, chefe de família, trabalhador, consumidor, empreendedor, sadio, útil ao capital.
8 Ver Sfez, L. Crítica da Comunicaçao. Sao Paulo: Loyola, 1994.